A economia chinesa resistiu bem à pandemia, mas a crise a alertou
para certas vulnerabilidades, enquanto outras, mais latentes, podem
eventualmente transformá-la em um verdadeiro colosso com pés de barro.
Ela deve mudar para continuar a crescer. Então, devemos temer seu
poderio econômico? Quais serão suas prioridades nos próximos anos e que
consequências isso terá para o resto do mundo?
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 26-06-2021. A tradução é de André Langer.
Camille Macaire, pesquisadora associada do CEPII (Centre d'Etudes Prospectives et d'Informations Internationales – Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais) e coautora com Michel Aglietta e Guo Bai
de um artigo sobre o 14º plano quinquenal chinês, volta a tratar, nesta
entrevista, das intenções contidas neste programa, em particular o
desejo de um reequilíbrio entre o consumo interno e a demanda externa
que, até então, norteou a estratégia do Império do Meio.
Eis a entrevista.
Em março, a China divulgou seu 14º plano que define a
estratégia do Partido Comunista Chinês para os próximos cinco anos. Por
que este documento merece ser examinado?
A China propõe um plano estratégico
a cada cinco anos, detalhando suas principais orientações de política
econômica. A ausência de ciclos eleitorais no país permite que o poder
em exercício tenha uma visão mais ampla e dá credibilidade ao exercício.
Esta é, portanto, uma boa indicação da estratégia de desenvolvimento
que será implantada por Pequim no médio prazo.
Através
desses planos, o Estado chinês, que desempenha um papel muito
importante na economia, estimula uma dinâmica reforçada por um efeito
cascata sobre os atores privados porque a ação do governo tem um forte
efeito de sinalização. Se o desenvolvimento de uma determinada indústria
for incentivado, as empresas privadas verão isso como uma oportunidade e
se envolverão. Esse efeito de alavanca, que fortalece a ação pública, é
particularmente poderoso na economia intervencionista chinesa, uma vez
que os relés do Partido Comunista podem ser encontrados
nas próprias empresas. Essencialmente, os planos quinquenais são longos
manifestos políticos, mas permanecem relativamente vagos quando se
trata de detalhes operacionais concretos. Isso dá às autoridades margens
de manobra para ajustar o caminho da reforma, se necessário, sem
comprometer sua credibilidade.
Fato importante a ser destacado: pela primeira vez, a China não incluiu uma meta de crescimento em seu plano quinquenal. No contexto de graves perturbações relacionadas à Covid,
o exercício de previsão sem dúvida teria sido perigoso. Mas esta
escolha é também representativa de uma tomada de consciência por parte
das autoridades de que a corrida pelo crescimento do Produto Interno
Bruto (PIB) pode ser feita em detrimento de outros objetivos,
nomeadamente ecológicos e sociais.
Um fenômeno acentuado no caso
chinês pela gestão descentralizada da política econômica pelas
províncias chinesas, estimuladas a competir pelo maior crescimento.
Entretanto, o governo chinês não está defendendo o decrescimento! A meta
de dobrar o PIB entre 2021 e 2035, anunciada por Xi Jinping
no final de 2020, ainda é relevante e implica em uma taxa de
crescimento próxima a 5% ao ano em média até lá. O objetivo, de acordo
com a retórica chinesa, é, in fine, alcançar o status de “grande país socialista moderno” até 2049, ano do centenário da fundação da República Popular da China.
Em que se baseará a estratégia chinesa até 2026?
A China
planeja uma mudança estrutural de seu modelo econômico, passando de um
amplo crescimento baseado nas exportações para um modelo baseado ao
mesmo tempo na demanda externa e no consumo interno. Esse reequilíbrio é
um pilar muito forte do novo plano quinquenal.
Paradoxalmente,
essa mudança não acontecerá por força das políticas de apoio direto à
demanda. Mesmo no auge da crise pandêmica, quase não havia qualquer
medida de apoio ao consumo no país. Em vez disso, a China depende da formação dos trabalhadores e da inovação para que os salários aumentem e, portanto, in fine
que o poder de compra dos consumidores chineses melhore. O
fortalecimento da demanda interna, portanto, exigirá, antes de mais
nada, uma política industrial que fomente produtos mais sofisticados, o
que também beneficiará o posicionamento da China no comércio mundial. Este é o conceito de “dupla circulação” descrito pelas autoridades chinesas.
