Alicia Kowaltowski*
No distópico Brasil da pandemia, as opiniões minoritárias ganharam voz não apenas por meio das mídias sociais, mas também pelo apoio e pela difusão de grupos bolsonaristas organizados
O senador Eduardo Girão ganhou atenção nas mídias sociais ao afirmar recentemente que a CPI da pandemia “precisa ouvir cientistas que são a favor e também os que são contra a ciência”. A fala viralizou entre meus colegas, pelo óbvio absurdo de se sugerir que existem “cientistas contra a ciência”.
É minimamente estranho exigir que se procure cientistas que são contrários à ciência para demonstrar abertura a debates em discussões científicas, assim como seria bizarro pedir que se encontre agrônomos contra a agricultura, ou médicos contra a medicina. Mas, numa inversão de valores que caracteriza a gestão, é exatamente isso que aparenta ter sido o foco do governo federal. Esta administração indica ministros da Educação sem educação, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que é excludente dos direitos de muitas famílias e humanos, e ministro do Meio Ambiente focado na destruição de nosso patrimônio natural. Não se limita a ter ministros da Saúde cujo maior qualificador é se dobrar aos desejos e mandos da presidência, enquanto ignoram a saúde. Vai além, criando um ministério paralelo para garantir melhor aderência à estratégia inconsequente de se manter uma pandemia sob total descontrole.
Se olharmos os integrantes e consultores do tal ministério paralelo, perceberemos que alguns se parecem bastante com cientistas. Possuem posições acadêmicas, até mesmo em instituições de renome, como aquela em que eu atuo. Publicam trabalhos acadêmicos, e têm títulos compatíveis com o rótulo de cientista. Em minha definição do termo, não o são, pois não respeitam o método científico, baseado em evidências, testagem de hipóteses, consensos e adaptação sempre que surgem melhores evidências. Mas entenderia perfeitamente se uma pessoa sem conhecimento específico da área se convencesse com esses históricos, e assim acreditasse nas suas afirmações anticientíficas. É aqui que seria importante o papel das instituições, que em teoria congregam as opiniões dos grupos que representam e apresentam o melhor conhecimento conjunto do momento. Infelizmente, no Brasil da pandemia, as instituições nos falharam completamente. O Ministério da Saúde é domado pelo presidente, e ainda subjugado pela assessoria paralela, enquanto o Conselho Federal de Medicina, lastimavelmente, atua de forma hipócrita e nada hipocrática.
Um estudo da sociedade americana de medicina demonstra que nos EUA, onde há amplo acesso às vacinas contra covid-19, 96% dos médicos estão completamente vacinados (contra 43% da população geral). Dos 4% restantes, quase a metade tem a intenção de vacinar ou completar a vacinação. Não duvido que dentre os 2% restantes haja médicos praticantes americanos que são contrários ao uso de vacinas. A existência de “médicos contra a medicina” é possível pelo simples fato de indivíduos humanos serem muito diversos. Mas sabemos também que são pouquíssimos, e que sua atuação seria sem consequências se não tivessem voz através das mídias sociais, usando a ciência para negar a ciência.
Exigir que se procure cientistas que são contrários à ciência para demonstrar abertura a debates em discussões científicas é tão bizarro quanto pedir que se encontre agrônomos contra a agricultura ou médicos contra a medicina
No Brasil da pandemia, as opiniões minoritárias distopicamente ganharam voz não somente pelos caminhos informais das mídias sociais, mas também apoio e difusão por meio de grupos bolsonaristas organizados. O Brasil da pandemia procurou os raros anticientistas com credenciais aparentemente científicas e amplificou sua voz, de modo que as ações coletivas do governo federal foram exatamente o contrário do que é internacionalmente e cientificamente recomendado.
A ficção está repleta de representações do contrário, justamente por que mostrar tudo ao avesso traz luz à lógica da normalidade, pela contraposição fictícia ao absurdo: Mauricio de Sousa criou o personagem Do Contra, DC Comics criou o Mundo Bizarro (ironicamente sediado num planeta-cubo, e portanto adequado para terraplanistas...), e Lewis Carroll criou “Alice através do espelho”, narrativa contraposta à “Alice no País das Maravilhas”. A Alicia que aqui escreve gostaria muito de acordar e descobrir que as aventuras distópicas da pandemia através do espelho foram apenas um sonho, mas sabe que isso não vai acontecer. Por isso, e sabendo que temos um governo que procura, amplifica e dissemina a anticiência, não vejo como lidar com a situação sem me posicionar e praticar a antianticiência.
Se o presidente causa e participa de aglomerações, denuncie-as, e mantenha-se isolado. Se o presidente diz que cloroquina, ivermectina ou sei lá qual vitamina cura covid-19, não tome, e não permita que ninguém faça uso de medicamentos comprovadamente ineficazes. Se apoiadores do presidente mandam informações por mídias sociais, ignore e leia veículos jornalísticos de respeito como fonte de informação. Se o presidente quer um “estudo” para liberar as pessoas vacinadas ou que já adoeceram de usar máscaras, continue usando máscaras e faça questão de cobrar o uso correto dos outros. Se o presidente questiona a segurança de vacinas e se recusa a vacinar, vacine-se assim que chegar a sua vez, com a vacina que estiver disponível no posto. Seja o anti-Bolsonaro.
Façamos nosso dever conjunto de demonstrar que somos a maioria e que respeitamos o melhor conhecimento coletivo que a ciência moderna permitiu adquirir, além da memória de meio milhão de brasileiros mortos por incompetência e malevolência de liderança. Ser pró-Bolsonaro é perpetuar a distopia e o sofrimento da pandemia. Não caia nesta toca de coelho!
*Alicia Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
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