Juremir Machado da Silva*
O escritor depois dos ataques terroristas
Feliz, ao lado da companheira, a jovem Ignez, Michel Houellebecq nos
recebeu para jantar no seu apartamento no bairro mais oriental de Paris,
chamado de Chinatown. Chegamos antes para uma hora de entrevista
gravada. O mais importante escritor francês da atualidade iria receber
na noite seguinte, num jantar chique para 300 pessoas, o prêmio
literário da Biblioteca Nacional da França por seu livro Submissão.
Conforme o regulamento, ele não pode ganhar uma segunda vez o Prix
Goncourt, o Nobel francês, por ter sido laureado em 2010 por O mapa e
território. Submissão, que trata da chegada ao poder dos muçulmanos na
França, em 2022, deveria ter sido lançado no dia em que aconteceu o
atentado a Charlie Hebdo. Depois disso, Houellebecq vive constantemente
sob proteção policial. Os seus livros já venderam cerca de três milhões
de exemplares.
Irônico, provocador, culto e impiedoso com o politicamente correto e
com o fanatismo religioso, ele se revela por inteiro aqui enquanto luta
para não ter a sua vida privada devassada por uma reportagem no jornal
francês Le Monde e prepara uma exposição de fotografias para o
prestigioso Palais Tokyo. Houellebecq é um dos melhores escritores do
mundo atualmente.
Caderno de Sábado – Na última vez que eu estive aqui, em novembro de
2014, dizendo que não podias revelar o conteúdo do novo livro, contaste a
história e disseste que colocarias fogo na França. Falavas
metaforicamente, claro. Depois disso, aconteceu o atentado a Charlie
Hebdo e o livro saiu. Como viveste tudo isso e como te sentes agora?
Michel Houellebecq – Foi um choque. A violência atingiu limites
inimagináveis. Deu-se uma ruptura entre mim e a esquerda, mas também há
ruptura na França. A sensação é de que o conflito é irreversível e a
guerra civil inevitável. Isso tem mais a ver com meu livro do que com os
atentados. Esse período dramático ainda não acabou. Eu esperava que meu
livro incendiasse a França, mas, evidentemente, não da maneira que
aconteceu. O mais difícil de aceitar é que, no fundo, os fatos são
inexplicáveis. Há dez anos, o número de muçulmanos era o mesmo, mas se
falava pouco disso. Agora, é o único assunto em pauta.
CS – Sentiste medo quando os atentados aconteceram?
Houellebecq – Não. Isso não quer dizer grande coisa. De qualquer
maneira, hoje, quando saio na rua, estou sempre sob proteção policial.
Não ando sozinho. Tem sempre um policial comigo. Depois dos atentados,
passei uns dias na casa do cantor Jean-Louis Hubert. Era uma questão de
bom senso. Eu me sentia sufocado em Paris. Perdi meu amigo Bernard Maris
no atentado contra Charlie Hebdo. Fiquei muito triste e chocado com os
acontecimentos. O atentado contra Charlie coincidiu com o dia do
lançamento de Submissão. Mesmo não sendo místico, ser vítima desse tipo
de coincidência deixa a gente com uma sensação estranha, como se o
destino estivesse agindo. Nunca me senti culpado. Não tenho essa
importância. Eu me senti esquisito. Coisas irracionais me passavam na
cabeça. Com meu livro Plataforma aconteceu o atentado em Bali. Desta
vez, foi pior, pois eu estava na capa de Charlie Hebdo no dia do
atentado. Fiquei muito perturbado.
CS – Isso pode influenciar a tua maneira de escrever?
Houellebecq – Talvez. A ideia de destino passou a ter força para
mim. Era algo que não me ocorria antes. Fiquei mais sensível às
coincidências. Enfim… A França vive um tempo de ódio, de intolerância,
de ruptura e de pré-guerra civil. Mas não tenho medo.
CS – Uma guerra civil é, de fato, possível?
Houellebecq – Claro que sim. As instituições republicanas não
conseguem frear a situação. Na verdade, não sabemos por que, em
determinando momento, as coisas não podem mais funcionar como antes. A
fratura é grave demais. A gente sente isso. A esquerda reage muito mal a
esse tipo de constatação. É uma reação mais impressionante que a da
direita. Como sabemos, a direita não se interessa pela vida intelectual.
É indiferente ao que pensam os intelectuais. Já a esquerda sempre se
sente comprometida com o pensamento. Pela primeira vez, os intelectuais
estão abandonando essa esquerda à qual sempre estiveram associados.
