sábado, 19 de junho de 2021

A CONVERSÃO DA QUITÉRIA

P. Gonçalo Portocarrero de Almeida*

A Confissão: um guia passo a passo - Opus Dei

A Quitéria, jovem de 18 anos que, por infelicidade, nasceu numa família católica e que, para maior desgraça, frequentou um colégio cristão, foi-se confessar ao Padre Zé.

Graças a Deus, teve sorte no confessor, porque o Padre António, o velho pároco, é um daqueles sacerdotes tradicionais que ainda reza, acredita no inferno, faz procissões e celebra novenas, enquanto o seu coadjutor, o jovem Padre Zé, está muito mais ‘focado’, como ele diz, na questão climática. Não foi por acaso que, no seu gabinete paroquial, substituiu a desbotada imagem de Santa Teresinha do Menino Jesus por um grande poster da jovem Greta Thunberg, a lacrimejante activista sueca que, na abertura da Cimeira da Acção Climática da ONU, recriminou os políticos que lhe roubaram os sonhos e a infância.

– Senhor Padre Zé, pode-me confessar?
– Com certeza, Quitéria. Quando foi a última vez que o fizeste?
– Acho que foi antes do Natal.
– Queres dizer antes do solstício do inverno, não é? Como sabes, Advento, Natal, Quaresma e Páscoa, são designações cristãs autorreferenciais, que dividem os homens e ofendem os nossos irmãos muçulmanos, judeus, hindus, ateus e agnósticos. Por isso, o novo calendário litúrgico, em vez de utilizar denominações supremacistas e confessionais, usa as estações do ano, que são mais inclusivas, inter-religiosas e universais. E que pecados cometeste, desde então?
– Faltei alguns domingos à Missa …
– Mas foi por não quereres ir, ou por alguma outra razão?
– De facto, preferi ir passear com o meu namorado …
– Então fizeste bem, Quitéria, porque em comunhão com a natureza estamos com Deus e, se tivesses ido, sem querer, à Missa, serias uma hipócrita.
– Também não tenho ido visitar a minha avó ao lar da terceira idade, mas é porque não tenho tempo: todos os dias, antes e depois das aulas, vou passear o Zósimo.
– O Zósimo é o teu namorado?!
– Não, é o meu cachorro! Como vivemos num andar, todos os dias saio de manhã e à tarde com ele e, por isso, não posso ir ao lar, visitar a minha avó.
– Ah, muito bem! O irmão Zósimo – como o chamaria, pela certa, São Francisco de Assis! – bem precisa dessa tua companhia, enquanto a tua avó tem gente de sobra no lar. Afinal, o Zósimo é o teu amigo mais fiel. A propósito, como vai o namoro?
– Vai bem, mas no outro dia fomos longe de mais …
– Mas foi por amor?!
– Acho que sim, Senhor Padre, porque fizemos amor …
– Então, Quitéria, não há mal nenhum nisso! Não é verdade que Deus é amor?! E quando o Zósimo sai à rua e tem relações com uma cadela, achas que pecam?! Claro que não, porque é absolutamente natural! Não te esqueças de que o que é natural, é bom!
– Pois, Senhor Padre, mas ainda não estamos casados …
– Sim, mas o importante não é o papel, nem o compromisso, nem o registo, mas o amor. Os fariseus é que ligam muito aos formalismos, tu deves agir sempre por amor. Como diz a Bíblia, vai aonde te leva o coração!
– Às vezes, em casa, não obedeço aos meus pais, nem rego as plantas …
– Deves ter em conta que também as plantas têm alma, porque são seres vivos e, quando estás a cuidar delas, estás a construir um mundo melhor, mais ecológico e sustentável. Não te esqueças do principal ensinamento da catequese: não há planeta B!
– Tenho uma dúvida, Senhor Padre: comer carne é pecado?
– Ainda não, Quitéria, mas de certeza que, em breve, o será, como aliás já acontece, para os judeus e muçulmanos, com a carne de porco. Se a religião não servisse para nos obrigar a fazer uma alimentação saudável, para que serviria então?!
– Mas Jesus não aboliu essas proibições, declarando puros todos os alimentos?!
