Consumidor é bombardeado com dezenas de e-mails e
mensagens, somente porque consultou determinado produto
O combate aos assédios moral, sexual e judicial tem avançado a partir da
conscientização e da mobilização da sociedade. Mas pouco evoluímos para
nos resguardar do assédio de marketing por meio de algoritmosque mapeiam nossos gostos,
preferências, comportamentos e necessidades. A justificativa seria
proporcionar melhores experiências aos clientes. Há diversas situações,
contudo, que constituem assédio, sem qualquer eufemismo.
Os
algoritmos já escolhem, por assim dizer, os conteúdos de textos e vídeos que
iremos assistir, dentre os milhões postados nas redes sociais. Essa
personalização, contudo, limita o que assistimos e lemos.
Há,
também, o risco de manipulação de dados, decorrente das informações
armazenadas sobre cada cliente (atual ou potencial). Você poder ser levado, por
exemplo, a julgar que determinada proposta de produto ou serviço seja a melhor
(em preços, condições e características) para as suas necessidades, quando, na
verdade, se trate simplesmente de uma tentativa de venda. Quem vende não dirá a
você que precisa de outro fornecedor que tenha uma oferta melhor.
Além
disso, há exageros injustificáveis, como bombardear um possível consumidor com
dezenas de e-mails e mensagens, somente porque consultou determinado produto.
Fazer isso com um já cliente, para que compre mais, é um desserviço, e uma ação
que pode gerar até rompimento com a marca.
Não
confundir assédio algorítmico (que tem fins comerciais) com assédio virtual, o
cyberbullying, que é um crime cibernético, uma perseguição repetitiva,
agressiva e intencional.
Estamos
imersos na Quarta Revolução Industrial, que teria começado em 2011, segundo
Klaus Martin Schwab, fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial. Para
ele, essa revolução se caracteriza pela fusão dos mundos físico, digital e
biológico, o que cria grandes promessas e possíveis perigos.
Antes,
tivemos a Primeira Revolução Industrial, na segunda metade do século 18, com
substituição do trabalho artesanal pelo uso de máquinas; a Segunda, a partir de
1850, com o desenvolvimento das indústrias químicas, elétricas, de petróleo e
aço, a Terceira, de 1950 em diante, com substituição da mecânica analógica pela
digital. Desta, fazem parte os microcomputadores, a Internet e a robótica.
Como a
tecnologia se desenvolve rapidamente, estamos nos adaptando ainda a tantas
mudanças. O Marco Civil da Internet (2014) foi providencial para ordenamento
jurídico da rede mundial. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que
passou a vigorar no ano passado, regula as atividades de tratamento de dados pessoais.
Continuo
acreditando que ainda devamos estabelecer uma lei do comércio eletrônico
–talvez virtual ou digital–, como estava previsto no trabalho da comissão de
juristas que propôs atualizações no CDC (Código de Defesa do Consumidor), em
março de 2012.
* Advogada especializada na área da defesa do consumidor.Imagem da Internet
Eu
vivi os cinquenta anos em cinco de JK, o suicídio de Vargas, a renúncia
de Jânio, a resistência dos coronéis a Jango, o parlamentarismo de
ocasião, o golpe e a ditadura militar e uma alvissareira abertura
democrática
Numa vida longa, recordações se misturam a fantasias, miragens e pesadelos. Acabam-se os projetos...
Talvez nisso resida a irritante ambiguidade dos idosos, pois envelhecer
é descobrir que abotoar uma camisa é mais complicado do que explicar
uma época, um livro ou um regime político.
O
pouco conscientizado preconceito cósmico contra os velhos tem raiz na
consciência da fragilidade física, combinada a uma enorme e orgulhosa
resignação diante do fim da vida – uma dimensão que inexoravelmente
todos os idosos são forçados a vivenciar.
Como um filme meio
terminado, a vida longa desbota pessoas e circunstâncias, mas permite
enxergar, com nitidez de lupa, repetições, reprises, retornos – os ossos
dos mortos. O verdadeiro caráter de culturas, sociedades e pessoas.
Nela, se enxergam melhor o falso, a ignorância e a hipocrisia – esses
companheiros do ser e estar humanos.
Como é que fui gostar
daquele poeta afogado no seu sentimentalismo barato? Como é que eu fui
simpático àquela ideologia política ultrarreducionista? Onde eu estava
com a cabeça quando fui enganado e, pior que isso, enganei a mim mesmo
escondendo minhas intenções, desejos e invejas? Como eu não saquei que a
mentira não tem desculpa e que não se deve mentir para ninguém e,
sobretudo, para “desconhecidos” – aqueles para os quais o mentir vira um
enganar malandro?
A culpa é minha ou, como tantos outros, sou apenas mais uma vítima de um enredamento sociopolítico da pior qualidade?
Os velhos são condenados à repetição.
Eu vivi os cinquenta anos em cinco de JK, o suicídio de Vargas, a
renúncia de Jânio, a resistência dos coronéis a Jango, o parlamentarismo
de ocasião, o golpe e a ditadura militar e uma alvissareira abertura
democrática. Achei que o governo petista (que, como dizia Lula, não
podia errar) ia efetivamente mudar, como indubitavelmente fez o de FHC
com o Plano Real (gerador da tal herança maldita...).
Meus
enredos retornam, meus temores são antigos. Minha esperança de ver o
mundo público brasileiro livre de formalismos legais obviamente
contraditórios e cheios de múltiplas hipocrisias, hoje expostas
digitalmente, é diariamente arrasada.
Será que é o meu
isolamento niteroiense que me faz ver fantasmas na “política”? Esta
pobre idealização nacional do poder exclusivamente como vantagem pessoal
e força; como capacidade de desordenar, fingir e corromper? Será o
“mandonismo”, traço que (como dizia a socióloga Maria Isaura Pereira de
Queiroz, uma pensadora do Brasil onde não cabem mulheres) estaria hoje
mais agudo do que nunca, confirmando a nossa repetitiva vocação
aristocrática e monárquica que sempre volta?
Estou farto de ver
os mesmos filmes. Liberais abrem portas para protoestalinistas, xerifes
viram bandidos e pilantras viram heróis. No resfolego do poder à
brasileira, todos inovam, repetindo velhos chavões.
