José Castello*
Recebo um exemplar de "Literatura e música" (Tiro de Letra, com organização
de José Domingos de Brito), sexto volume da coleção "Mistérios da
criação literária". A série já tratou das relações da literatura com o
cinema, a política e o jornalismo. Já tentou responder, ainda, a duas
perguntas recorrentes, mas fundamentais para qualquer escritor: "por que
escrevo?" e "como escrevo?". Agora propõe-se a pensar os vínculos entre
a música e a literatura. Mais para a frente, pretende, ainda, refletir a
respeito de outras relações difíceis, como as que ligam a literatura à
psicanálise, à religião, à filosofia e ao direito.
A fórmula é simples: cada volume reúne uma série dispersa de declarações de grandes escritores a respeito do tema proposto. No volume sexto, encontro, inclusive, uma brevíssima reflexão que fiz sobre os vínculos entre meu romance "Ribamar", de 2010, e a partitura de uma canção de ninar. Mas não é isso o que importa aqui. Uma leitura atenta dos depoimentos esbarra em elos imprevistos, que ajudam a iluminar não só o fazer literário, mas a produção musical. Que espalham luz sobre alguns dos mais delicados segredos da criação artística. "A minha forma de escrever é muito ligada ao fato de eu ouvir muita música", admite, sem vacilar, o poeta Armando Freitas Filho. "A primeira coisa que eu quis ser, aos seis anos, era maestro. Então, acho que escrevo com uma batuta, com variações". Em geral associamos a literatura ao silêncio. Ao exercício recluso da leitura secreta e introspectiva. Surge agora, porém, uma segunda associação, não com os ruídos, ou com a zoeira, mas com a delicadeza da música. Sem que se deixe perceber, a música está presente na experiência criativa de alguns dos melhores escritores que conhecemos.
"Se alguma vez os efeitos de uma sinfonia foram trazidos para um livro, o livro será este", escreveu Gustave Flaubert, referindo-se ao capítulo VII da segunda parte de "Madame Bovary". Uma prosa que se alarga sobre uma estrutura musical. Também o português Antonio Lobo Antunes reclama do desprezo que, em geral, se dá às relações entre seu romance "A morte de Carlos Gardel" e a "Quinta Sinfonia" de Gustav Mahler. "A estrutura de meus romances é sempre musical. Infelizmente, a crítica literária quase não dá atenção a isso". Músicas distintas "tocam" no interior de alguns dos mais apaixonantes romances que conhecemos. É preciso aprender a ouvir.
A fórmula é simples: cada volume reúne uma série dispersa de declarações de grandes escritores a respeito do tema proposto. No volume sexto, encontro, inclusive, uma brevíssima reflexão que fiz sobre os vínculos entre meu romance "Ribamar", de 2010, e a partitura de uma canção de ninar. Mas não é isso o que importa aqui. Uma leitura atenta dos depoimentos esbarra em elos imprevistos, que ajudam a iluminar não só o fazer literário, mas a produção musical. Que espalham luz sobre alguns dos mais delicados segredos da criação artística. "A minha forma de escrever é muito ligada ao fato de eu ouvir muita música", admite, sem vacilar, o poeta Armando Freitas Filho. "A primeira coisa que eu quis ser, aos seis anos, era maestro. Então, acho que escrevo com uma batuta, com variações". Em geral associamos a literatura ao silêncio. Ao exercício recluso da leitura secreta e introspectiva. Surge agora, porém, uma segunda associação, não com os ruídos, ou com a zoeira, mas com a delicadeza da música. Sem que se deixe perceber, a música está presente na experiência criativa de alguns dos melhores escritores que conhecemos.
"Se alguma vez os efeitos de uma sinfonia foram trazidos para um livro, o livro será este", escreveu Gustave Flaubert, referindo-se ao capítulo VII da segunda parte de "Madame Bovary". Uma prosa que se alarga sobre uma estrutura musical. Também o português Antonio Lobo Antunes reclama do desprezo que, em geral, se dá às relações entre seu romance "A morte de Carlos Gardel" e a "Quinta Sinfonia" de Gustav Mahler. "A estrutura de meus romances é sempre musical. Infelizmente, a crítica literária quase não dá atenção a isso". Músicas distintas "tocam" no interior de alguns dos mais apaixonantes romances que conhecemos. É preciso aprender a ouvir.
Nem sempre conseguimos."Acho que escrevo livros como faço
música. Tenho música na cabeça o tempo todo", declara Chico Buarque, um
autor em quem, por conta de sua dupla condição, de escritor e de músico,
esse vínculo se realça. Acontece que ele
não se dá como, a princípio, podemos imaginar. Na criação literária, as coisas não são tão simples. Enfatiza Chico que, quando escreve, nunca ouve música, porque isso o atrapalha. A música está presente de outra maneira: "Quando eu escrevo, acho que tem música no fundo de minha cabeça", diz. "Eu leio, releio, mas logo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase". A música não está fora, mas dentro. Não está ali para decorar o trabalho do escritor, ou para distraí-lo, mas para sustentá-lo.
O americano Jack Kerouac, por exemplo, sentia-se influenciado pela estrutura do jazz e do bop. "É assim que eu separo minhas frases, como se fossem pautas mentais para respirar". Criou, desse modo, uma "teoria da respiração", que nada mais é do que a presença de certo ritmo, certa batida, no coração de sua escrita. Ainda mais radical, Marcelino Freire _ um escritor conhecido por interpretar seus próprios textos nos palcos _ se arrisca a afirmar: "O que eu escrevo, na verdade, é música. Escrevo ritmado, cheio de som, de ritmo". Ao interpretar seus textos, é esse ritmo secreto que, em sua
voz, se revela.
