Leonardo Boff*
Há poucas semanas dei uma entrevista por e-maisl à jornalista Aline Rodrigues Imécio da Revista Epoca.
Por razões alheias a ela, a revista não foi publicada. Como são muitos
que me fazem perguntas semelhantes aquelas que ela me fez, publico-a
aqui. Talvez possa interessar a alguns já que o Papa está nestas semanas
intencionsalmente peregrinando pelos países mais pobres da América
Latina: o Equador, a Bolívia e o Paraguai.
1-) A partir da posse do Papa Francisco assistimos a algumas mudanças
no comportamento tradicional de um Papa. Francisco escolheu dormir em
um aposento simples na Casa de Santa Marta, utiliza um crucifixo de
latão, recusou o carro oficial do Vaticano dentre outros privilégios. O
senhor considera que o Papa Francisco pode ser capaz de mudar a imagem
da Igreja católica ou pelo menos a imagem que temos do Papa tradicional?
R/ Cabe lembrar que o Papa vem de fora, não vem da velha cristandade
européia, agônica e sem futuro pela frente. O modelo de Igreja européia é
ter um Papa como uma espécie de faraó ou imperador romano, com todos
os hábitos, paramentos e títulos que herdou dos imperadores romanos,
desde a “mozzeta” (capinha sobre os ombros), símbolo do absoluto poder
imperial até a vida nos palácios e os hábitos que os palácios impõem. O
bispo de Roma, assim que ele gosta de se chamar que é o título mais
antigo, despaganziou a figura do Papado. Não vive no palácio mas numa
casa de hóspedes, Santa Marta. Renunciou a todos os símbolos do poder. A
famosa “mozzeta” ele a deu de presente ao secretário para que a
levasse para sua casa. Isso decepcionou os europeus em geral e irritou
os conservadores, como se o Papa tivesse perdido a dignidade do cargo. O
que orienta o Papa é a Tradição de Jesus que é anterior aos evangelhos
(estes começaram ser escritos 40 anos após execução de Cristo na cruz,
chegando até os anos 90 com o evangelho de São João). A Tradição de
Jesus que se encontra nas entrelinhas dos quatro evangelhos é o Jesus
histórico que suscitou uma grande esperança no povo, pregando o Reino de
Deus (crime de lesa majestade porque o único Reino é o de César em
Roma), contando estórias cheias de lições, priviligiando os pobres e os
considerados pecadores públicos, libertando as pessoas dos formalismos
para torná-las livres e disponíveis para o amor incondicional e a
inclusão de todos com uma abertura total a Deus, chamado de
“Paizinho”(Abba). Pois esses são os parâmetros que regem a conduta do
Papa. Ele certamente inaugurará uma nova dinastia de Papas que virão do
Terceiro Mundo, onde vivem quase 80% dos cristãos. O Cristianismo hoje é
uma religião do Terceiro Mundo, embora sua origem foi do Primeiro
Mundo. Essa Igreja do Terceiro Mundo era considerada periférica, mas é a
única que demonstra vitalidade, cresce e apresenta-se como uma força
moral e política na definição dos destinos da humanidade.
2-) Outra característica bastante presente em Francisco, e que se
mostrou ausente em Bento XVI, é a questão do carisma com o público.
Ratzinger, por ter um comportamento mais tradicionalista- embora tenha
surpreendido com sua renúncia- e fechado não se mostrou um Papa muito
próximo aos fiéis, enquanto Francisco faz esforços para que a todo
momento esteja perto dos católicos e tentando compreender o que eles
esperam da doutrina católica, prova disso foi a proximidade com os
brasileiros na última Jornada Mundial, no Rio de Janeiro. Diante disso,
minha pergunta é: o senhor acredita que o fato deste Papa ser mais
midiático, estar mais perto do povo, pode fazer com que o catolicismo
ganhe mais adeptos ao longo do tempo?
R/ O Papa Francisco deixou claro que não quer saber de proselitismo.
Ele quer conquistar as pessoas pela sedução da beleza, da compaixão e do
amor sem distinções que se derivam da mensagem de Jesus. Seu primeiro
escrito leva esse título:”A alegria do Evangelho”. Em razão disso faz
duras críticas à visão doutrinária e dogmática da Igreja que apenas
afasta os fiéis e esconde o que há de melhor na prática de Jeus e de sua
mensagem: uma mensagem de alegria para todo o povo, como diz o
evangelista Lucas. Evangelho em grego significa “boa notícia”. Para
muitos o evangelho e a Igreja se tornaram um pesadelo, tudo menos uma
alegria. Ele quer recuperar esse dado originário. Como Cardeal em Buenos
Aires já vivia o que mostra hoje: habitava num pequeno apartamento e
não no palácio, fazia sua comida, renunciou ao carro oficial, andava de
ônibus ou de metrô e subia as favelas sozinho para se entreter com o
povo, entrando nas casas e comendo o que lhe ofereciam. Era a
simplicidade completa. Desde jovem, no Colégio Maior havia feito o voto
de pobreza, no sentido de dar centralidade aos pobres e viver com os
pobres. Por isso escolheu o nome de Francisco para remeter-se a São
Francisco de Assis, o poverello e fratello, simples e irmão de todas as criaturas até do lobo de Gubbio.