Thomas Mann
dizia que a repetição abole a história. Repetir é abolir a diferença
entre o ser e o ter sido. As repetições estão impressas nas compulsões e
dependências. Elas reiteram e revelam velhos e mesquinhos modos de ser,
ter e estar.
No Brasil, a racionalidade burocrática
transforma-se em papeladas ritualísticas. Max Weber falava da burocracia
como uma jaula de ferro, na qual todos estavam enclausurados, mas no
Brasil, ela é uma gaiola de ouro da qual escapam, por meio de
malabarismos jurídicos, criminosos agasalhados pela “política”. A nossa
resistência à universalidade e ao anonimato da lei é imoral.
A
reação criminosa do governo à pandemia é um exemplo perverso do peso das
nossas hierarquias. Nela, “superpessoas”, conforme digo no meu velho
ensaio sobre o “você sabe com quem está falando?”, repetem os
privilégios de família e compadrio. O mandonismo nega a vacina universal
em favor da simpatia interesseira ou ocasional. Morre meio milhão por
vezo da danação do supremo mandatário do País.
Ser fiel a valores
democráticos é um sinal de inferioridade – de “babaquice” –, conforme
ouço até hoje. O resultado do privilégio de estar “por cima das normas”;
de correspondê-las às suas conveniências é a marca do autoritarismo nas
sociedades de republicanismo formal. Repúblicas que se recusam a
discutir honestamente o protagonismo dos resíduos de fidalguia e da
escravidão em confronto com a imensa tarefa imposta pelo igualitarismo.
Não deve espantar que estes sistemas se caracterizem pela repetição!
Pela intrusão de ‘aristocratismos’ nos seus ‘republicanismos’ e
vice-versa. O resultado é o populismo malandro e os absolutismos cujos
governos têm uma linguagem para os seus seguidores (“Deus acima de tudo,
a pátria acima de todos” e, é claro, “eu controlando tudo!”) e outra
para o público externo. Aí está o centro do despotismo repetitivo de
repúblicas mal-acabadas, conforme ensina Raymundo Faoro.
P.S.: Volto, se os planos não forem modificados, na primeira
quarta-feira de agosto. Mais velho, mais grato, mais curtido e mais
incerto.
*É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’
Da minha parte, sinceramente, quero que me esqueçam por completo no futuro
A
frase do título é perigosa. Tenho inimigos e os mais empenhados no ódio
chegam até a ler o título do que eu escrevo. Já imagino que
responderiam com “nenhuma” ou outro dito irônico. Ficarão surpresos: a
crônica, que será lida até o fim por olhares mais benevolentes, concorda
com meus detratores.
A
pergunta é existencial. Eu a fiz, uma vez, vendo uma excelente palestra
do meu amigo Mario Sergio Cortella. Depois, li o livro dele: Viver em Paz para Morrer em Paz, se Você não Existisse, que Falta Faria? (ed. Planeta). Como sempre, o filósofo traz grandes ideias, citações e perguntas inquietantes. Aprendo muito.
Não sintetizarei o livro do londrinense. Pensarei em outra direção. Fernando Pessoa, tratando do tema do suicídio, fez o poema Se te Queres Matar.
É um texto brilhante que procura estimular o amor pela vida com...
diminuição da importância do viver. No fundo, ele quer diminuir o foco
de importância que pode engatilhar desilusão. Em outras palavras: pode
ser que, por vezes, a tristeza diante da avaliação da vida decorra de um
sentido que deveríamos ser mais extraordinários, com feitos intensos e
uma alegria quase de Instagram. O poema desarma, pela ironia, o sentido
de importância que pode preexistir à decepção. Explico-me: eu me
considero insubstituível? Minha morte lançaria o mundo no caos e na dor?
Bem, isso nada diz do momento atual. O luto futuro por mim não me
alegra hoje e nada explica do momento que vivo. O argumento é fraco para
que eu me anime. Mais: se pessoas do porte de um Einstein ou de um
Gandhi morreram e tudo seguiu normalmente, seria excessiva presunção
imaginar que eu, menos do que eles (muito menos), provocaria uma comoção
superior. Revisitemos Pessoa: “Fazes falta? Ó sombra fútil chamada
gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá
tudo sem ti. Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...”.
Já ouvi
alguém irritado aí: “Leandro, eu sustento pessoas, faço coisas
importantes, eu farei falta”. Sim, minha querida leitora. Sim, meu
estimado leitor. Como eu, seu passamento será sentido por aqueles que:
a) dependem do seu trabalho; b) contam com sua proteção; c) têm alguma
estima por você. No fim do mês, sua ausência será muito forte. Os
boletos por vencer serão suas maiores carpideiras. Claro, se você pode,
um bom seguro de vida vai diminuir a dor de todos. Um extraordinário
seguro vai transformar lágrimas em sorrisos. E, mesmo se não houver
heranças, as coisas se ajeitam em alguns meses. Chico foi mais direto e
cantou que mesmo o malandro é substituível e morre sozinho: Vai terminar
moribundo / Com um pouco de paciência/ No fim da fila do fundo / Da
previdência / Parte tranquilo, ó irmão/ Descansa na paz de Deus/
Deixaste casa e pensão / Só para os teus/ A criançada chorando / Tua
mulher vai suar / Pra botar outro malandro / No teu lugar.
E a
parte afetiva? O pior político que você possa imaginar, o mais execrável
homem público do presente ou do passado, teve quem o amasse. Há uma mãe
zelosa, uma esposa dedicada, filhos diletos: até os canalhas são
pranteados por alguém. Lembre-se: antes de alguém ser filho da p...
aquele ser foi filho. Sim, haverá pranto por algum tempo. Pessoas boas,
porventura, despertem um sentimento intenso de falta por muitos anos,
porém, fato óbvio: aquele que sente a dor continua vivendo, comendo,
tomando banho e trabalhando. Nenhuma falta parece impedir a existência
dos enlutados. Amei meu pai e minha mãe com zelo. Senti a morte deles
como uma catástrofe. Continuei trabalhando, escrevendo, estudando,
amando e me irritando com o mundo. O que isso quer dizer: minha vida
seguiu, como a de milhões de órfãos. Não existem lágrimas pela sua
trisavó. Desaparecerão por nós, igualmente.
