Anselmo Borges*
no Diário de Notícias
1
O Evangelho é duríssimo. Nele, diz-se: "Deixai vir a mim as
criancinhas", mas também se diz: "Ai de quem escandalizar uma criança!
Era melhor atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e lançá-la ao mar." O
que tem acontecido na Igreja quanto aos abusos de menores é pura e
simplesmente execrável.
Em
2019, Francisco tomou uma iniciativa histórica, convocando uma Cimeira
para o Vaticano, com 190 participantes, entre os quais 114 presidentes
das Conferências Episcopais de todo o mundo, bispos representando as
Igrejas católicas orientais, alguns membros da Cúria, representantes dos
superiores e das superioras gerais de ordens e congregações religiosas,
alguns peritos e leigos. Os três dias estiveram sob o lema:
"responsabilidade", "prestação de contas", "transparência". O Papa quer -
não se trata de mero desejo - implantar "tolerância zero".
2 Para implantar essa "tolerância zero" e pôr fim a esta catástrofe na Igreja, publicou o Motu Proprio "Vos estis lux mundi" (Vós sois a luz do mundo), decretando medidas concretas contra a pedofilia na Igreja.
Estas
normas contra os abusadores e os encobridores impõem-se, porque,
escreveu Francisco, "o delito de abuso sexual ofende Nosso Senhor, causa
danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e prejudica a
comunidade dos fiéis."
Os
clérigos e religiosos ficaram obrigados (não se trata de mera obrigação
moral, mas legal) a denunciar os abusos aos superiores, bem como a
informá-los sobre as omissões e encobrimentos na sua gestão. Todas as
dioceses do mundo têm a obrigação de criar no prazo de um ano ou mais
sistemas estáveis e de fácil acesso ao público, para que, com
facilidade, todos possam apresentar informações sobre abusos sexuais
cometidos por clérigos e religiosos e o seu encobrimento. O documento
ratifica a obrigação de colaborar com a justiça civil dos países. Aliás,
"estas normas aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações
estabelecidos em cada lugar por leis do Estado, em particular as
relativas a eventuais obrigações de informar as autoridades civis
competentes". Para lá do assédio e da violência contra menores (menos de
18 anos) e adultos vulneráveis, o texto inclui a violência sexual e o
assédio que provêm do abuso de autoridade, bem como a posse de
pornografia infantil e qualquer caso de violência contra as religiosas
por parte de clérigos e ainda os casos de assédio a seminaristas ou
noviços maiores de idade. Impõe a protecção dos denunciantes e das
vítimas: quem denuncia abusos não pode ser objecto de represálias ou
discriminação por ter informado; as vítimas e suas famílias serão
tratadas com dignidade e respeito e devem receber a devida e adequada
assistência espiritual, médica e psicológica; é preciso atender também
ao problema das vítimas que no passado foram reduzidas ao silêncio.
Estas normas aplicam-se à Igreja universal. Solicita-se vivamente a
colaboração dos leigos, que podem ter capacidades e competências que os
clérigos não dominam. Evidentemente, reafirma-se o princípio da
presunção de inocência da pessoa acusada e o segredo da confissão deve
manter-se como inviolável. Como escreve o Papa, "para que estes casos,
em todas as suas formas, nunca mais aconteçam, é necessária uma
conversão contínua e profunda dos corações, atestada por acções
concretas que envolvam todos os membros da Igreja".
3
Francisco acaba de ir mais longe ao incorporar no Código de Direito
Canónico a legislação contra os abusos sexuais de menores e adultos
vulneráveis ("pessoas que habitualmente têm um uso imperfeito da
razão"), agravando-a. No Código anterior, estes delitos apareciam no
capítulo "Delitos contra as obrigações especiais dos clérigos". Agora,
passam para o capítulo "Delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade
da pessoa". E trata-se de delitos cometidos não só por clérigos mas
também por membros de institutos de vida consagrada e outros fiéis,
nomeadamente leigos que ocupem determinadas funções na Igreja.
Há
o endurecimento das penas, dilata-se o tempo da prescrição. O novo
cânone 1398 dispõe que "seja punido com a privação do ofício e com
outras penas justas, sem excluir, se o caso o requerer, a expulsão do
estado clerical", o clérigo que "comete um delito contra o sexto
mandamento do Decálogo com um menor ou com pessoa que habitualmente tem
um uso imperfeito da razão ou a que o direito reconhece igual tutela."
É
igualmente punido quem "recrutar ou induzir um menor ou uma pessoa que
habitualmente tem um uso imperfeito da razão para que se exponha
pornograficamente ou para participar em exibições pornográficas, tanto
verdadeiras como simuladas" ou quem "imoralmente adquire, conserva,
exibe ou divulga, por qualquer forma ou através de qualquer instrumento,
imagens pornográficas de menores ou de pessoas que habitualmente têm um
uso imperfeito da razão".
As
alterações no Direito Penal da Igreja também prevêem novos delitos no
domínio económico e financeiro. Assim, "penaliza-se os abusos de
autoridade, a corrupção, tanto do corrupto como do corruptor, a má
gestão do património eclesiástico". Francisco ataca "o diabo que entra
pelos bolsos", impondo "transparência" no domínio da gestão do
património da Igreja.
4
Francisco refere a necessidade da prevenção. Quanto aos abusos de
menores, penso que ela deve implicar também o fim do celibato
obrigatório para os padres e o acesso das mulheres a todos os cargos da
Igreja, sem discriminação.
Anselmo Borges no DN
*Padre e professor de Filosofia.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/abusos-de-menores-no-codigo-de-direito-canonico-13848864.html
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