Ernani Ssó*
Relendo O castelo, esses tempos, fiz uma pequena descoberta:
em meio a tantas interpretações – onde predomina a busca infinita por
Deus, pelo pai, pela autoridade –, não me lembro de ter lido uma coisa
bastante evidente no romance. K. foi contratado pelo castelo como
agrimensor mas ninguém sabe nada e todos os seus esforços pra saber são
inúteis – esse padrão se repete em todas as cenas. Cada coisa que
acontece não é o que parece ser. Logo depois de acontecer, alguém
explica os motivos e vemos o fato de outro modo. Quando estamos
convencidos, vem outro personagem com uma explicação nova e também
convincente. Assim vai. Em pouco não sabemos exatamente o que foi que
aconteceu nem por quê. Estamos soterrados pelas versões. Nada é sólido,
mas, se parece sólido, logo se desmancha no ar. Chame o castelo
inatingível ou sua busca encarniçada do que quiser, só que seria um bom
começo notar antes que não há grande diferença entre a aventura de K. e a
tua, a menos que você viva de um modo mais vegetativo, digamos, com
perdão de uma samambaia que tenho na sala.
Uma acusação desconhecida, inclusive dos acusadores, pelo que se vê, como a sofrida por K. n’O Processo, parece um mote melhor do que não conseguir chegar ao castelo, não? Mexe mais com a gente. Mas o desenvolvimento de O castelo
é mais profundo e devastador. Também acho mais engraçado. As cenas com
os dois ajudantes têm um humor muito visual e sempre penso nelas como um
velho filme, provavelmente em preto e branco, provavelmente mudo.
Na releitura d’O processo fiz outra pequena e óbvia descoberta: há um padrão que se repete como n’O castelo.
Toda a encrenca começa por que alguém com certeza fez uma fofoca,
porque K. não cometeu falta alguma. Mas K. sente o primeiro baque ao não
receber seu café de manhã e ao ouvir o oficial Franz rir do seu desejo
de tomar café como sempre. Ele foi desalojado de sua posição no mundo –
jovem promissor, com um bom emprego, que conseguiu por indicação de um
parente de bem. Tudo o que faz depois é tentativa de retomar essa
posição. Às vezes, por alguns instantes, fala grosso e parece
recuperá-la, vê autoridades importantes se tornarem humildes diante de
seus argumentos ou sua atitude. Mas em seguida outra pessoa contra-ataca
e K. se vê perdido de novo. Parece um adolescente perseguido por outros
adolescentes mais bonitos, mais ricos, mais fortes, ou alguém que
perdeu prestígio e está sendo frito numa sociedade ditatorial. Como a
acusação não é concreta, está no olhar dos outros, no tom das palavras,
em argumentações muito lógicas e minuciosas mas que não se baseiam num
único fato – imagino se não seria pior se K. se debatesse numa
perseguição pelas redes sociais. Os empecilhos labirínticos que surgem a
cada página são a demonstração cabal da impotência de K. e a
demonstração de que luta com um poder impalpável, sem nome, sem rosto,
sem endereço.
No início, ao discutir com os oficiais, K. diz que quer saber quem
vem perturbá-lo e como sua locadora, senhora Grubach, vai justificar
isso. Aí pensa: “Na verdade logo lhe ocorreu que não precisaria tê-lo
dito em voz alta e que assim reconhecia, de uma certa maneira, o direito
de fiscalização do estranho, mas isso agora não lhe parecia importante.
Foi desse modo porém que o estranho o entendeu”. Sentiram a sutileza?
Kafka é diabólico, tem inumeráveis observações agudas como essa,
análises de emoções fugazes e contraditórias. Bom, essa cena é clara: é o
primeiro sinal de que K. aceitou, não que é culpado, mas que está por
baixo. Daí pra frente a coisa só piora. O jovem funcionário, bonito, bem
vestido, paparicado pela locatária e tal, se torna um pária, nada muito
diferente de ter se tornado inseto. Gregor Samsa morre e é jogado no
lixo e o mundo segue. Josef K. é executado com uma faca de açougueiro e o
mundo segue. O clima de pesadelo do livro não é gratuito, ou um modo
pro Kafka mostrar seu imenso virtuosismo técnico ou a imaginação genial:
trata-se de um pesadelo com a lógica do pesadelo. Como qualquer bom
pesadelo, O processo é como um sapato sem número, que serve tanto em pés 40 como 38 ou 41 ou 42 ou 44.
Kafka
“Uma coisa eu sei hoje, antes de mais nada: a arte tem mais
necessidade do artesanato que o artesanato da arte. Claro que não acho
que a gente possa se obrigar a parir, mas sim a educar os filhos.”
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*Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus,
numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser
escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus
amuletos.
IMAGEM DA INTERNET
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/relendo-kafka/
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