Sim, eu faria falta e... ela seria superada. Minha ausência no futuro
não responde à pergunta do momento em curso. Talvez o melhor seja pensar
em que falta a vida me faria. Se eu conseguir responder a isso, posso
pensar em como viver, como andar com protagonismo. No fundo, a questão
principal é sobre a vida em mim agora, não o que eu provocarei quando
ela tiver se esvaído. Como viver, como enfrentar problemas, como ser uma
pessoa inteira vivo e não uma ausência pungente na morte. É a pergunta
do príncipe Hamlet: “Será que é mais nobre sofrer na alma as pedradas e
os flechaços da cruel fortuna ou pegar em armas e enfrentar este mar de
sofrimentos e assim pôr-lhes um termo?” (Hamlet. Ato 3, cena 1.
tradução de Elvio Funck. Movimento-Edunisc). Para quem se interessa
pela dúvida do príncipe, ele também reclama na “morosidade da lei e a
insolência dos que têm cargos”.
Que intensidade darei a minha
resposta ao Hamlet? Que vida plena tentarei levar, indiferente, como
creio, a quaisquer faltas que eu possa despertar quando partir? Da minha
parte, sinceramente, quero que me esqueçam por completo no futuro. Não
me interessa o vazio futuro, apego-me à plenitude presente. Quero fazer
falta hoje, no inverno da nossa desesperança, quero tomar a fundo a taça
da vida e o afeto de quem é importante. Quero ler agora, ser agora,
amar enquanto estou vivo. Depois? Irrelevante: não escutarei mais choros
ou risadas.
Leiam o livro do Cortella, assistam às palestras
dele sobre o tema, aprofundem o Hamlet e, entre uma coisa e outra,
pensem em quanta vida existe hoje. É mais útil do que a falta futura. A
vida de agora precisa de esperança.
*É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS
Em 1864, um inverno rigoroso assolava Moscou. Seria mais um de muitos
na quase sempre gélida capital russa, não fosse pelo fato de que Fiódor
Dostoiévski (1821-1881) precisava se desdobrar entre os cuidados com a
mulher, que morria de tuberculose, e o esmero com que se debruçava sobre
seu novo trabalho, uma ode à vida, à beleza do viver, às incongruências
de um homem frustrado, que se retira do serviço público — atividade a
que se dedicava apenas para ter o que comer — e vai morar num cubículo,
num bairro afastado da cidade, e mesmo assim enfrentando apuros de
dinheiro.
Tudo nele — e no próprio Dostoiévski, como se vai ver — é
dúvida. Dostoiévski talvez seja dos escritores mais aferrados à dúvida
de que se tem conhecimento. Em “Memórias do Subsolo”, o livro em
questão, por meio desse protagonista, agoniado, desprotegido,
desacorçoado, Dostoiévski encarna a dúvida de tudo, inclusive das
certezas, ou melhor, principalmente das certezas. O personagem tão
irrelevante, tão pequeno e apequenado que nem merece ter recebido um
nome, é instável, como todos os tipos de Dostoiévski, mas um homem de
inteligência invulgar, capaz de conduzir o leitor por um labirinto de
pensamentos que ele faz parecer completamente irrefutáveis só para,
logo, a seguir, botá-los todos à prova. “Memórias do Subsolo” é o
romance de formação de Dostoiévski, superando os imprescindíveis “O
Idiota” e “Os Irmãos Karamázov”, justamente por introduzir o público no
universo de seu autor. Por meio de “Memórias” é que o leitor vai começar
a ter alguma ideia do quão fundo é o buraco existencial dostoievskiano.
É
bem provável que tenha sido o novelista americano William Faulkner
(1897-1962) a definir com maior exatidão o russo. Para Faulkner,
Dostoiévski era como o vagalume, que ilumina muito pouco quando pisca,
mas cuja pequena luz torna visível a imensa escuridão de que está
cercado o homem. Nessa pouca claridade, o menor dos livros de
Dostoiévski, o autor escreve páginas que funcionam como um farol sobre a
complexidade do espírito do homem. “Memórias do Subsolo” se propõe a
guiar quem o lê ao mais longe de sua alma, do ponto de vista moral,
psicológico e filosófico. Um livro fundamental, portanto.
O livro
encampa o paradoxo entre a vida como ela se apresenta e a vida como ela
deveria ser. À medida que o homem conquista coisas, mais coisas anseia
por conquistar. Todo pontuado pela mística religiosa, a obra aborda a
necessidade do homem se convencer de que a única coisa que pode ser
mesmo sua é a alma, e que, para possui-la verdadeiramente, é preciso
observar a religião, mudar de vida, se converter — e nunca pensar que o
processo está findo. A visão de mundo de Dostoiévski se aproxima muito à
de São Paulo de Tarso, antes Saulo, que precisou cair do cavalo a
caminho de Damasco, na Síria, e ficar cego por algum tempo, a fim de ver
que precisava de Deus. “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, o
ensinamento máximo do apóstolo, parece ter sido o lema de vida de
Dostoiévski, em especial depois de acontecimentos trágicos e dramáticos,
que teimavam em lhe suceder.
“Todo aquele que vive mais de
quarenta anos é um canalha. Posso dizê-lo porque também eu hei de viver
sessenta, setenta, oitenta”, diz Dostoiévski pela boca de seu personagem
principal logo na primeira parte da história. Ele viveu quase sessenta,
se equilibrando entre suas muitas suspeitas e em disfarçá-las o máximo
que pudesse, ao menos no seu círculo social, a fim de sobreviver. A
literatura era para Dostoiévski muito mais do que um ganha-pão
prazeroso; por meio do que escrevia, Dostoiévski exorcizava seus
fantasmas, queimava suas bruxas e, claro, desconstruía suas próprias
certezas. “Memórias do Subsolo” mesmo é todo sedimentado sobre
pseudocertezas, falsas redenções, que ficam oscilando num vaivém de
impressões trocadas entre autor e leitor — sendo que Dostoiévski não faz
questão de esclarecer coisa alguma, muito menos de cara.