3-) Existem algumas doutrinas da Igreja Católica que estão bastante
ligadas às tradições e que são alvo de muitas críticas. A não aceitação
da relação entre homossexuais, o divórcio e o celibato são algumas
delas. Porém, o Papa Francisco, desde que assumiu seu pontificado, têm
tocado nessas questões. Disse por exemplo, que o celibato pode mudar por
não ser um dogma de fé, vem discutindo uma melhor integração dos
divorciados na IgrejaCatólica e já disse que os homossexuais não podem
ser julgados ou marginalizados. O senhor acredita que, essas declarações
podem sinalizar umtipo de mudança à essas visões mais tradicionalistas
da Igreja Católica? Sesim, de que maneira ele poderia fazer isso?
R/ O Papa Francisco recupera na Igreja o bom senso, perdido em
grande parte pelo doutrinalismo e tradicionalismo. Essa visão
doutrinalesca comete verdadeiros escândalos como se fez na Afria quando o
Vaticano exigia que os bispos proibissem a camisinha, em países onde a
população está até diminuindo por causa da AIDS. Esta atitude coloca os
princípios acima da vida, o que é um erro teológico e uma desumanidade.
Este Papa coloca o ser humano no centro, com seus problemas, buscas,
desvios e esperanças. A Igreja deve acompanhar a cada grupo. Nas suas
palavras “nao deve ter um guarda de alfândega que deixa passar a uns e
impede a outros”. A Igreja não deve ser um castelo fehado,mas “uma casa
aberta para todos, que permite entrar a todos, pouco importa seu estado
moral ou doutrinal”. Mais ainda: “ela é como um hospital de campanha”
que tenta salvar os feridos, pouco importa se não ateus, muçulmanos ou
cristãos. Ele se apresenta como um homem plenamente humano, solidário
com todos os demais humanos, para além de sua ideologia e religião. Se
são humanos, logo são meus irmãos e irmãs, especicalmente, os pobres e
os feitos invisíveis na sociedade. Isso pertence à Tradição de Jesus que
é antes um modo de viver, mais uma espirtualidade que um conjunto de
verdades, espiritualidade feita de valores humanitários de
solidariedade, cuidado e amor. Essa é a grande revolução na Igreja e da
igreja: deslocar o centro: da Igreja para o mundo e do mundo para os
pobres. Isso custa muito aos cardeais e bispos que, vaidosos, se
consideram ilegitimamente “príncipes da Igreja”. Estes resistem pois o
poder é sempre tentador pelas vantagens pessoiais que confere. O Papa
sabe bem distinguir o que é mera disciplina que pode mudar como o
celibato, ou a relação com os homoafetivos dos quais disse que “eles
trazem qualidades e virtudes que enriquecem a Igreja”. Quando e onde se
ouviu isso antes? Está aberto a dar a comunhão aos divorciados porque
eles são os que mais precisam e dar uma benção a sua união, pois o amor
deles, conta diante de Deus. Como não deve contar para a Igreja que
prega que o nome verdadeiro de Deus é “amor”?
4-) Com as tendências à Reforma da Igreja, o Papa Francisco tem
despertado antipatia de alguns membros da Cúria Romana, dizem que a
pressãopode ser tamanha, que o ex-porta voz de Bergoglio na Argentina,
Guilhermo Marcó, disse que não seria uma novidade que Francisco, assim
como Bento XVI, renunciasse. O senhor acredita que às pressões da Cúria
Romana a Francisco possam ser tamanhas ao ponto de ele sentir o desejo
de renunciar?
R/ Essas pessoas não conhecem quem é Bergoglio ou o Papa Francisco.
Ele é terno e fraterno como São Francisco de Assis para tcom todos
especialmente com os mais discriminados. Mas é um jesuita. E como tal é
um homem de exímia formação, de estratégia e de sabedoria no manejo do
poder. Não sem razão mandou diretamente para a prisão o núncio
apostólico em Santo Domingo quando se comprovou inequivocamente que era
um pedófilo obstinado. Foi chamado a Roma e o Papa logo o encarcerrou. O
mesmo fez com aquele alto funcionáro (arcebispo creio) do Banco
Vaticano que veio da Suiça com um aviãozinho com cerca de 30 milhões de
euros, dinheiro de lavagem dos mafiosos e de alguns cardeais. Do
aeroporto foi direto para a prisão. Esse Papa não é de se intimidar.
Sofre ameaças de morte, o que já lhe foi comunicado. Ele
sorridentemente respondeu: eu não pedi a Deus que me fizesse Papa. Então
que Ele me proteja. E se me matarem, é sinal que Deus me chamou e vou
contente para cair em seus braços de Pai amoroso. Aqui se nota a fé
profunda, como total despojamento e a determinação deste Papa que
conheceu o que foi a bárbara repressão dos militares argentinos.
