Pois o sentimento, caro jovem, é divino. O ser humano é divino se for capaz de sentir (1).
É ocasião de regozijo podermos contemplar duas figuras maiores da história da arte, dois artistas do transcendental, diremos nós, nas exposições "Alberto Giacometti - Peter Lindbergh. Capturar o Invisível" e “Obras Gráficas de Francis Bacon”, comissariadas por Charlotte Craps, sob o alto patrocínio da Taylor’s Port, sociedade gestora e proprietária do deslumbrante quarteirão cultural World of Wine, em Vila Nova de Gaia. Este ensaio sobre Bacon surge no contexto desta exposição, nos antigos armazéns do Vinho do Porto, transformados agora em galeria de arte, mais conhecida como WOW. A exibição das obras gráficas de Francis Bacon, apresentadas conjuntamente pela primeira vez no nosso país, foram produzias entre 1971-1991, expressando os diversos itinerários e desvios da sua vida artística. A exposição inicia com a obra de 1955, Study for a Portait II e termina com Second version of triptch 1944 (1988). Como se descreve na folha de sala, extraordinariamente bem pensada: «Nesta exposição, apresentamos vinte e três obras que vão desde litografias, gravuras e água-tintas feitas por aclamados mestres da impressão, como Mourlot, Maeght e Georges Visat, sob a rigorosa supervisão e parceria de Francis Bacon» (cf. Introdução). A exposição termina com a possibilidade de saborear e degustar um cálice de Vinho do Porto, que está incluído no bilhete, tal como na exposição de Giacometti-Lindbergh, que termina no novo e belíssimo jardim panorâmico do MMIPO. Trata-se, de facto, de duas exposições mundiais, não são pelos artistas aí exibidos, mas pela excelência do cuidado com que foram preparadas, e pela possibilidade que nos dá a pensar o impensável.
A metáfora, a analogia, a hipérbole ou o eufemismo, a ironia, são modos possíveis de pensar e imaginar a verdade do ser. Modos de acesso ao real, de captar ou apreender, no próprio acto de linguagem, as vias de coloração dos tempos acinzentados. Nem sempre é fácil discernir a fronteira entre o que pertence à analogia e ao real, ao hiperbólico e ao irónico, ao efectivo e ao lógico. A redução dos vocábulos ao mínimo dominador comum, ao funcional e ao útil (sanitário, financeiro e partidário-ideologizante), impede o uso alargado da metáfora no quotidiano, a possibilidade de novas visões sobre o andamento próximo do mundo. Fernando Pessoa, esse inventor do extraordinário e de novos acessos à realidade, segundo a lógica das sensações ou do pensamento sensível, escrevia assim:
Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra […]. (2)
Cada acto ou gesto é sempre o fulgor de uma luta com (não contra) o incognoscível, que, mais do que sentimento místico extra-mundo, é precisamente um modo de aproximação ao real. O incognoscível que se manifesta numa rua vazia, num rosto abismado, numa árvore florescente, numa praça alegre, num objecto afectivo, numa genuflexão orante, na perda de alguém. É desta luta com o inesperado que advém uma possível imaginação de novos horizontes. A arte, no seu sentido pleno e abrangente, não nos aquieta ou sossega, antes pelo contrário, desengaveta-nos das nossas certezas adquiridas.
O enigma do incognoscível residirá aí, no entre do branco e do negro, o acinzentado, grávido de coloração, e não fora dos entes ou na sua sobrevinda fantasmagórica. Ver as múltiplas cores do mundo no cinza, a aparência natural e imperfeita, o corpo animado sem artifícios, a instabilidade operante da matéria corporal. Daí a dificuldade em obter uma boa imagem a preto e branco, bem mais difícil do que a cores, porque nos implica verdadeiramente na nudez da sua manifestação, sem distrações. Ver as cores do mundo no evento-fundo cinza! «A reprodução a cores nunca corresponde à percepção real do espectador, o preto e branco parece-lhe ser o único meio de evitar toda e qualquer falsidade, bem como de alcançar a realidade [...] Por essa razão, os seus quadros em tons de cinzento têm, para ele, um “efeito” muito mais colorido” do que se os tivesse pintado a cores.» (3)
Transpondo para o plano teologal, é como se o crente entrevisse a força da ressurreição na debilidade crucífera, como impossibilidade de passar a um outro modo de ser sem o aguilhão cinzento do morrer... A possibilidade do afastamento do cálice não se dá sem o impossível ou impensável abandono divino na hora mais escura ou cinzenta do dia... Ou de ascender sem levantar os pés do chão... Nem todos acedem a essa linguagem cifrada, no acto da conversação quotidiana, por exemplo, que não é da ordem moral ou pragmática, mas de uma expressão ulterior (ontológica) das coisas, sempre por traduzir completamente, porque o nosso dispositivo linguístico é frágil e incompleto para abarcar esse incognoscível que se manifesta ou expressa de diversos modos, que não estrita e exclusivamente discursivos. Como nos diz Sophia de Mello Breyner, é a ardilosa arte de «pôr o mistério a ressoar em redor de nós». Não estará a força inventiva de algo aqui, a sua verdade mesma?