Dostoiévski,
contudo, humanista que é, não nos deixa soçobrar no mar do
questionamento. Fica premente em se chegando à segunda parte do livro
sua porção filósofo, que pergunta, mas igualmente responde e, melhor,
suscita novas meditações sobre o que está sendo dito. A esperança é uma
vã quimera para Dostoiévski. Ninguém pode esperar da vida coisa alguma,
muito menos conhecer o mistério por trás de cada coisa. Dostoiévski
brinca com esses dois conceitos, quais sejam, a avidez humana por
sabedoria e o quão deslocado o homem está num mundo que, na verdade, não
conhece — nem vai conhecer jamais. Nunca se sabe com qual dos dois quer
nos atacar.
Mikhail Bakhtin (1895-1975) talvez tenha sido o
intelectual que mais próximo chegou de conhecer Dostoiévski, não se sabe
se porque russo também, ou por igualmente ter ido parar na cadeia por
“crime” de opinião. Em seu “Problemas da Poética de Dostoiévski”, o
filósofo e linguista defende um aspecto importante em “Memórias do
Subsolo”: as muitas naturezas que constituem a alma do homem, conceito
definido por ele como polifonia. Para Bakhtin, considerar o homem a
reprodução da imagem de Deus é que é a verdadeira heresia. O homem
poderia ser tomado como uma criatura à semelhança divina por sua
polifonia, isto é, uma algaravia de vozes dissonantes berrando num
espírito irrequieto, sem se importar com o que seria certo nem errado,
apenas levantando e derrubando hipóteses, tentando se manter vivo no
mundo, um lugar hostil e limitado demais, para ao fim de tudo, poder
habitar o Reino dos Céus. Se merecer.
O herói, ou melhor, o
anti-herói, de “Memórias do Subsolo” é um ressentido, um ser maltratado
pela vida que foi se refugiar numa cloaca, sem, entretanto, abdicar de
suas ilusões. Nenhum dos tipos de Dostoiévski é nunca uma coisa só, e
com este não é diferente. O personagem nos provoca dó, nos fomenta uma
revolta por sua condição, mas também asco. Dostoiévski o faz de caso
pensado: quer com isso nos jogar em rosto nossa própria hipocrisia,
confrontar a inconsistência de nossas reações e sentimentos, sempre
visando à coroação da suspeita e o expurgo do racionalismo. Para ele, o
leitor deve se aferrar é à dúvida, como um mendigo a um prato de sopa
numa noite fria de inverno.
A figura do funcionário público
aposentado, o sujeito medíocre que odiava seu ofício, é certeira quanto a
causar no público o sentimento constante de que o mundo é um imenso
pântano, lodoso, repugnante, movediço, em que é loucura se tentar
construir qualquer coisa de verdadeiramente sólido. O autor-personagem,
de uma repulsa admirável, nos seduz por ser tão realista em sua
narrativa cheia de metáforas, como quando alude ao Palácio de Cristal — o
ideal de socialismo perfeito, delírio de todo o povo russo, que só
serviu de fundamento para arbítrio, miséria, perseguições e morte.
Em
dado momento da trama, no tomo “A propósito da neve molhada”, vem à
tona Lisa, uma jovem prostituta, contra quem o personagem mostra a
crueldade que represara por toda uma vida. O infeliz passara quarenta
anos, como é dito na primeira parte, enganado, mas seu consolo é provar
que assim acontece com todos: somos todos ludibriados pela vida,
preterindo a realidade pelas divagações, porque divagando não se sofre.
“Memórias
do Subsolo” foi recebido sem entusiasmo pelo público. Todo cercado pelo
melhor da filosofia, a ponto de ser tomado por ter sido escrito por
Nietzsche (1845-1900), um livro tão pleno dos sentimentos mais
característicos da contraditória alma humana não se tornou conhecido
junto à sociedade da época. Bóris Schnaiderman (1917-2016), tradutor de
Dostoiévski para o português, inteligentemente lembra num dos prefácios
que assinou que “os contemporâneos muitas vezes são os piores
intérpretes de uma obra”. E é a mais aterradora verdade, haja vista a
identificação do enredo e seus personagens com o século 20, um período
de inconstância, quebra do estabelecido, imposição das incertezas, do
avanço das ideologias marxistas, de um lado, e do imperialismo e
liberalismo econômico, do outro. Dostoiévski era mesmo um gênio, um
homem muito à frente do tempo em que viveu.
Em “Memórias”, resta
cabal a incapacidade do homem quanto a entender a realidade tomando por
base a percepção de suas próprias contradições. O homem, agarrado que
está a uma pálida ideia de certeza, vocifera, tentando a todo custo
defender seus frouxos argumentos a respeito de qualquer asnice. O homem
não admite sempre levar uma rasteira da realidade, muito menos ser toda a
vida colocado diante da tacanheza de suas ambições, o que lhe provoca
ainda mais sofrimento.
“Memórias do Subsolo” é revolucionário ao
provar que a vida do homem, tudo o que pensa ou sente é ilusório, sempre
se valendo da premissa da dúvida. Em manifestando ideias e sensações
meramente fantasiosas, o homem sofre e peca, mas só o faz porque não
compreende sua própria alma. Essa incompreensão advém do fato de que não
vai até lá, e não vai porque sua pequenez o impede. Eis o paradoxo
dostoievskiano: ou o homem se conhece ou está fadado a repetir seus
erros mais comezinhos ad aeternum. Somente se conhecendo, o homem é
capaz de conhecer também a sociedade em que está inserido, identificar
que condutas tomar ou não e decidir entre escapar da irrelevância ou se
tornar um pária.
O homem não pode se conformar com a segunda
alternativa e passar a vida se lamuriando. Aqui, a religião volta a
pontuar a narrativa com mais força quando Dostoiévski desvela sua face
perniciosa, que daria ao homem as desculpas de que sempre precisou para
justificar sua tibieza. A religião molda o caráter do homem, para o bem
ou para o mal. Por meio dela, conhecemos as primeiras noções acerca de
virtude, pecado, bondade, perversão, salvação, danação eterna — e sua
importância para evitar a última. Daí a natureza opressora (e perigosa)
que pode adquirir.
