domingo, 13 de junho de 2021

Edgar Morin: Um século de lições

Juremir Machado da Silva*

Aos 99 anos, Edgar Publica livro

      Recebi e já li o último livro de Edgar Morin, que completará cem anos de idade neste 8 de julho. “Lições de um século de vida” talvez faça do autor o mais velho a lançar um livro: aos 99 anos e 11 meses. Eu me sinto privilegiado por ter tido acesso à obra tão rapidamente e por tudo que mestre Morin tem me proporcionado: a sua amizade, as vezes em que veio a Porto Alegre com minha intermediação, ter feito parte de minha banca de doutorado na Sorbonne, em 1995, ter sido um dos meus orientadores de pós-doutorado e ter me possibilitado traduzir quatro dos seis volumes de sua impressionante obra-prima, “O método”.

Ativo no twitter, há poucos dias ele postou: “Indivíduos e nações vivem como sonâmbulos uma fase histórica, iniciada em Hiroshima, na qual a aventura humana criou as possibilidades de seu aniquilamento e de suas metamorfoses”. No Brasil, temos grandes especialistas na obra de Edgar Morin. Conceição Almeida, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Edgar de Assis Carvalho, da PUCS-SP, estão nessa linha de frente. Aliás, está saindo um livro, organizado por Edgar de Assis Carvalho, “Edgar Morin: complexidade no século XXI” (Sulina), com textos iluminadores.

 O que dizem essas lições de um século de vida? Em primeiro lugar, Morin não dá lições. Tira lições de uma vida centenária. Em seguida, revê a sua vida, comenta as suas obras, lembra da sua participação na resistência ao nazismo, revisita sua entrada e saída do Partido Comunista Francês, faz o balanço dos seus acertos e erros e declara, mais uma vez, o seu amor pela poesia. Leitor insignificante, na minha diminuta proporção, sempre me identifico com a errância de Morin. Uma passagem do livro diz tudo o que ele foi e eu sinto, de direita e de esquerda ao mesmo tempo. Assim: “Direitista, ou seja, decidido a nunca sacrificar a ideia de liberdade; esquerdista, convencido não mais da necessidade de uma revolução, mas da possibilidade de uma metamorfose”. Como assim? Nunca mentir em nome de uma causa como fizeram os que esconderam os crimes da União Soviética. Nunca desistir da ideia de um mundo melhor, não o melhor dos mundos.

Por pensar assim, nunca tive partido e, volta e meia, sou bombardeado pelos dois lados. Lendo Morin, eu faço terapia e me renovo para as lutas do dia a dia. Excluído do Partido Comunista Francês, em 1951, Morin havia descoberto algo terrível: “Tinha tomado consciência do caráter místico, religioso do partido. Vi que transformava seres inicialmente flexíveis, tolerantes, em fanáticos obtusos”. Cedo, Morin aprendeu também que não ser de esquerda, conforme o figurino clássico, não podia significar ser de direita. Essa perspectiva complexa irrita muita gente. As simplificações parecem muito mais esclarecedoras. Tenho levado as ideias de Morin para os comentários de futebol e de política. O choque é sempre inevitável. O neocientificismo, que elimina o acaso e pretende controlar todas as variáveis do jogo, entra em guerra. Os reducionismos veem-se como modernos e mais profundos.

Ser desviante – Edgar Morin é judeu. Muitas vezes defendeu os palestinos contra ações de Israel. Foi chamado de traidor; Lição: “Aceitar a solidão e a exclusão quando a verdade dos fatos e a honra estão em jogo”. Mais: “Saber suportar a incompreensão, não ceder diante dos ataques, dos delírios e do ódio”. Seguir em frente. Morin construiu seu caminho em meio ao apogeu de muitos ismos: existencialismo, marxismo, estruturalismo. Sobreviveu a todos: recusou o determinismo estruturalista que “elimina o homem, o sujeito e a história”. Um intelectual contra e a favor do seu tempo. Eis o livro.

      Preço a pagar: “Tive de enfrentar a incompreensão, o desdém e a ironia”. Quem não? Quem não enfrentou o mesmo por não ser marxista, estruturalista, moderno e membro de um partido? Quem não suportou o mesmo, na sua escala, por ser pluralista? O caminho mais fácil para a zona de conforto é pertencer a uma tribo. A independência isola. Lição: “A autonomia do espírito leva, sem que o queiramos, ao desvio. É preciso aceitar a incompreensão e o descrédito”. Se o grande Morin teve de amargar tudo isso, por que não os pequenos? O exemplo ajuda.

Última lição do velho sábio: “É bom ser bom. A gente se sente bem de ser pelo bem”. Ainda mais: “O senso de complexidade permite perceber os aspectos diferentes e contraditórios das pessoas, das conjunturas e dos acontecimentos”. Essa compreensão complexa leva à tolerância, à relativização e à generosidade. Para isso é fundamental não ter ódio no coração. O título deste texto poderia ser “cem anos de sabedoria”. Alguém poderia considerar exagerado. Afinal, não se é sábio desde o nascimento. Gosto de pensar que o menino Edgar, que perdeu a mãe aos dez anos de idade e passou a infância nas ruas de bairros populares, aprendeu a ser sábio e complexo nesse começo de vida marcado por certo abandono e pela força da solidariedade da comunidade. Qual é a sua grande lição? Sempre desconfiar dos dogmas.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.

Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/um-s%C3%A9culo-de-li%C3%A7%C3%B5es-1.636004

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