quarta-feira, 8 de julho de 2015

RELENDO KAFKA

Ernani Ssó*
 
Relendo O castelo, esses tempos, fiz uma pequena descoberta: em meio a tantas interpretações – onde predomina a busca infinita por Deus, pelo pai, pela autoridade –, não me lembro de ter lido uma coisa bastante evidente no romance. K. foi contratado pelo castelo como agrimensor mas ninguém sabe nada e todos os seus esforços pra saber são inúteis – esse padrão se repete em todas as cenas. Cada coisa que acontece não é o que parece ser. Logo depois de acontecer, alguém explica os motivos e vemos o fato de outro modo. Quando estamos convencidos, vem outro personagem com uma explicação nova e também convincente. Assim vai. Em pouco não sabemos exatamente o que foi que aconteceu nem por quê. Estamos soterrados pelas versões. Nada é sólido, mas, se parece sólido, logo se desmancha no ar. Chame o castelo inatingível ou sua busca encarniçada do que quiser, só que seria um bom começo notar antes que não há grande diferença entre a aventura de K. e a tua, a menos que você viva de um modo mais vegetativo, digamos, com perdão de uma samambaia que tenho na sala.
Uma acusação desconhecida, inclusive dos acusadores, pelo que se vê, como a sofrida por K. n’O Processo, parece um mote melhor do que não conseguir chegar ao castelo, não? Mexe mais com a gente. Mas o desenvolvimento de O castelo é mais profundo e devastador. Também acho mais engraçado. As cenas com os dois ajudantes têm um humor muito visual e sempre penso nelas como um velho filme, provavelmente em preto e branco, provavelmente mudo.

Na releitura d’O processo fiz outra pequena e óbvia descoberta: há um padrão que se repete como n’O castelo. Toda a encrenca começa por que alguém com certeza fez uma fofoca, porque K. não cometeu falta alguma. Mas K. sente o primeiro baque ao não receber seu café de manhã e ao ouvir o oficial Franz rir do seu desejo de tomar café como sempre. Ele foi desalojado de sua posição no mundo – jovem promissor, com um bom emprego, que conseguiu por indicação de um parente de bem. Tudo o que faz depois é tentativa de retomar essa posição. Às vezes, por alguns instantes, fala grosso e parece recuperá-la, vê autoridades importantes se tornarem humildes diante de seus argumentos ou sua atitude. Mas em seguida outra pessoa contra-ataca e K. se vê perdido de novo. Parece um adolescente perseguido por outros adolescentes mais bonitos, mais ricos, mais fortes, ou alguém que perdeu prestígio e está sendo frito numa sociedade ditatorial. Como a acusação não é concreta, está no olhar dos outros, no tom das palavras, em argumentações muito lógicas e minuciosas mas que não se baseiam num único fato – imagino se não seria pior se K. se debatesse numa perseguição pelas redes sociais. Os empecilhos labirínticos que surgem a cada página são a demonstração cabal da impotência de K. e a demonstração de que luta com um poder impalpável, sem nome, sem rosto, sem endereço.

No início, ao discutir com os oficiais, K. diz que quer saber quem vem perturbá-lo e como sua locadora, senhora Grubach, vai justificar isso. Aí pensa: “Na verdade logo lhe ocorreu que não precisaria tê-lo dito em voz alta e que assim reconhecia, de uma certa maneira, o direito de fiscalização do estranho, mas isso agora não lhe parecia importante. Foi desse modo porém que o estranho o entendeu”. Sentiram a sutileza? Kafka é diabólico, tem inumeráveis observações agudas como essa, análises de emoções fugazes e contraditórias. Bom, essa cena é clara: é o primeiro sinal de que K. aceitou, não que é culpado, mas que está por baixo. Daí pra frente a coisa só piora. O jovem funcionário, bonito, bem vestido, paparicado pela locatária e tal, se torna um pária, nada muito diferente de ter se tornado inseto. Gregor Samsa morre e é jogado no lixo e o mundo segue. Josef K. é executado com uma faca de açougueiro e o mundo segue. O clima de pesadelo do livro não é gratuito, ou um modo pro Kafka mostrar seu imenso virtuosismo técnico ou a imaginação genial: trata-se de um pesadelo com a lógica do pesadelo. Como qualquer bom pesadelo, O processo é como um sapato sem número, que serve tanto em pés 40 como 38 ou 41 ou 42 ou 44.

Kafka
“Uma coisa eu sei hoje, antes de mais nada: a arte tem mais necessidade do artesanato que o artesanato da arte. Claro que não acho que a gente possa se obrigar a parir, mas sim a educar os filhos.”
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*Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.
IMAGEM DA INTERNET
Fonte:  http://www.sul21.com.br/jornal/relendo-kafka/

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