Antonio Prata*
Quando a turma de amarelo vai às ruas defender a democracia liberal?
“As pessoas não deviam vir de vermelho”, reclamo. Meu amigo Ricardo protesta. “Cara, foi a esquerda que convocou a passeata, organizou tudo, agora eles têm que fingir que não são de esquerda?". “O Bolsonaro teve 55% dos votos e o Haddad, 45%. Se a gente falar só com os 45%, o assassino leva de novo. A turma de amarelo olha as passeatas contra Bolsonaro, vê tanto vermelho e acha que vir é dar apoio ao Lula.” “Bom, quando vieram pedir o impeachment da Dilma e tinha carro de som exigindo golpe militar e a volta do AI-5, eles não estavam tão preocupados com esse tipo de ruído.” “Mano, o discurso revanchista não vai ajudar. A gente tem que ser pragmático. Tem que deixar claro que uma coisa é protestar contra o assassino em série, outra coisa são as eleições de 22.” “Concordo. É por isso que o Lula não veio. O PT não tá organizando essa passeata e boa parte da esquerda que tá aqui tem sérias críticas aos governos petistas. Essa passeata é contra o Bolsonaro, a escalada autoritária, o vandalismo governamental na pandemia. Se a turma de amarelo não topa marchar ao lado de qualquer democrata que se oponha ao governo, não vai rolar frente ampla.” “Você tem toda razão. Mas agora não é hora de ter razão, é hora de evitar uma ditadura. Como fazer com que os próximos protestos não sejam só da esquerda?”. “Simples. Basta o MBL e o Novo e os ditos liberais aparecerem. Se diante das centenas de milhares de mortos na conta do Bolsonaro, da devastação da Amazônia e da demolição do Estado de Direito a direita ficasse tão indignada como ficou com a corrupção do PT, essa avenida seria predominantemente verde amarela. A esquerda tá nas cordas desde 2015, o Lula tava preso e essa direita que se diz democrática não conseguiu criar uma única voz, um único líder, uma única manifestação contra a demolição bolsonarista. Aí a esquerda se reorganiza, faz as primeiras passeatas importantes contra o Bolsonaro e eles vão ficar quietos por medo do Lula em 22?”. “Eles tão tentando criar uma ‘terceira via’, pra daí ir pras ruas”. “Isso é uma piada! Não surge um candidato da ‘terceira via’ porque não existe no Brasil esse extrato da sociedade: empresários, investidores e uma classe média liberal e democrata. Um capitalismo a la Gengis Khan evidentemente não produziu capitalistas a la Warren Buffet. A elite brasileira é liberal só até a segunda página. O que havia de possibilidade de uma social democracia, como o PSDB, resolveu se suicidar apoiando milícias políticas para derrubar a Dilma e foi exterminada por ela. Os membros do PIB brasileiro dispostos a defender o estado de direito não enchem uma Kombi. Tem os Moreira Salles, os Bracher, a Neca Setúbal, o Armínio Fraga, os caras da Natura, a Magalu, mais quem?”.
Sobe ao carro de som Douglas Belchior, membro da Coalizão Negra por Direitos, uma das entidades articuladoras das manifestações. Fala sobre o massacre dos jovens negros na periferia, a prevalência dos negros entre os mortos por Covid, o desemprego e a fome plantados pelo vírus e adubados pelos dejetos bolsonaristas. Chama a multidão à construção de uma outra democracia, pós-Bolsonaro, um pacto antirracista que inclua os negros e dê oportunidades iguais a todos.
Ricardo me pergunta: “É esse o tipo de discurso que os amarelos temem endossar? Se a chamada ‘terceira via’ não vai à rua defender esses direitos básicos das democracias liberais, ao lado de quem quer que seja, então não é terceira via porcaria nenhuma, é só a velha direita brasileira preocupada em não sair muito mal no Instagram enquanto o Brasil pega fogo”.
* Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
Imagem de Adams Carvalho
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2021/06/na-manifestacao.shtml
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