Dostoiévski foi um homem dado a paixões e cheio
de ímpetos. O hábito de ler em voz alta textos de teor niilista,
materialista e de natureza iconoclasta em geral acabou por trai-lo. Em
23 de abril de 1849, ele foi encarcerado e posteriormente conduzido à
fortaleza de São Pedro e São Paulo. No fim do ano, recebeu a pena
capital por fuzilamento; só teve a punição anulada na undécima hora por
um ato de indulgência do czar, mas foi condenado a quatro anos de
trabalhos forçados na Sibéria. Providência divina? Seria melhor ter sido
fuzilado do que se submetido ao arbítrio do Estado, condenado ainda
assim? A única vantagem do isolamento siberiano para Dostoiévski foi ter
tido a quietude necessária para aprofundar seu contato com Santo
Agostinho, Platão, Shakespeare, entre outros grandes como ele,
arriscando-se a um castigo qualquer, porque não se podia ler na prisão.
A
reclusão numa cela certamente teve também o condão de reforçar no autor
a crença na falta de sentido da condição humana, que ao homem só resta,
como Sísifo, empurrar uma pedra até o alto de uma montanha só para, ao
fim do esforço, vê-la rolar outra vez, fiando-se no princípio cristão da
transformação pelo sofrimento e, tendo muito claro que negar a
esperança não é uma opção. A vida não faz o menor sentido e apenas nós
mesmos podemos dar algum senso de razoabilidade à vida, sendo cada um
responsável por identificar do que sua própria existência carece. Por
sua vez, a falta de esperança, à luz do cristianismo, é o maior pecado
que o homem pode cometer, para o qual não há hipótese de absolvição.
O
homem do subsolo, presente em todo indivíduo, é, para Dostoiévski, o
ponto mais importante da alma humana por fazê-lo desafiar a própria
razão, desconfiar das próprias certezas, e procurar um sentido nas
coisas sem descanso, até sua morte. Cada indivíduo tem em si seu homem
do subsolo, que habita uma região que só ele pode acessar. É lá que está
escondida a tão buscada verdade da vida.
Conforme avançava seu
tempo sob custódia do Estado, Dostoiévski foi sendo capaz de chegar a
essa parte obscura de si mesmo. Conseguiu ler o Corão, Vico, Kant,
Hegel. Descobriu que o interesse pela religião era uma fonte inesgotável
e que às vezes só se percebe o caminho depois de finda a jornada. A
sólida formação filosófica de Dostoiévski o habilitou a escrever “Os
Irmãos Karamázov”, sem dúvida sua obra máxima, sem o privar da
sensibilidade para a redação de “Memórias do Subsolo”. A religião é a
origem primeira de toda sede de conhecimento humano; a partir dela, o
homem busca outros caminhos, outras possibilidades quanto a entender seu
lugar no mundo, ideias que, não raro, terminam por contradizer a
própria religião. O desejo humano por sabedoria, por iluminação, sua
crescente insatisfação e mesmo desconfiança do ente supremo que o teria
criado suscita no homem o sentimento de uma espécie de infidelidade a
esse ente supremo, ao próprio Deus, portanto. O homem que questiona, o
homem que pensa, é um traidor de Deus, o que se pode provar por meio das
próprias Escrituras, vide Adão e Eva, o casal caído em desgraça do
bíblico “Gênesis”.
Todo escritor fala de si mesmo, em maior ou
menor medida, seja lá a que contexto esteja se referindo a narrativa. O
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) argumenta que toda obra de
ficção é autobiográfica, e em Dostoiévski isso não é diferente, muito
pelo contrário. Dostoiévski só consegue escrever acerca do que passou, e
vai além: o autor de “Memórias do Subsolo” se julgaria um hipócrita, um
biltre, um farsante, se defendesse conceitos, princípios ou mesmo
personagens em que não tivesse uma assentada e profunda crença.
Bakhtin,
por sua vez, demonstra que Dostoiévski não admite noções cristalizadas
em seus romances, mas discute com seus personagens, valoriza e estimula
críticas, quiçá o primeiro a fazê-lo com tal vitalidade, podendo ser
considerado o pai do romance de ideias. O autor é mestre, sobretudo em
“Memórias do Subsolo”, em seduzir seu público, deixá-lo zonzo com suas
circunvoluções retóricas, sua verve de contestar tudo e seu total
domínio da palavra.
O gênio indomável de Dostoiévski nunca
apresenta tipos acabados, definitivos; antes chama o leitor a
descobri-los consigo, sempre procurando valorizar os anti-heróis, ainda
que mantenha certo distanciamento da contenda. Para Dostoiévski, só pode
ser chamado de nobre aquele que domina suas paixões, seus instintos,
seus medos, na intenção de deixar a marca de seu espírito livre, sempre
apto a combater a boçalidade dos tiranos e se indignar frente às
injustiças que a sociedade se empenha em perpetuar. Há que se tirar
Dostoiévski do subsolo.
* É graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande
(2007). Tem experiência na área de Comunicação e Artes, com ênfase em
Arte multimídia, atuando principalmente nas áreas de produção de áudio e
vídeo.No mestrado, pesquisou a produção da música independente na
Paraíba, focalizando os grupos influenciados pela "nova onda
regionalista" a partir dos anos 90, no âmbito do programa de pós-
graduação em ciencias sociais - PPGCS da Universidade Federal de Campina
Grande - UFCG. Tem interesse por arranjos produtivos de cultura, mídia e
consumo.
A economia chinesa resistiu bem à pandemia, mas a crise a alertou
para certas vulnerabilidades, enquanto outras, mais latentes, podem
eventualmente transformá-la em um verdadeiro colosso com pés de barro.
Ela deve mudar para continuar a crescer. Então, devemos temer seu
poderio econômico? Quais serão suas prioridades nos próximos anos e que
consequências isso terá para o resto do mundo?
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 26-06-2021. A tradução é de André Langer.
Camille Macaire, pesquisadora associada do CEPII (Centre d'Etudes Prospectives et d'Informations Internationales – Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais) e coautora com Michel Aglietta e Guo Bai
de um artigo sobre o 14º plano quinquenal chinês, volta a tratar, nesta
entrevista, das intenções contidas neste programa, em particular o
desejo de um reequilíbrio entre o consumo interno e a demanda externa
que, até então, norteou a estratégia do Império do Meio.