5-) Dentre as reformas que Francisco pode fazer, o senhor acredita
que ele possa dar mais espaço para as mulheres na cúpula da Igreja?
R/ Ele disse várias vezes: não é possível não dar mais espaço às
mulheres. Elas são mais da metade da Igreja e têm direito de participar
nas decisões sobre o caminho que a Igreja deve tomar. Aventa-se a idéia
até de que possa fazer cardeiais a algumas mulheres notáveis por seu
engajamento na Igreja. Cardeal é um título e não precisa a ordenação
sacerdotal prévia, como era o Cardeal Richilieu ou o Cardealo Mazarino
na França que eram grandes políticos e leigos. E eu acrescentaria um
argumento em favor das mulheres. Elas são mais da metade da humanidade e
da Igreja. E são as mães e as irmãs da outra metade feita dos homens.
Logo a importância delas é fundamental. Finalmente elas nunca trairam
Jesus, enquanto os Apóstolos fugiram e Pedro o negou. Foram as primeiras
testemunhas do fato maior da fé cristã que é a ressurreição de Jesus.
Foram apóstolas dos apóstolos.
6-) No ano passado, o Papa Francisco manifestou interesse em ler o
livro do senhor “Igreja: Carisma e Poder”, em que a discussão
hierárquica da Igreja é discutida. Que tipo de mudança o senhor
acredita que isto possa representar?
R/ Aquilo que o Papa vem dizendo sobre a Igreja, seus equívocos, as
críticas que faz aos conservadores, chamando-os de gente de
“quarta-feira de cinzas” , gente “azeda como os vinagre”, tristes como
se fossem ao próprio enterro, é muito mais grave do que eu escrevi no
livro “Igreja: carisma e poder” em 1982 e ajuzado pela ex-Inquisição em
1984 em Roma. Eu tentei aplicar os princípios da Teologia da Libertação
para as relações internas da Igreja. E ai me dei conta como ela,
enquanato instituição, é absolutista, autoritária, não respeita os
direitos humanos para defender sempre a “santidade da instiuição” (veja a
ocultação dos pedófilos enquanto pode até ter que reconhecer que os
haviam não somente entre padres, mas também entre bispos e até entre
dois cardeais). Se ele tivesse dito naquele tempo seria condenadomuito
mais que eu. Agora vivemos em tempos de verdade e de liberdade. Esse
Papa ama a transparência, renunciou a excepcionalidade da Igreja como se
somente ela é a portadora legítima da mensagem de Jesus. Em ecumenismo
já definiu a linha: caminhemos juntos com nossas diferenças mas todos a
serviço do povo e do mundo. Esse recíproco reconhecimento e a missão
comum como serviço aos demais é o passo que faltava dar e ele, com bom
senso apenas, deu.
7-) Por fim, o que o senhor espera do Papa Francisco e da Igreja Católica para os próximos anos?
R/ Se não o liquidarem (cuidado com os mafiosos que foram na Calábria
todos excomungados pelo Papa e eles são vingativos e se associam à
gente da Cúria Romana) eu creio que virá uma grande retomada da
significação ética, religiosa e política do Cristianismo que é maior
que a Igreja. Já lhe foi sugerido e eu o fiz por carta que convocasse
uma Assembléia de todas as Igrejas cristãs para ver como podem enfrentar
a globalização que é perversa para os pobres e ao mesmo tempo abre um
espaço novo para o encontro dos povos e a possibilidade de entrarem em
contacto com a mensgem cristã. Ele nos respondeu que quer fazer isso,
mas somente depois de colocar a Igreja internamente em ordem, com a
reforma da Cúria, quer dizer, com as instâncis de poder e de condução da
Igreja. Isso não é faicl, pois os católicos são uma inteira China, um
bilhão e duzentos milhões de fiéis. Como coordenar essa imensa mole de
fiéis? Somente com a decentralização, com um pequeno corpo de peritos em
poder religioso que supervisionam as comunidades para manter um mínimo
de unidade na diversidade. Para isso aIgreja deve se descodentalizar, se
desclericalizar (fazer o celibato optativo), dar mais espaço às
mulheres (quem sabe até o acesso ao sacerdócio como fizeram várias
igrejas cristãs muito próxima como é a anglicana), se despatriarcalizar
no sentido de só homens terem acesso ao poder religioso e incluir mais
os leigos e leigas não na simples participação, coisa que já fazem, mas
nas decisões concretas sobre que caminhos tomar neste mundo globalizado.
Depois disso viria um encontro com todas as religiões e caminhos
espirituais para que juntos mantenham a chama sagrada que arde dentro de
cada pessoa que as impulsiona para fazer o bem, amar a verdade e
superar todas as divisões e exclusões. Isso seria a glória. E no fundo é
isso que todos esperam dos cristãos e das pessoas religiosas e creio
que corresponde ao que Jesus, no fundo, queria quando andou entre nós.
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* Teólogo. Filósofo. Escritor.
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2015/07/07/que-mudancas-o-papa-pode-introduzir-na-igreja/
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