Mesmo os professores estão largando a esquerda. São vão restar alguns
artistas. O cenário político tem mudado muito. A Frente Nacional, de
Marine Le Pen, poderá ganhar as eleições, não as próximas, mas as de
2022. Isso mexe com a esquerda. A Frente Nacional já não é antissemita.
Jean-Marie Le Pen era antissemita. Marine não é. Tudo isso configura um
novo quadro desestabilizador.
CS – É importante mesmo que o autor esteja presente na obra?
Houellebecq – Não falo no sentido autobiográfico. É como a câmera num
filme. Cada um vê o mundo de uma maneira e isso aparece. Eu não tenho
olfato. Cada um tem um sentido menos ou mais desenvolvido. Quem lê tudo
de um autor, estabelece uma relação pessoal com ele. É isso.
CS – Tu dizes também que o leitor, quando o ama o livro, quer encontrar o autor e conviver com ele. Teus leitores querem te ver?
Houellebecq – Passei mais tempo da minha vida com Balzac do que com
pessoas das minhas relações. Quem lê e gosta, entra no mundo do autor.
Quem gosta de ler, passa boa parte da vida fazendo isso.
CS – É muito difícil escrever de novo depois de uma obra-prima? A
solução é criar um personagem que sirva de porta-voz para o autor?
Houellebecq – Foi o que Joris-Karl Huysmans, de quem falo em
Submissão, fez, mas não é a única fórmula possível. Eu nunca fiz isso.
Meus personagens não são meus porta-vozes mesmo quando se chamam Michel
ou moram no Chinatown de Paris. Tentei, para me renovar, alterar
radicalmente os cenários em alguns dos meus romances. “Plataforma”
deveria ter sido totalmente ambientado na Tailândia. Um livro não
ocidental. Não consegui. Huysmans contou, depois de uma obra-prima, a
história de uma decepção. Foi coerente.
CS – Qual é a tua obra-prima?
Houellebecq – Partículas elementares e A possibilidade de uma ilha.
São meus livros mais bem acabados. Submissão não tem a mesma clareza. É
bem feito, mas menos ambicioso. A ambição é importante num livro.
CS – Em Submissão, doutorandos questionam o professor sobre a
possibilidade de definir poetas maiores e menores. Faltam critérios?
Houellebecq – O personagem toma a questão como idiota, mas não é.
Trata-se de uma distinção boba, cultural. Ninguém sabe de verdade. A
reputação adquirida condiciona a leitura e os novos julgamentos.
CS – Todos os teus personagens centrais estão preocupados com uma
questão: o que fazer depois do fim das conquistas amorosas e sexuais?
Houellebecq – Sim. Sempre se pode colecionar miniaturas de avião ou
fazer um curso de enologia. Alguns nem começam a vida sexual. A maioria
se entedia depois que ela acaba. Em “Submissão”, o personagem, um
professor universitário, encontra na organização da obra de Huysmans
para a Pleiâde uma atividade de substituição do sexo, mas, concluído o
prefácio, ele fica sem saber o que fazer. Finda a temporada de caça, só
resta aos homens colecionar algo.
CS – Como os acadêmicos receberam a tua sátira ao que eles fazem?
Houellebecq – Não se manifestaram. Eles não têm acesso à mídia. Um
professor de Letras serve para formar outro professor de Letras. É
auto-reprodutivo. Mas não deixa de ser importante como vida social. Os
acadêmicos escondem-se atrás da indiferença. Mesmo que ficassem
indignados, porém, ninguém ficaria sabendo fora das universidades.
CS – A mídia para ti, na França, é quase toda de centro-esquerda. A alternância no poder político, um jogo entre gangues rivais?
Houellebecq – Le Figaro é de centro-direita. A alternância política é
isso mesmo: campos em lutas internas e externas pelo controle do poder.
Eles falam em nome da sociedade, mas isso é só retórica.
CS – O sushi é o único tema de consenso na França da atualidade?
Houellebecq – Entre as mulheres jovens e sofisticadas. Diz-se que não
engorda e passa uma imagem de refinamento japonês. É só peixe cru com
arroz. Eu não gosto. Os muito jovens preferem pizza. Quem busca um
terreno de entendimento entre pessoas sofisticadas, escolhe sushi.
CS – Entre o sushi e o patriarcado, o que tu escolhes?
Houellebecq – Os dois não são incompatíveis. O Japão era patriarcal.
CS– The Guardian diz que a originalidade francesa morreu. Verdade?
Houellebecq – Os ingleses vivem preocupados com isso. Não é inveja,
pois se acham superiores. Talvez seja a nostalgia de uma referencia.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 15/07/2015
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