Existem sempre paralelos a fisgar entre a partitura e a escritura. Mesmo nas mentes mais silenciosas e nos personagens mais discretos, a música parece agir, secretamente, todo o tempo. Esses vínculos acabam por influir na performance do escritor. Mesmo um ficcionista tímido e quieto como João Gilberto Noll não se esquiva de admitir: "Como minha ficção está sendo cada vez mais arrastada por ritmos musicais, tenho gostado de apresentar o trabalho oralmente". Mais uma vez _ como no caso anterior de Marcelino Freire _ a música serve como impulso para que o escritor assuma publicamente a própria palavra.Ou, como afirma Augusto de Campos: "A música é para mim uma nutrição do impulso indispensável".
O filósofo Voltaire sintetizou a relação entre literatura e música em um princípio simples, mas forte: "É tão impossível traduzir a poesia como é traduzir a música". Os escritores _ em especial aqueles que praticam as duas artes _ não traçam ordens de valor entre elas. Vinicius de Moraes, de quem a família dizia ter cantado antes de falar, afirma: "Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções". Músicos geniais, como Mozart, depois de admitir sua falta de vocação para a escrita, encontraram uma maneira de incorporá-la às próprias composições musicais. Escreveu, com toda a franqueza, em uma carta: "Não consigo escrever poesia: não sou poeta. Não consigo dispor as palavras com tal arte que elas reflitam as sombras e a luz: não sou pintor... Mas consigo fazer tudo isso com a música".
Mesmos os prosadores mais racionais nunca se cansam de acentuar as relações secretas entre a melodia e a escrita. "Os capítulos são como compassos de uma partitura musical", diz, por exemplo, Milan Kundera em uma entrevista, falando de seus romances. "Há partes em que os compassos (capítulos) são longos, outras em que são breves outras ainda em que têm uma duração irregular". Esses vínculos profundos podem ser sintetizados com as palavras sábias de Clarice Lispector: "Acho que o sim da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita é
como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal".
não se dá como, a princípio, podemos imaginar. Na criação literária, as coisas não são tão simples. Enfatiza Chico que, quando escreve, nunca ouve música, porque isso o atrapalha. A música está presente de outra maneira: "Quando eu escrevo, acho que tem música no fundo de minha cabeça", diz. "Eu leio, releio, mas logo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase". A música não está fora, mas dentro. Não está ali para decorar o trabalho do escritor, ou para distraí-lo, mas para sustentá-lo.
O americano Jack Kerouac, por exemplo, sentia-se influenciado pela estrutura do jazz e do bop. "É assim que eu separo minhas frases, como se fossem pautas mentais para respirar". Criou, desse modo, uma "teoria da respiração", que nada mais é do que a presença de certo ritmo, certa batida, no coração de sua escrita. Ainda mais radical, Marcelino Freire _ um escritor conhecido por interpretar seus próprios textos nos palcos _ se arrisca a afirmar: "O que eu escrevo, na verdade, é música. Escrevo ritmado, cheio de som, de ritmo". Ao interpretar seus textos, é esse ritmo secreto que, em sua
voz, se revela.
Existem sempre paralelos a fisgar entre a partitura e a escritura. Mesmo nas mentes mais silenciosas e nos personagens mais discretos, a música parece agir, secretamente, todo o tempo. Esses vínculos acabam por influir na performance do escritor. Mesmo um ficcionista tímido e quieto como João Gilberto Noll não se esquiva de admitir: "Como minha ficção está sendo cada vez mais arrastada por ritmos musicais, tenho gostado de apresentar o trabalho oralmente". Mais uma vez _ como no caso anterior de Marcelino Freire _ a música serve como impulso para que o escritor assuma publicamente a própria palavra.Ou, como afirma Augusto de Campos: "A música é para mim uma nutrição do impulso indispensável".
O filósofo Voltaire sintetizou a relação entre literatura e música em um princípio simples, mas forte: "É tão impossível traduzir a poesia como é traduzir a música". Os escritores _ em especial aqueles que praticam as duas artes _ não traçam ordens de valor entre elas. Vinicius de Moraes, de quem a família dizia ter cantado antes de falar, afirma: "Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções". Músicos geniais, como Mozart, depois de admitir sua falta de vocação para a escrita, encontraram uma maneira de incorporá-la às próprias composições musicais. Escreveu, com toda a franqueza, em uma carta: "Não consigo escrever poesia: não sou poeta. Não consigo dispor as palavras com tal arte que elas reflitam as sombras e a luz: não sou pintor... Mas consigo fazer tudo isso com a música".
Mesmos os prosadores mais racionais nunca se cansam de acentuar as relações secretas entre a melodia e a escrita. "Os capítulos são como compassos de uma partitura musical", diz, por exemplo, Milan Kundera em uma entrevista, falando de seus romances. "Há partes em que os compassos (capítulos) são longos, outras em que são breves outras ainda em que têm uma duração irregular". Esses vínculos profundos podem ser sintetizados com as palavras sábias de Clarice Lispector: "Acho que o sim da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita é
como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal".
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* Jornalista. Escritor. Crítico literário. Colunista do jornal O Globo.
Fonte: O Globo online, acesso 10/07/2015
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