Juremir Machado da Silva*
"É a crise mais grave da Europa.
Precisaria uma mudança de rumo,
que a
Alemanha não permitirá.
O futuro é, portanto, muito nebuloso."
Autor de seis volumes de uma obra monumental, O Método, publicada no
Brasil pela Sulina, Edgar Morin acaba de lançar na França A aventura do
Método. São mais de 40 livros na sua longa trajetória de intelectual,
filósofo, sociólogo, epistemólogo, educador, militante, primeiro pelo
melhor dos mundos e depois por um mundo melhor, e pensador generoso das
contradições, baixezas e grandezas humanas. Neste dia 8 de julho, Morin,
que lutou contra a ocupação nazista da França, passou pelo Partido
Comunista, saiu por não suportar o stalinismo, viveu nos Estados Unidos,
onde se aprofundou em biologia e física, e tornou-se cidadão do mundo,
completou 94 anos de idade bem vividos e em plena forma física e
intelectual. Ele continua cheio de projetos e de esperanças. Nesta
entrevista, concedida para mim, no Instituto de Ciências da Comunicação e
da Informação, em Paris, publicada no Caderno de Sábado do Correio do
Povo, Edgar Morin examina o futuro da União Europeia e da cultura.
Caderno de Sábado – O senhor vai completar 94 anos. É uma bela
trajetória. Viu nascer e crescer a utopia de uma união Europeia. Qual o
futuro dela?
Edgar Morin – O futuro é incerto. A situação da Grécia tem mostrado
que não se pode ter qualquer certeza. A crise da Europa não para de se
agravar. Os fundadores da Europa pensavam na união política e cultural.
Daí vem a primeira crise. Como os nacionalismos eram muito fortes,
especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a união política não foi
possível. Saiu uma união econômica. A Europa de hoje é heterogênea. Os
países do leste, integrados, não têm as mesmas perspectivas. A segunda
crise vem das rejeições. A própria França votou contra a Europa, há
alguns anos, num referendo. Por fim, a crise atual tem a ver com os
problemas econômicos e com a chamada austeridade, que se resume à
dominação dos interesses cada vez mais poderosos do capital. Não há
forças populares capazes de reagir, mas em certos países se desenvolveu
um partido nacionalista fechado, mais ou menos racista, como a Frente
Nacional na França. O Syriza comanda uma boa reação, mas, se capitular, a
Grécia sairá da Europa e será o começo da decadência. Na Espanha, o
Podemos, em circunstâncias diferentes, também expressa a insatisfação
contra a hegemonia do capital. É possível que haja uma regressão para um
mercado comum. Até o euro está ameaçado. É a crise mais grave da
Europa. Precisaria uma mudança de rumo, que a Alemanha não permitirá. O
futuro é, portanto, muito nebuloso.
CS – O atentado contra Charlie Hebdo chocou o mundo e houve quem
falasse em retorno das guerras de religião. A liberdade está ameaçada?
Morin – Não. As guerras de religião mobilizavam a totalidade das
pessoas. As cruzadas colocaram em ação cristãos e muçulmanos como um
todo. As guerras entre protestantes e católicos também mobilizaram o
conjunto da sociedade. O mesmo ocorre quando há confronto entre sunitas e
xiitas. Não há hoje um conflito entre a totalidade do mundo muçulmano e
a totalidade do mundo cristão. A maioria dos muçulmanos é moderada.
Ainda que existam ressentimentos, pois os muçulmanos sabem que o
Ocidente usa dois pesos e duas medidas quando se trata de Israel e da
Palestina, não há guerra de religião. No Marrocos e na Tunísia há muita
simbiose com a cultura ocidental. Há crescimento, contudo, de fanatismos
e da intolerância, em parte produzidos por uma minoria infeliz e
radicalizada da qual fazem parte muitos jovens franceses, inclusive
católicos convertidos ao islamismo. Os problemas internos e diferenças
do mundo muçulmano contam bastante. Existem países quase medievais como a
Arábia Saudita, mistos, como o Líbano, onde há cristão e muçulmanos, e
nações despedaçadas como a Síria e o Iraque. No Marrocos, onde passo
parte do meu tempo, há cada vez mais interpenetração com o Ocidente no
sentido de democratização e de mais respeito às mulheres. Mas as
tradições permanecem.