– Sim, mas, como ensina o catecismo, os três principais inimigos da alma são o mundo, o demónio e a carne. Além disso, a carne que comes é de algum animal, não é?! O homem, como sabes, é o principal predador: matando cruelmente os animais, provoca a ruptura dos ecossistemas. Só devíamos comer produtos vegetais, porque as plantas não são seres sensíveis.
– E devo entrar para as Conferências Vicentinas, que ajudam os mais necessitados, ou oferecer-me como voluntária na campanha de reflorestação ambiental?
– Olha, Jesus disse que pobres sempre os haverá e, por isso – digo eu – não adianta muito ajudá-los. Mas, sem árvores, lá se vai o pulmão do nosso planeta!
– Pois é! Aliás, a minha catequista ensinou-nos que, antes da Paixão, Jesus foi ao horto das oliveiras, para se despedir das árvores, pelas quais ia morrer!
– Por elas e por toda a natureza. Mais alguma coisa, Quitéria?
– Sim, Padre Zé, mas tenho muita vergonha de a dizer…
– Não te preocupes porque Deus perdoa todos os pecados, por graves que sejam. Não deves ter vergonha, mas confiar na misericórdia divina!
– Pois, Senhor Padre, eu sei, mas foi um pecado muito grave.
– Blasfemaste?! Fizeste algum sacrilégio?! Mataste alguém?!
– Não, Senhor Padre, foi muito pior do que tudo isso: fui a uma tourada!
– Oh desgraçada! Tens o diabo no corpo, rapariga! Como pudeste fazer uma coisa dessas?! Também gostavas que te espetassem bandarilhas no lombo?!
– Não foi por mal, Senhor Padre, fui com o meu namorado e os amigos dele …
– Pois, mas não deves voltar a esse espectáculo degradante, nem tu nem ele, se é que querem casar pela Igreja e baptizar os filhos! Que ele se drogue e embebede, bata nos pais e não faça nada de jeito ainda se admite, porque todos temos fraquezas e nem todos têm jeito para trabalhar, mas ir a uma tourada é inadmissível, ouviste? Prometes que nunca mais lá pões os pés, ou tenho de te negar a absolvição?
– Prometo, Senhor Padre.
– Bem. E que mais?
– Nem sempre separo o lixo …
– Cuidado, Quitéria, porque estás a brincar com o fogo! A excomunhão, que dantes era para quem abortasse, agora aplica-se a quem não recicla!! Na catequese não aprendeste que, quando Nosso Senhor fez o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, recolheu depois as sobras, para nos ensinar a reciclar?
– Não voltarei a fazê-lo, Senhor Padre: a partir de agora, só no ecoponto! Foi o propósito que fiz na preparação para o Crisma dos jovens da paróquia. Esse e também o de me preocupar mais com o meu corpo, porque o padre que pregou o retiro explicou que ninguém pode gostar dos outros, se não gostar primeiro de si próprio.
– Muito bem, Quitéria. Então, como penitência, vais acender uma velinha a Gaia, a mãe terra, abraçar três árvores e dar uma refeição vegan ao Zósimo.
– E não preciso de rezar nada?!
– Claro que não: que faz a oração pelo ambiente, sua tonta?! Achas que
vais conseguir
evitar as alterações climáticas com Missas, Pai-nossos e Avé-Marias?!
– Tem razão, Senhor Padre, o mundo não precisa de mais oração, mas de mais ecologia.
E assim se converteu a beata Quitéria numa santa ambientalista.
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NOTA. Esta crónica não é contra a ecologia, que a Igreja promove por mandato divino, e a que o Papa Francisco dedicou a encíclica Laudato sí, mas contra a pretensão de a converter num dogmático panteísmo universal.
 
 *Sacerdote católico português. Licenciado em Direito na Universidade Complutense de Madrid e, posteriormente, doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma. Foi ordenado sacerdote em 1986, tendo exercido desde então o ministério no âmbito da prelatura do Opus Dei
Imagem da Internet
Fonte: https://observador.pt/opiniao/a-conversao-da-quiteria/

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