quinta-feira, 17 de junho de 2021

O princípio compaixão e o Covid-19

Leonardo Boff*

 Compaixão durante a pandemia em estudo pioneiro | Press Point

Através do Covdi-19 a Mãe Terra está movendo um contra-ataque à humanidade como reação ao avassalador ataque que vem sofrendo já há séculos.Ele simplesmente está se defendendo. O Covif-19  é igualmente um sinal e uma advertência que nos envia: não podemos fazer-lhe uma guerra como temos feito até agora, pois está destruindo as bases biológicas que a sustenta e sustenta também todas as demais formas de vida, especialmente, a humana. Temos que mudar, caso contrário nos poderá enviar vírus ainda mais letais, quem sabe, até um indefensável contra o qual nada poderíamos. Então estaríamos como espécie seriamente ameaçados. Não é sem razão que o Covid-19 atingiu apenas os seres humanos, como aviso e lição. Já  levou  milhões à morte, deixando uma via-sacra de sofrimentos a outros milhões e uma ameaça letal que pode atingir a todos os demais.

Os números frios escondem um mar de padecimentos por vidas perdidas, por amores destroçados e por projetos destruídos. Não há lenços suficientes para enxugar as lágrimas dos familiares queridos ou dos amigos mortos, dos quais não puderam dizer um último adeus,nem sequer celebrar-lhes o luto e acompanhá-los à sepultura.

Como se não bastasse o sofrimento produzido para grande parte da humanidade pelo sistema capitalista e neoliberal imperante, ferozmente competitivo e nada cooperativo. Ele permiitu que 1%  dos mais ricos possuísse pessoalmente 45% de toda a riqueza global enquanto os 50% mais pobres ficasse com menos de 1%, segundo relatório recente do Crédit Suisse. Ouçamos aquele que mais entende de capitalismo no século XXI, o francês Thomas Piketty referindo-se ao caso brasileiro. Aqui, afirma, verifica-se a maior concentração de renda do mundo; os milionários brasileiros, entre o 1% dos mais ricos, ficam à frente do milionários do petróleo do Oriente Médio. Não admira os milhões de marginalizados e excluídos que esta nefasta desigualdade produz.

Novamente os números frios não podem esconder a fome, a miséria, a alta mortandade de crianças e devastação da natureza, especialmente na Amazônia e em outros biomas, implicada nesse processo de pilhagem de riquezas naturais.

Mas nesse momento, pela intrusão do coronavírus, a humanidade está crucificada e mal sabemos como baixá-la da cruz. É então que devemos ativar em todos nós uma das mais sagradas virtudes do ser humano: a compaixão. Ela é atestada em todos  os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la. 

O maior teólogo cristão, Tomás de Aquino, assinala na sua Suma Teológica que a compaixão é a mais elevada  de todas as virtudes, pois não somente abre a pessoa para a outra pessoa senão que a abre para a mais fraca e necessitada de ajuda. Neste sentido, concluía, é uma característica essencial de Deus.

Referimo-nos ao princípio compaixão e não simplesmente à compaixão. O princípio, em sentido mais profundo (filosófico) significa uma disposição originária e essencial, geradora de uma atitude permanente que se traduz em atos mas nunca se esgota neles.Sempre está aberta a novos atos. Em outras palavras, o princípio tem a ver com algo pertencente à natureza humana. Porque é assim podia dizer o economista e filósofo inglês Adam Smith (1723-1790) em seu livro sobre a Teoria dos Sentimentos Éticos: até a pessoa mais brutal e anti-comunitária não está imune à força da compaixão.

A reflexão moderna nos ajudou a resgatar o princípio compaixão. Foi ficando cada vez mais claro para o pensamento crítico que o ser humano não se estrutura somente sobre a razão intelectual-analítica, necessária para darmos conta da complexidade de nosso mundo. Vigora em nós, algo mais profundo e ancestral, surgido há mais de 200 milhões de anos quando irromperam na evolução os mamíferos: a razão sensível e cordial.Ela significa  a capacidade de sentir, de afetar e ser afetado, de ter empatia, sensibilidade  e amor.

Somos seres racionais mas essencialmente sensíveis. Na verdade, construimos o mundo a partir de laços afetivos.Tais laços  fazem com que as pessoas e as situações sejam preciosas e portadoras de valor. Não apenas habitamos o mundo pelo trabalho senão pela empatia, o cuidado e a amorosidade. Este é o lugar da compaixão.

Quem trabalhou melhor que nós ocidentais foi o budismo. A compaixão (Karuná) se articula em dois movimentos distintos e complementares: o desapego total e o cuidado essencial. Desapego significa deixar o outro ser, não enquadrá-lo, respeitar sua vida e destino. Cuidado por ele, implica nunca deixá-lo só em seu sofrimento, envolver-se afetivamente com ele para que possa viver melhor carregando mais levemente sua dor.

O terrível do sofrimento não é tanto o sofrimento em si, mas a solidão no sofrimento. A compaixão consiste em não deixar o outro só. É estar junto com ele, sentir seus padecimentos e angústias, dizer-lhe palavras de consolo e dar-lhe um abraço carregado de afeto.

Hoje os que sofrem, choram e se desalentam com o destino trágico da vida, precisam desta compaixão e desta profunda sensibilidade humanitária que nasce da razão sensível e cordial. As palavras ditas que parecem corriqueiras ganham outro sonido, reboam dentro do coração e trazem serenidade e suscitam um pequeno raio de esperança de que tudo vai passar. A partida foi trágica mas a chega em Deus é bem-aventurada.

A tradição judaico-cristã testemunha a grandeza da compaixão. Em hebraico é “rahamim” que significa “ter entranhas”, sentir o outro com profundo sentimento.Mais que sentir é identificar-se com o outro.O Deus de Jesus e Jesus mesmo mostram-se especialmente misericoridiosos como se revela nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37) e do filho pródigo(Lc 15,11-32). Curiosamente, neste parábola, a virada se dá não no filho pródigo que volta mas no pai que se volta para o filho pródigo.

Mais no que nunca antes, face a devastação feita pelo Covid-19 em toda a população,sem exceção, faz-se urgente viver a compaixão com os sofredores como o nosso lado mais humano, sensível e solidário.

* Leonardo Boff escreveu com Werner Müller o livro Princípio compaixão&cuidado, Vozes 2009; Covid-19 A Mãe Terra contra-ataca a humanidade, Vozes 2020.

Imagem da Internet

Fonte:  https://leonardoboff.org/2021/06/16/o-principio-compaixao-e-o-covid-19/

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