Eis a entrevista.
Em março, a China divulgou seu 14º plano que define a
estratégia do Partido Comunista Chinês para os próximos cinco anos. Por
que este documento merece ser examinado?
A China propõe um plano estratégico
a cada cinco anos, detalhando suas principais orientações de política
econômica. A ausência de ciclos eleitorais no país permite que o poder
em exercício tenha uma visão mais ampla e dá credibilidade ao exercício.
Esta é, portanto, uma boa indicação da estratégia de desenvolvimento
que será implantada por Pequim no médio prazo.
Através
desses planos, o Estado chinês, que desempenha um papel muito
importante na economia, estimula uma dinâmica reforçada por um efeito
cascata sobre os atores privados porque a ação do governo tem um forte
efeito de sinalização. Se o desenvolvimento de uma determinada indústria
for incentivado, as empresas privadas verão isso como uma oportunidade e
se envolverão. Esse efeito de alavanca, que fortalece a ação pública, é
particularmente poderoso na economia intervencionista chinesa, uma vez
que os relés do Partido Comunista podem ser encontrados
nas próprias empresas. Essencialmente, os planos quinquenais são longos
manifestos políticos, mas permanecem relativamente vagos quando se
trata de detalhes operacionais concretos. Isso dá às autoridades margens
de manobra para ajustar o caminho da reforma, se necessário, sem
comprometer sua credibilidade.
Fato importante a ser destacado: pela primeira vez, a China não incluiu uma meta de crescimento em seu plano quinquenal. No contexto de graves perturbações relacionadas à Covid,
o exercício de previsão sem dúvida teria sido perigoso. Mas esta
escolha é também representativa de uma tomada de consciência por parte
das autoridades de que a corrida pelo crescimento do Produto Interno
Bruto (PIB) pode ser feita em detrimento de outros objetivos,
nomeadamente ecológicos e sociais.
Um fenômeno acentuado no caso
chinês pela gestão descentralizada da política econômica pelas
províncias chinesas, estimuladas a competir pelo maior crescimento.
Entretanto, o governo chinês não está defendendo o decrescimento! A meta
de dobrar o PIB entre 2021 e 2035, anunciada por Xi Jinping
no final de 2020, ainda é relevante e implica em uma taxa de
crescimento próxima a 5% ao ano em média até lá. O objetivo, de acordo
com a retórica chinesa, é, in fine, alcançar o status de “grande país socialista moderno” até 2049, ano do centenário da fundação da República Popular da China.
Em que se baseará a estratégia chinesa até 2026?
A China
planeja uma mudança estrutural de seu modelo econômico, passando de um
amplo crescimento baseado nas exportações para um modelo baseado ao
mesmo tempo na demanda externa e no consumo interno. Esse reequilíbrio é
um pilar muito forte do novo plano quinquenal.
Paradoxalmente,
essa mudança não acontecerá por força das políticas de apoio direto à
demanda. Mesmo no auge da crise pandêmica, quase não havia qualquer
medida de apoio ao consumo no país. Em vez disso, a China depende da formação dos trabalhadores e da inovação para que os salários aumentem e, portanto, in fine
que o poder de compra dos consumidores chineses melhore. O
fortalecimento da demanda interna, portanto, exigirá, antes de mais
nada, uma política industrial que fomente produtos mais sofisticados, o
que também beneficiará o posicionamento da China no comércio mundial. Este é o conceito de “dupla circulação” descrito pelas autoridades chinesas.
Para
isso, está previsto um aumento nos gastos com pesquisa e
desenvolvimento (P&D) de 7% ao ano. Este é um ritmo relativamente
alto, mas que representa na realidade para a China uma
continuidade da trajetória recente. O objetivo é modernizar a indústria
tradicional, garantindo o fortalecimento das atividades de ponta. Vários
setores foram identificados como estratégicos, com o objetivo de
aumentar sua participação no valor agregado do país de 11% para 17% nos
próximos cinco anos. Isso inclui, entre outras, as tecnologias da
informação, as energias renováveis, mas também as neurociências, a
indústria espacial e as biotecnologias.
Assim, apesar do
desejo de reequilibrar a economia em prol do consumo, a China ainda não
busca tornar-se uma economia de serviços. Ela continua ciente de que a
indústria é sua principal força econômica.
Em outra área, a guerra comercial e tecnológica dos últimos anos com Washington também influenciou sua estratégia. Pequim tem provas de que sua dependência externa cria vulnerabilidades, por exemplo, no setor de semicondutores. Para remediar isso, a China busca, portanto, um novo posicionamento nas cadeias de valor globais, a fim de garantir sua autossuficiência tecnológica.
Pequim
também quer acompanhar e apoiar a migração para as cidades, onde a
produtividade do trabalho é considerada como melhor. O plano prevê o
aumento da taxa de urbanização para 65% em 2025, contra 60% hoje. Para
isso, a reforma do “hukou”
terá que continuar. Este tipo de passaporte permite a qualquer cidadão
chinês reivindicar direitos sociais, mas está vinculado a um determinado
território, o que limita fortemente a mobilidade da mão de obra. As
autoridades desejam, portanto, torná-lo mais flexível e, assim,
facilitar o acesso aos serviços sociais nas grandes cidades.
Para
realmente provocar o surgimento de uma classe média, a China terá que
fortalecer suas políticas sociais. O que podemos esperar a esse
respeito?
O Partido tem um desejo claro
de fortalecer as redes de segurança social, mas o plano não apresenta
um roteiro concreto. Em um país de quase um bilhão e meio de habitantes,
tal reforma seria de fato muito cara e correria o risco de entrar em
contradição com a política fiscal conservadora das autoridades. Esse
componente social poderia ser reduzido ao desenvolvimento por meio do
setor privado, o que levará tempo.
Podemos esperar um fechamento da China nos próximos anos?
A China
não está planejando se fechar para o resto do mundo. Ela pretende
continuar a ser um ator importante no comércio mundial, mas
definitivamente já não quer ser a fábrica do mundo.