Para
isso, está previsto um aumento nos gastos com pesquisa e
desenvolvimento (P&D) de 7% ao ano. Este é um ritmo relativamente
alto, mas que representa na realidade para a China uma
continuidade da trajetória recente. O objetivo é modernizar a indústria
tradicional, garantindo o fortalecimento das atividades de ponta. Vários
setores foram identificados como estratégicos, com o objetivo de
aumentar sua participação no valor agregado do país de 11% para 17% nos
próximos cinco anos. Isso inclui, entre outras, as tecnologias da
informação, as energias renováveis, mas também as neurociências, a
indústria espacial e as biotecnologias.
Assim, apesar do
desejo de reequilibrar a economia em prol do consumo, a China ainda não
busca tornar-se uma economia de serviços. Ela continua ciente de que a
indústria é sua principal força econômica.
Em outra área, a guerra comercial e tecnológica dos últimos anos com Washington também influenciou sua estratégia. Pequim tem provas de que sua dependência externa cria vulnerabilidades, por exemplo, no setor de semicondutores. Para remediar isso, a China busca, portanto, um novo posicionamento nas cadeias de valor globais, a fim de garantir sua autossuficiência tecnológica.
Pequim
também quer acompanhar e apoiar a migração para as cidades, onde a
produtividade do trabalho é considerada como melhor. O plano prevê o
aumento da taxa de urbanização para 65% em 2025, contra 60% hoje. Para
isso, a reforma do “hukou”
terá que continuar. Este tipo de passaporte permite a qualquer cidadão
chinês reivindicar direitos sociais, mas está vinculado a um determinado
território, o que limita fortemente a mobilidade da mão de obra. As
autoridades desejam, portanto, torná-lo mais flexível e, assim,
facilitar o acesso aos serviços sociais nas grandes cidades.
Para
realmente provocar o surgimento de uma classe média, a China terá que
fortalecer suas políticas sociais. O que podemos esperar a esse
respeito?
O Partido tem um desejo claro
de fortalecer as redes de segurança social, mas o plano não apresenta
um roteiro concreto. Em um país de quase um bilhão e meio de habitantes,
tal reforma seria de fato muito cara e correria o risco de entrar em
contradição com a política fiscal conservadora das autoridades. Esse
componente social poderia ser reduzido ao desenvolvimento por meio do
setor privado, o que levará tempo.
Podemos esperar um fechamento da China nos próximos anos?
A China
não está planejando se fechar para o resto do mundo. Ela pretende
continuar a ser um ator importante no comércio mundial, mas
definitivamente já não quer ser a fábrica do mundo.
Em vez disso, sua estratégia visa alterar a composição de suas
importações e exportações. O desafio é conseguir importar menos produtos
de alta qualidade à medida que aprende a produzi-los ela mesma. Para as
exportações, a tendência é inversa, pois a ambição é reduzir a
participação de setores de baixo valor agregado, como o setor têxtil,
por exemplo, em favor de produtos de maior conteúdo tecnológico.
Além de seu plano de se posicionar no comércio mundial, a China
também busca fortalecer sua influência e seu poder em nível
internacional. Esse eixo se estrutura em torno de um projeto geopolítico
que visa transformar os contornos da globalização: as novas rotas da seda. Alguns denunciam um desejo hegemônico da China e é provável que se usem táticas de pressão sobre alguns países, mas também se deve observar que o rápido desenvolvimento da China
está criando uma emulação na região. As autoridades prometem um
desenvolvimento que as grandes potências desenvolvidas, segundo elas,
sempre falharam em alcançar. Sua retórica é forte.
Além de uma integração regional muito marcada no Sudeste Asiático, a China
se posiciona como líder de todos os países emergentes, onde quer que
estejam situados. Para isso, ela fortalece seus laços comerciais e
diplomáticos em todos os lugares. Sinal da sua crescente influência, ela
se tornou o maior credor do mundo,
o que lhe confere um peso geopolítico muito importante. E se defende
oficialmente o multilateralismo, também busca criar novos polos, bancos
de desenvolvimento, por exemplo, fora de qualquer influência ocidental e
principalmente americana.
Na questão ambiental, a China
surpreendeu no ano passado ao anunciar que pretendia atingir a
neutralidade de carbono até 2060. Os objetivos definidos no plano
quinquenal correspondem a essa ambição?
O desenvolvimento extremamente rápido da China durante várias décadas ocorreu em detrimento das questões ambientais. Consequentemente, o nível de poluição
é tão alto hoje que tem sérias implicações sobre a saúde pública. As
autoridades perceberam a gravidade da situação, e a transição energética
tornou-se um objetivo fundamental da estratégia de desenvolvimento. O
conceito de “civilização ecológica” foi incorporado à Constituição chinesa em 2018.