CS – A França, mesmo entre os socialistas, está dividida em relação à
laicidade nas escolas. Alguns querem manter a laicidade pura. Outros,
querem flexibilizá-la em respeito às diferenças. Qual o caminho mais
adequado aos tempos atuais em que a diversidade é um valor maior?
Morin – A laicidade se caracteriza pela separação entre religião e
Estado. A escola pública não pode fazer propaganda religiosa. Mas é
fundamental que as religiões sejam estudadas nas escolas públicas, pois a
religião é um fenômeno antropológico universal que existe desde a
pré-história. As sociedades mais simples e as mais desenvolvidas, como
os Estados Unidos, são religiosas. A União
Soviética fracassou ao tentar suprimir a crença em Deus. Não acho que
se deva impedir o uso de símbolos religiosos secundários como um véu,
uma cruz ou uma estrela de Davi. Em muitos países laicos, tolerantes, é
permitido usá-los nas escolas. O importante é situar cada coisa no seu
contexto. A laicidade adota o ponto de vista da ciência para explicar o
universo e a vida, mas não pode eliminar o estudo desse fenômeno humano
complexo e rico que é a religião.
CS – O senhor acaba de publicar A aventura do método. A luta contra o
reducionismo e a simplificação está sendo ganha pela complexidade?
Morin – Meu objetivo com este novo livro foi mostrar como me veio a
ideia de um método capaz de considerar a necessidade de complexidade
para entender os fenômenos humanos e sociais. Tomei como símbolo uma
árvore cujos galhos tocam no chão e se tornam raízes. Surge um novo
tronco. O pensamento complexo é recursivo. Ele se alimenta também de si
mesmo e se recria todo tempo. Ao descobrir o meu método, ele se voltou
sobre o meu pensamento me obrigando a pensar nas suas consequências
políticas, pedagógicos e filosóficas. Eu produzi um método, que, por
seu turno, me produziu ao longo da vida.
CS – A reforma do pensamento das suas reflexões está acontecendo?
Morin – Não. Infelizmente. É algo bastante difícil. Sim, mas apenas
de modo disperso. Na América Latina, no México, minhas ideias são
aplicadas numa instituição. Falta, de maneira geral, uma base pedagógica
institucional para desenvolver o que tenho defendido em meus livros
sobre a complexidade.
CS – Os seus livros são lições de vida. Quase aos 94 anos, o senhor
continua otimista sobre a possibilidade de construção de um mundo
melhor?
Morin – Sim, continuo. Mesmo que eu perceba catástrofes no futuro se
as coisas continuarem como andam, com a tecnocracia e a hegemonia do
capital financeiro, mantenho meu otimismo. O improvável é sempre
possível. Creio nisso. Já aconteceu no passado. Mantenho a esperança de
que as possibilidades criativas que caracterizam a humanidade venham a
desabrochar. Em certo sentido, sou pessimista. Noutro, sou otimista. É
preciso ter a coragem de continuar sonhando e amando a vida. Eu amo
viver e amo a humanidade. Obedeço a um instinto mais profundo que me faz
acreditar na vida. A aranha faz emergir do seu orifício uma teia. Ela
não sabe a razão disso. É o seu destino. Eu tenho a impressão de ser uma
pequena aranha, um elemento, um pedacinho da espécie humana possuído
pela ideia de dar a minha contribuição e fazer o meu trabalho. Posso até
me iludir. Mas é assim que sou e que eu gosto de ser.
CS – A paz entre israelenses e palestinos não chegou. A utopia
europeia está virando pesadelo. A ciência avança. O imaginário continua
atrasado?
Morin – Muitos acontecimento são regressivos no planeta. Mas há
coisas boas. A encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia é
maravilhosa e bela. Trata-se de um chamado por uma nova civilização. Mas
mesmo a liberdade de expressão está limitada. A grande mídia pode quase
tudo. São poucas as alternativas. Não estamos numa ditadura, mas a
liberdade de expressão é dominada pelo dinheiro.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: Correio do Povo online, acesso 14/07/2015
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