Em vez disso, sua estratégia visa alterar a composição de suas
importações e exportações. O desafio é conseguir importar menos produtos
de alta qualidade à medida que aprende a produzi-los ela mesma. Para as
exportações, a tendência é inversa, pois a ambição é reduzir a
participação de setores de baixo valor agregado, como o setor têxtil,
por exemplo, em favor de produtos de maior conteúdo tecnológico.
Além de seu plano de se posicionar no comércio mundial, a China
também busca fortalecer sua influência e seu poder em nível
internacional. Esse eixo se estrutura em torno de um projeto geopolítico
que visa transformar os contornos da globalização: as novas rotas da seda. Alguns denunciam um desejo hegemônico da China e é provável que se usem táticas de pressão sobre alguns países, mas também se deve observar que o rápido desenvolvimento da China
está criando uma emulação na região. As autoridades prometem um
desenvolvimento que as grandes potências desenvolvidas, segundo elas,
sempre falharam em alcançar. Sua retórica é forte.
Além de uma integração regional muito marcada no Sudeste Asiático, a China
se posiciona como líder de todos os países emergentes, onde quer que
estejam situados. Para isso, ela fortalece seus laços comerciais e
diplomáticos em todos os lugares. Sinal da sua crescente influência, ela
se tornou o maior credor do mundo,
o que lhe confere um peso geopolítico muito importante. E se defende
oficialmente o multilateralismo, também busca criar novos polos, bancos
de desenvolvimento, por exemplo, fora de qualquer influência ocidental e
principalmente americana.
Na questão ambiental, a China
surpreendeu no ano passado ao anunciar que pretendia atingir a
neutralidade de carbono até 2060. Os objetivos definidos no plano
quinquenal correspondem a essa ambição?
O desenvolvimento extremamente rápido da China durante várias décadas ocorreu em detrimento das questões ambientais. Consequentemente, o nível de poluição
é tão alto hoje que tem sérias implicações sobre a saúde pública. As
autoridades perceberam a gravidade da situação, e a transição energética
tornou-se um objetivo fundamental da estratégia de desenvolvimento. O
conceito de “civilização ecológica” foi incorporado à Constituição chinesa em 2018.
O novo plano quinquenal estabelece várias metas: uma redução na intensidade energética (a quantidade de energia necessária por unidade de PIB) de 13,5% e na intensidade de carbono
(a quantidade de emissões necessárias por unidade de PIB) de 18% até
2025. O objetivo é, portanto, reduzir o uso de energia e tornar a matriz
energética menos poluente. Estes objetivos, alinhados com os
desenvolvimentos efetivamente observados nos últimos cinco anos, não
parecem ser muito ambiciosos.
Alcançar a neutralidade de carbono em 2060 é um enorme desafio que parece ser difícil de alcançar, já que a China
está partindo de muito atrás. O país é o maior emissor de dióxido de
carbono do mundo, responsável por quase um terço das emissões globais, e
sua matriz energética ainda é muito intensiva em carbono, já que o
carvão ainda responde por cerca de 60% do consumo de energia. Com o
plano quinquenal, o novo curso está amplamente confirmado.
Quais são os eventuais pontos fracos que podem bloquear a China em sua estratégia?
Em primeiro lugar, um risco financeiro.
Os atores econômicos estão altamente endividados, em níveis próximos
aos observados nas maiores economias desenvolvidas. Em 2020, a dívida
dos atores privados chineses representava 222% do PIB, contra 185%, em
média, nos países desenvolvidos. Além disso, no setor financeiro, há uma
fragilidade institucional e mecanismos de controle pouco confiáveis
para avaliar a extensão dos riscos.
A fraca cultura de transparência do regime chinês impede-nos, a partir da Europa,
de ter um quadro completo, mas as autoridades também agem parcialmente
às cegas nesta área. Ao mesmo tempo, graças a um modelo até então
amplamente baseado nas exportações, a China acumulou
grandes estoques em moeda estrangeira que lhe proporcionam um colchão de
segurança confortável para responder com eficácia em caso de crise
financeira.
A outra fraqueza da China é o envelhecimento de sua população. É ainda mais rápido do que o esperado, como mostrou o censo divulgado este ano. As autoridades estão cientes disso, mas estão lutando para reverter a tendência.
O Partido Comunista
acaba de autorizar os casais a ter até três filhos, contra apenas dois
desde o fim da política do filho único em 2015, mas não é certo que isso
seja suficiente, dados os obstáculos significativos à taxa de
natalidade que permanecem no país. Para citar apenas alguns: os custos
dos estudos ou dos imóveis e a falta de uma verdadeira política
familiar.
Consequentemente, a escassez de mão de obra pode se
materializar com o tempo e o vazio que aparecer na pirâmide etária corre
o risco de ser usado como uma justificativa para um atraso na idade da
aposentadoria.
Quais são as implicações dessa nova estratégia chinesa para o resto do mundo? Mais especificamente para a Europa?
No lado do comércio internacional, o aumento da escala chinesa ocorrerá em detrimento de alguns de seus fornecedores históricos. Na Europa, os setores aeronáutico e automotivo podem ser afetados. A Alemanha
está particularmente exposta. Mesmo que o setor industrial chinês ainda
esteja longe de ser capaz de fornecer automóveis no nível dos
produzidos na Alemanha, o avanço tecnológico pode ser bastante rápido.
Além disso, à medida que a China
ganha peso no cenário financeiro internacional e fortalece seus laços
diplomáticos com os países emergentes, ela adquire um poder de
negociação cada vez mais importante em questões de coordenação ou de
definição de padrões e normas internacionais.
Vimos isso
recentemente na questão do tratamento da dívida dos países em
desenvolvimento. Em apenas alguns anos, ela tornou-se o principal credor
bilateral do mundo e desempenhou um papel importante nas discussões com
os países desenvolvidos destinadas a encontrar maneiras de aliviar o
fardo da dívida dos países mais pobres para enfrentar a pandemia com
maior margem de manobra orçamentária.
Por fim, a China já iniciou uma reaproximação diplomática com alguns países da Europa. As consultas acontecem no âmbito da iniciativa “17 + 1”, também conhecida como cúpula China-PECO (Países da Europa Central e Oriental),
que a liga aos países europeus participantes. Esta operação pode
deslocar o tropismo de alguns desses países para o leste, embora isso
esteja nos estágios iniciais por enquanto.
