Atração desta quinta na Flip, argentino mora em Paris e vive o paradoxo de escrever em uma língua que não é falada
onde mora
PARATY — O argentino
Diego Vecchio trocou Buenos Aires por Paris aos 22 anos para estudar a
psicanálise de Jacques Lacan. Hoje, ainda prefere a língua materna ao francês.
Tradutor e professor de literatura latinoamericana e escrita criativa na
Université Paris 8, Vecchio vive o paradoxo de escrever em uma língua que não é
falada onde mora e de publicar livros no país natal, a quilômetros de distância
de sua residência. Mas o espanhol é para ele “uma maneira quase instantânea de
estar conectado com a Argentina”. Em “Micróbios” (Cosac Naify), de 2006,
primeiro livro do autor no Brasil, o argentino criou nove contos satíricos a
partir de uma temporada hipocondríaca que se traduz em personagens doentes pela
leitura e pela escrita.
Escrever é uma
forma de retomar o contato com a língua materna?
Esta pergunta é um
problema porque desde que viajei para Paris a fim de estudar psicanálise me
coloquei numa situação singular para um escritor que é escrever em um país onde
ninguém pode me ler espontaneamente, a não ser que saibam espanhol, e publicar
em um país em que não vivo. Estou duplamente deslocado. Me pergunto por que
continuo escrevendo em espanhol já que a esta altura, 23 anos depois, poderia
escrever em francês. Creio que, efetivamente, é uma maneira de viajar e estar
na Argentina sem a necessidade de pegar um avião, suportar 13 horas de voo e
pagar o preço das passagens, cada vez mais caras. Escrever é uma maneira quase
instantânea de viajar e de estar conectado com a Argentina e com que ela
representa: minha infância, os amigos e a língua materna.
Você já falou da
difícil relação dos autores argentinos com a sombra de Jorge Luis Borges. Como
se distanciou dela?
Antes de
“Micróbios”, escrevi um livro de ensaios sobre Macedônio Fernandez. Uma maneira
cômoda de apresentá-lo é que foi o mestre de Borges, embora a relação deles
seja mais complexa. Cheguei a Borges por meio dele e isso foi um caminho
inesperado. Fernandez faz as mesmas perguntas de Borges, mas de um ponto de
vista distinto. O problema da filosofia e da literatura em Borges é legível, já
Fernandez aplica uma forma de hermetismo. Isso também acontece com o humor.
Borges usa a filosofia para transformar em formas literárias. E Fernandez faz
um pouco a operação contrária: toma o humor ou a literatura para transformar em
formas filosóficas. Essa leitura me ajudou a manter certa distância de Borges,
que é como um buraco negro, quando alguém cai em seu campo de gravidade é
absorvido.
Em seus livros,
onde está o humor?
Quando leio sou
muito mais sensível aos textos cômicos do que aos sérios. O mesmo acontece
quando escrevo. O humor encarna algumas das formas literárias mais exigentes.
No humor, há sempre um duplo sentido. Para fazer uma piada, para escrever um
texto literário é preciso sempre dizer algo falando outra coisa. O humor é
fundamental como procedimento para torcer as palavras e o sentido. Acredito que
é uma forma de abordar temas complexos ou sérios sem adotar uma postura
professoral ou arrogante. Nos meus livros sempre há muita informação, mas
sempre tento escrever de uma posição contrária à de autoridade. O humor permite
questionar a posição do saber e também os lugares comuns de nossa cultura.
Em “Micróbios”,
informações médicas são o fio condutor. Como chegou a elas?
Não estudei
medicina. E o conhecimento que há no livro é muito simples. Tirei de um
dicionário de medicina Larousse dos anos 1930, com informações desatualizadas.
Em geral, o que me interessava não era a informação, mas as palavras. A
medicina inventa muitas palavras e termos para poder designar fenômenos. E os
escritores fazem o mesmo: inventam termos para designar a realidade. Às vezes,
o dicionário me dava palavras que não me interessavam pelo sentido, mas sim por
como soavam. Depois de trabalhar muito a partir destas palavras, minha
imaginação hipocondríaca fez o restante do trabalho.
Este livro é um
efeito colateral da hipocondria?
Quando criei o livro
não tinha qualquer preocupação hipocondríaca, mas, de alguma maneira, ao
escrever sobre doenças, fiquei muito mais sensível às manifestações corporais,
e me tornei um hipocondríaco. Acredito que os hipocondríacos têm uma forma de
saber sobre as enfermidades e sobre o corpo que é muito interessante porque não
parte de um saber estipulado por uma instituição. Está fundado na imaginação.
Nesse ponto, os hipocondríacos são como escritores potenciais, têm grande
capacidade de imaginar situações possíveis, não reais.
E se curou?
Foi um período de
três ou quatro anos, mas superei. Conforme as traduções do livro vão sendo
feitas, me ajudam como um tratamento (risos). Mas a verdade é que nunca cheguei
a uma situação delirante. Em geral, os livros geram um efeito colateral, como
um ciclo vicioso. O livro depois de “Micróbio” foi sobre ursos de pelúcia
(“Osos”, sem tradução no Brasil). Foi como uma espécie de retorno à infância e
meus amigos começaram a me presentear com ursos de pelúcia. Cheguei a ter 200
ursos que não sabia onde colocar em casa porque se enchiam de poeira.
A escrita é
doença ou cura?
As duas coisas.
Acredito que a escrita tem duplo valor. Pode ter um valor terapêutico, pode
curar, mas não acredito somente nesta possibilidade. É uma teoria um pouco new
age que a literatura sirva para elevar o espírito e fazer as pessoas mais
felizes. Isso é verdade em parte porque a escrita pode fazer adoecer, pode ter
um efeito patológico. Tissot, que é um médico que eu cito na epígrafe de
“Micróbios”, escreveu um livro sobre as enfermidades que produzem a vida de
escritor. A escritura, dependendo das circunstâncias e dos momentos, pode ter
valor catártico e estar a serviço da felicidade, mas também pode ter seu lado
obscuro e patológico.
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Reportagem por Thais Lobo
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