J.J. CAMARGO*
A moderna neurofisiologia tem trazido informações preciosas sobre o funcionamento do cérebro, incluindo os mecanismos de estímulos prazerosos ou repulsivos. Mas ainda não sabemos quais instrumentos a memória utiliza para arquivar as imagens que guardamos como definitivas. É sabido que temos, como defesa emocional, a tendência de apagar as experiências desagradáveis, ainda que algumas, por terem sido tenebrosas, não só não conseguimos deletar, como periodicamente elas voltam, quase sempre na insônia de uma madrugada solitária.
Saramago, no Ensaio Sobre a Cegueira, comparando-a com a surdez, alertou que a cegueira afasta as pessoas das coisas, enquanto que a surdez afasta-as das outras pessoas. Mas se é verdade que, cegos, interrompemos o arquivamento de novas imagens, também é certo que a memória se encarregará de preservar aquelas que representem as pilastras da nossa construção sensorial.
Ocorreu-me então que talvez devêssemos fazer uma espécie de retrospectiva do que vimos e precisamos conservar, custe o que custar, antes que a ressonância comece a mostrar aqueles assustadores espaços vazios.
Neste inventário, para garantir a autenticidade, nenhuma imagem pode ser arquivada por recomendação de terceiros, mesmo que alguém se sinta íntimo o suficiente para palpitar.
A tônica desta seleção deverá ser a densidade emotiva de cada imagem, a partir da lembrança do quanto a passagem pela retina impactou no nosso sensório, e da repercussão das manifestações de intensidade usadas para o registro cerebral do comovente, tais como aperto no peito, taquicardia fora de controle ou lágrimas escorrendo sem nenhuma vontade de contê-las.
Cada um terá o seu elenco de imagens especiais. Passível, é claro, de crítica e subestimação dos que não provaram daquele encanto. Se não, como explicar ao colorado mais fraterno a magia encantada de aparar a bola com a direita e bater instantaneamente com a esquerda, deixando o goleiro imóvel? E com isso arrancar do peito um grito do tamanho do mundo conquistado?
Ou o deslumbramento de assistir a Miss Saigon na Broadway, com Lea Salonga cantando I?d Give my Life for You, e a emoção transbordando no teatro, de um tal jeito que, quando fecharam as cortinas, o povo saiu chorando. Foi quando, ao ver uma garota aos prantos encostada numa coluna, pensei: "Chore, minha filha, e aproveite o milagre gratuito da arte".
Ou a comoção que se espalhou pelo Teatro Lope de Vega, em Madri, quando Paloma San Basilio, a mais linda das Dulcineias que encontrei, cantou Impossible Dream no afã de acordar Don Quixote de la Mancha do seu leito de morte?
Ou ver a transformação rubra do sangue quando o primeiro pulmão transplantado começou a expandir, avisando ao Vilamir que seu sofrimento arroxeado chegara ao fim?
É possível que alguém, tendo chegado ao limite do estoque de emoções visuais, se permita cegar?
Não há resposta para essa pergunta, apenas a certeza de que viver assim é garantir ojeriza ao desperdício do tempo, esse que é o grande incinerador das lembranças menores.
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