A União Europeia, que designou a China como “rival sistêmico”, deve permanecer vigilante porque Pequim
está estabelecendo uma série de marcos que, certamente, não lhe
permitem colher frutos imediatamente, mas abrem perspectivas de longo
prazo.
“Movimentos
de inspiração totalitária são vocacionados à morte. Para Hannah Arendt,
o totalitarismo difere de todas as formas anteriores de dominação por
ser baseado no terror, na mobilização das massas e na ideologia”
Quando a Universidade de Salamanca abriu o ano letivo de 1936, o
fascismo já havia se instalado na Espanha. O reitor da universidade era
Miguel de Unamuno, filósofo e escritor liberal. Na cerimônia de
abertura, um dos oradores atacou o país Basco e a Catalunha afirmando:
“O fascismo redentor da Espanha saberá como exterminá-los, cortando na
própria carne, livre de falsos sentimentalismos”. Na sequência, alguém
da plateia tomada por militares gritou: “Viva la Muerte”. Ao que o
general Millán-Astray replicou: “Espanha”, e a plateia respondeu:
“Unida”. Novamente o general gritou “Espanha” e se ouviu o repto:
“Grande”. O que ocorreu após pouco se sabe, e a versão mais conhecida
sobre a resposta de Unamuno tem sido contestada por pesquisas
históricas. O que sabemos é que Unamuno teve a coragem de, mesmo só,
contestar aquela frase macabra e que “Viva la muerte” era o lema da
Falange fascista de Francisco Franco.
Movimentos de inspiração totalitária são vocacionados à morte. Para
Hannah Arendt, o totalitarismo difere de todas as formas anteriores de
dominação por ser baseado no terror, na mobilização das massas e na
ideologia. As ditaduras procuram assegurar a passividade da população,
já os regimes totalitários precisam de uma base de massas
permanentemente mobilizada para lhe assegurar apoio e, eventualmente,
eliminar seus adversários. Ditaduras censuram a imprensa, regimes
totalitários a extinguem. Ambos os regimes precisam de um inimigo que
encarne o mal para justificar as medidas excepcionais do inferno mundano
que pretendem criar.
Em toda democracia, há correntes liberticidas que podem ser imantadas
por uma lógica totalitária. São grupos que acumulam ressentimentos e
fúrias e que se sentem ameaçados pelas mudanças que constrangem seus
códigos de superioridade social, econômica, sexual e racial. As
dinâmicas totalitárias precisam alimentar o ódio, sob pena de diluição
de sua base. Por isso, a produção de uma realidade conformada pela
ideologia é tão importante. Não importa o quanto essa realidade seja
alucinadamente irreal. É a narrativa que sustenta a abdução de sua base,
não eventuais benefícios econômicos. Foi assim na Alemanha de Hitler,
quando a maioria do povo alemão caminhou para o colapso, imaginando
estar construindo um Reich de mil anos. Foi assim na então União
Soviética e em grande parte das experiências totalitárias no chamado
Socialismo Real, saudadas pelos comunistas em todo o mundo como o
“alvorecer da liberdade e criação de ‘um novo homem’”.
Para que experiências do tipo se materializem, é preciso uma completa
destruição do senso moral entre os engajados. Esse processo começa pela
recusa em reconhecer a humanidade de certas pessoas e grupos. Os
nazistas ofereceram essa política sobretudo aos judeus, mas também aos
comunistas, aos gays, aos negros e aos ciganos, todos tratados como
sub-raças. Para o stalinismo, a burguesia era a classe a ser destruída,
mas também os “reformistas”, os “revisionistas” e, finalmente, os
“traidores”, aqueles que assumiram, corajosamente, a luta contra os
Estados policiais.
No Brasil de hoje, correntes totalitárias se cristalizam. Elas são
minoritárias, mas profundamente engajadas e estão armadas, um detalhe
que introduz uma circunstância especialmente ameaçadora. Desde a
campanha de 2018, tais correntes exaltam o potencial destruidor do
“mito” dizendo que ele poderia “não ser um bom fertilizante, mas seria
um ótimo pesticida”. De fato, tem sido. Bolsonaro tem o dom de destruir
e, como todo perverso, tem prazer nisso. Não há outro motivo para
Ricardo Salles ser ministro do Meio Ambiente que não o de destruir o
sistema de proteção ambiental. Não há razão para que Bolsonaro tenha
submetido a Procuradoria-Geral da República e feito tudo para assegurar
ingerência política na Polícia Federal, se não para destruir as
possibilidades de combate à corrupção. Não há qualquer motivo para os
persistentes ataques aos profissionais de imprensa e aos veículos que
não a determinação de destruir a credibilidade do jornalismo e a
liberdade de imprensa, suprimindo, assim, uma das formas de controle
social. Não há motivo para atacar as universidades que não o de destruir
a legitimidade do saber científico, ampliando o espaço para o
negacionismo e para o processo de reconstrução da história e assim
sucessivamente.
Enquanto esse “projeto pesticida” vai sendo imposto, a base
parlamentar de apoio ao governo, formada pelo Centrão, recebe recursos
de “orçamento secreto” que viabilizam contratos superfaturados, se
locupleta com nomeações e com as fantásticas possibilidades de “passar a
boiada” em atenção às demandas de empresários sempre dispostos a
recompensar tamanha dedicação. Se tivéssemos um Parlamento com alguma
consideração pelo Brasil, Bolsonaro teria sido deposto há muito, desde
pelo menos o início da pandemia, quando se tornou evidente o risco ao
qual a nação havia se submetido ao selecionar um político obcecado pela
morte.
Bolsonaro ocupa simbolicamente em nossa época o lugar de fala do
general Millán-Astray. Como o líder falangista, ele tem nos oferecido
uma política cuja síntese cabe inteira nessa palavra de ordem macabra:
“Viva a morte!” Os que ainda o apoiam ocupam o mesmo lugar dos
camisas-azuis que lotaram o auditório em Salamanca, para vergonha da
Espanha.
* Jornalista e sociólogo brasileiro, ativista dos direitos humanos,
que atua como professor universitário e consultor em segurança pública