O novo plano quinquenal estabelece várias metas: uma redução na intensidade energética (a quantidade de energia necessária por unidade de PIB) de 13,5% e na intensidade de carbono
(a quantidade de emissões necessárias por unidade de PIB) de 18% até
2025. O objetivo é, portanto, reduzir o uso de energia e tornar a matriz
energética menos poluente. Estes objetivos, alinhados com os
desenvolvimentos efetivamente observados nos últimos cinco anos, não
parecem ser muito ambiciosos.
Alcançar a neutralidade de carbono em 2060 é um enorme desafio que parece ser difícil de alcançar, já que a China
está partindo de muito atrás. O país é o maior emissor de dióxido de
carbono do mundo, responsável por quase um terço das emissões globais, e
sua matriz energética ainda é muito intensiva em carbono, já que o
carvão ainda responde por cerca de 60% do consumo de energia. Com o
plano quinquenal, o novo curso está amplamente confirmado.
Quais são os eventuais pontos fracos que podem bloquear a China em sua estratégia?
Em primeiro lugar, um risco financeiro.
Os atores econômicos estão altamente endividados, em níveis próximos
aos observados nas maiores economias desenvolvidas. Em 2020, a dívida
dos atores privados chineses representava 222% do PIB, contra 185%, em
média, nos países desenvolvidos. Além disso, no setor financeiro, há uma
fragilidade institucional e mecanismos de controle pouco confiáveis
para avaliar a extensão dos riscos.
A fraca cultura de transparência do regime chinês impede-nos, a partir da Europa,
de ter um quadro completo, mas as autoridades também agem parcialmente
às cegas nesta área. Ao mesmo tempo, graças a um modelo até então
amplamente baseado nas exportações, a China acumulou
grandes estoques em moeda estrangeira que lhe proporcionam um colchão de
segurança confortável para responder com eficácia em caso de crise
financeira.
A outra fraqueza da China é o envelhecimento de sua população. É ainda mais rápido do que o esperado, como mostrou o censo divulgado este ano. As autoridades estão cientes disso, mas estão lutando para reverter a tendência.
O Partido Comunista
acaba de autorizar os casais a ter até três filhos, contra apenas dois
desde o fim da política do filho único em 2015, mas não é certo que isso
seja suficiente, dados os obstáculos significativos à taxa de
natalidade que permanecem no país. Para citar apenas alguns: os custos
dos estudos ou dos imóveis e a falta de uma verdadeira política
familiar.
Consequentemente, a escassez de mão de obra pode se
materializar com o tempo e o vazio que aparecer na pirâmide etária corre
o risco de ser usado como uma justificativa para um atraso na idade da
aposentadoria.
Quais são as implicações dessa nova estratégia chinesa para o resto do mundo? Mais especificamente para a Europa?
No lado do comércio internacional, o aumento da escala chinesa ocorrerá em detrimento de alguns de seus fornecedores históricos. Na Europa, os setores aeronáutico e automotivo podem ser afetados. A Alemanha
está particularmente exposta. Mesmo que o setor industrial chinês ainda
esteja longe de ser capaz de fornecer automóveis no nível dos
produzidos na Alemanha, o avanço tecnológico pode ser bastante rápido.
Além disso, à medida que a China
ganha peso no cenário financeiro internacional e fortalece seus laços
diplomáticos com os países emergentes, ela adquire um poder de
negociação cada vez mais importante em questões de coordenação ou de
definição de padrões e normas internacionais.
Vimos isso
recentemente na questão do tratamento da dívida dos países em
desenvolvimento. Em apenas alguns anos, ela tornou-se o principal credor
bilateral do mundo e desempenhou um papel importante nas discussões com
os países desenvolvidos destinadas a encontrar maneiras de aliviar o
fardo da dívida dos países mais pobres para enfrentar a pandemia com
maior margem de manobra orçamentária.
Por fim, a China já iniciou uma reaproximação diplomática com alguns países da Europa. As consultas acontecem no âmbito da iniciativa “17 + 1”, também conhecida como cúpula China-PECO (Países da Europa Central e Oriental),
que a liga aos países europeus participantes. Esta operação pode
deslocar o tropismo de alguns desses países para o leste, embora isso
esteja nos estágios iniciais por enquanto.
A União Europeia, que designou a China como “rival sistêmico”, deve permanecer vigilante porque Pequim
está estabelecendo uma série de marcos que, certamente, não lhe
permitem colher frutos imediatamente, mas abrem perspectivas de longo
prazo.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/610590-a-china-planeja-uma-mudanca-de-modelo-economico-entrevista-com-camille-macaire 29/06/2021
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