sexta-feira, 4 de junho de 2021

Adoração pela ciência se tornou quase religiosa e teria deixado Comte mudo

                                    João Pereira Coutinho*

Desenho mostra várias formas geométricas intercaladas entre si

Nossos antepassados teriam admitido a possibilidade de um vazamento do coronavírus sem drama

31.mai.2021

Edição Impressa

 Aviso já: não sei se o famoso coronavíus vazou de um laboratório em Wuhan. Para usar a expressão da moda, não existe “evidência científica”.

Mas parece que também não há evidência científica de que o vírus passou de um bicho para um humano, razão pela qual 18 pesquisadores já admitem o cenário de vazamento em carta para a Science.

Aliás, o caso é tão sério que Joe Biden, antes cético, mudou de ideias: quer a “intelligence” do país a espreitar esse cenário.

Descanse, leitor. Não vou seguir o caminho fácil e afirmar que o ódio a Trump provocou essa cegueira monumental. Se o Donald admitia um vírus fugitivo, estava errado. Donde, o vírus só poderia ter vindo de um comedor de morcego, ou de pangolim, consoante o gosto.

Não sou especialista em coronavírus. Nunca comi morcegos ou pangolins (acho). Mas lembro de pensar: como é possível aceitar, “prima facie”, o que o regime chinês afirma? Da última vez que confirmei, a China era uma ditadura.

E se os governos democráticos já têm uma relação problemática com a verdade, que dizer de um regime autocrático?

Além disso, vazamentos de vírus não são fenômenos paranormais. Aconteceu com a Sars já neste século.

Sem falar de casos mais célebres, como a varíola, que escapou de laboratórios ingleses nas décadas de 1960 e 1970. E, no entanto, qualquer sussurro sobre um vazamento chinês era fuzilado pela opinião dominante —e pelo Facebook, que usava a tesoura da censura.

O jornalismo, esse, limitava-se a seguir a manada, sem fazer perguntas. Por quê?

Repito: o ódio a Trump, aliás compreensível, não explica tudo. O bullying chinês para calar a Organização Mundial da Saúde também não.

A guerra contra a possibilidade de se obter a verdade fez-se em nome de uma concepção errada de ciência. Ou, melhor dizendo, negando que existe uma dimensão monstruosa no próprio conhecimento científico.

A afirmação é pesada, admito, mas não seria assim tanto para nossos avós. Hoje, existe uma adoração quase religiosa pela ciência que teria deixado o senhor Auguste Comte mudo e abobalhado.

Mas o século 20 tinha uma relação mais ambígua com o conhecimento. Sim, ninguém negava as benesses dos antibióticos, das vacinas ou dos transplantes. O aumento da esperança de vida era, e é, a medida da nossa gratidão.

Mas também ninguém negava que a ciência arrasara Hiroshima e Nagasaki; ou que fora usada nas câmaras de gás de Auschwitz ou Treblinka.

Nossos antepassados teriam admitido a possibilidade de um vazamento do coronavírus sem drama. Porque entendiam que os cientistas que manipulam esses vírus para tentar ajudar a espécie humana são os mesmos que, por erro ou coisa pior, podem devastar a espécie humana.

É também por isso que celebro o acontecimento literário dos últimos anos. Falo do livro “When We Cease to Understand the World”, do escritor chileno Benjamin Labatut.

Saberemos logo se Labatut recebe o International Booker Prize, como merece. Mas o seu livro, de um hibridismo revolucionário na literatura contemporânea, é uma meditação brilhante sobre essa monstruosidade da ciência. Monstruosidade em dois sentidos.

Por um lado, ao transformar em arte a velha máxima de Nietzsche de que, quando olhamos demoradamente para o abismo, o abismo também olha para nós.

As páginas sobre o grande matemático Alexander Grothendieck, que abandonou a ciência e se entregou à reclusão por vislumbrar nos seus cálculos uma capacidade infinitamente destrutiva, é um prodígio narrativo.

O mesmo vale para os capítulos dedicados aos físicos Schrödinger e Heisenberg: a forma como a mecânica quântica os levou aos confins da racionalidade, para quase os despedaçar, é o oposto da versão Walt Disney que hoje reina na maioria da divulgação científica.

Por outro lado, a monstruosidade está plasmada no destino de Fritz Haber. O químico alemão salvou milhões de seres humanos da fome ao inventar os primeiros fertilizantes artificiais.

O mesmo Haber foi declarado criminoso de guerra pela França e pela Inglaterra por ter desenvolvido os gases que os alemães usaram na Primeira Guerra Mundial.

Benjamin Labatut, como nossos avós, tem “imaginação do desastre”: a capacidade rara de vislumbrar no engenho humano o que existe de grandioso e horripilante.

Nós, infantis e amnésicos, já não conseguimos imaginar o lado sombrio de nada. Essa é a razão por que somos mais perigosos que nunca

* Cronista, cientista político e escritor português. É autor de várias obras, dentre as quais As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários.

 Ilustração de Abu para coluna de João Pereira Coutinho, publicada na Folha, em 31 de maio de 2021 - Abu 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2021/05/adoracao-pela-ciencia-se-tornou-quase-religiosa-e-teria-deixado-comte-mudo.shtml

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