Segundo o filósofo italiano Enzo Paci, há três elementos existenciais que são fundamentais para o acto de pensar a verdade do ser das coisas: não cessar de explorar o mundo; não se acomodar ao bom senso; despertar significados adormecidos. Isto é, influenciar o pensamento, seja ele de que natureza for, e a cultura, através de uma leitura fenomenológica dos acontecimentos... Mas tudo permanece muito pobre, frágil, aquém do dito e do feito, e por isso procura-se sempre, até chegar o momento em que já não será necessário buscar mais, pois simplesmente as coisas acontecerão em nós, como um milagre inesperado, insondável, mas perceptível à sensibilidade e à imaginação humanas.
Acontece que hoje caminhamos para a concepção total de indivíduos atomizados e inestéticos, incapazes de sentir o que quer que seja, em virtude das perdas sensoriais irreparáveis. E o que sentimos quando contemplamos a obra de Francis Bacon? A realidade crua e violenta do mundo sem «Deus». A dimensão cristã da arte de Bacon é inegável, pelo menos como fonte de inspiração, partindo mesmo da radicalidade do dogma paradoxal da encarnação de «Deus». Não se trata apenas de uma doutrina, mas como demonstra a sua arte, é uma existencial que faz sentido, na medida em que diz a relação sempre tensa entre «Deus» e o humano, por vezes a raiar a violência do desejo de consumação, como o célebre quadro de Eugène Delacroix, La Lutte de Jacob avec l'Ange (1856-1861).
Portanto, o drama da carne é omnipresente na obra de Bacon, na medida em que foi também o seu próprio drama. A carne ferida, escondida, esventrada, pútrida, sexual, erótica, pecaminosa, ressurrecional, anónima ou invisível, é carne universal, pois nela se expressa densamente a nossa própria humanidade, a passagem dramática do tempo na carne. Os quadros de Bacon são a expressão máxima do homem moderno, autónomo e independente de qualquer transcendência, que vive como se Deus não existisse (etsi Deus non daretur), para usarmos uma expressão de Dietrich Bonhoeffer, como se houvesse apenas o aqui e agora, sem possibilidade de uma redenção ulterior da materialidade. Não se trata de um juízo moral sobre a bondade ou perniciosidade tal abandono, mas a evidência do drama teológico e antropológico, a degradação originária do humano, e do seu impossível resgate nos estritos limites da imanência.
Como argumenta Deleuze, numa obra magistral dedicada a Bacon: «Só nos açougues Bacon é um pintor religioso» (4). Nas próprias palavras do artista: «Sempre me senti muito tocado pelas imagens relativas aos matadouros e à carniça, e para mim tais imagens estão estritamente ligadas a tudo o que diz respeito à Crucificação […]. Não há dúvida de que somos carniça, somos carcaças em potência. Se vou a um talho, acho sempre surpreendente não estar ali eu em vez do animal» (5). Assim, podemos dizer que Bacon é o teólogo visual da carne crucificada, da ferida humana que comunga da ferida aberta do próprio Cristo, como emblema universal do trágico, mas também do salvífico. A “lógica da sensação” (Deleuze) de Bacon é o sentir encarnado de um corpo em mutação, cuja significação ou semiótica nos escapa profundamente. Há, portanto, em nosso entender, no artista irlandês, a expressão pictural da figuração de uma endo-teologia, quer dizer, de uma tensão subterrânea de confrontação com a possibilidade de «Deus», como acontece, por exemplo, com Dostoiévski ou Emil Cioran. É o apofático que emerge na sua arte. Como nos recordava Steiner, toda a verdadeira arte é uma confrontação, seja para o negar ou afirmar, com a presença real da transcendência. Este critério, ideologicamente preterido em virtude das leituras historicistas ou simplesmente semióticas, é claramente uma hipótese plausível para a compreensão da obra do artista britânico ou de toda a grande arte.
Assim, podemos dizer que «Bacon procurou expressar o que sentia em viver num mundo sem Deus e sem vida após a morte» (6). Bacon pintou o que Nietzsche havia profetizado e praticado, não só com o anúncio da «morte de Deus», a de um Deus demasiadamente conceptual e moral, mas com essa morte, a transmutação de todos os valores, e a necessidade de criar uma nova ordem axiológica que fosse afim à exclusiva vontade de poder. A questão está em saber se o «Humano Demasiado Humano» (Nietzsche) se pode bastar a si mesmo como absoluto que tudo relativiza perante a auto-afirmação projectual do sujeito, sem a abertura ao outro próximo ou distante de si?
Esta instauração do imanente absoluto, do humano autossuficiente e narcísico, Bacon expressa-a de modo único nos seus quadros, mais precisamente, a violência de ser si mesmo sem a presença de Outrem ou na negrura absoluta da Transcendência. Em Bacon, encontra-se tudo: o religioso, a psicanálise, arte, a ética, estética, a filosofia, Nietzsche, a vida na sua quotidianidade, crua e dura. A consciência aguda da tragédia pessoal e colectiva, da violência, o caos existencial. Mas também há lugar para o sublime (a simbólica do cor de rosa ténue ou dos alaranjados apaziguantes, espécie de serenidade solar após a turbulência marítima), ao menos para a simples aspiração do humano a sobrelevar-se da sua animalidade, a atingir um significado ou sentido que resulta sempre inatingível. Na sua obra há uma tensão permanente entre as diversas tonalidades afectivas, entre o racional e o irracional, o civilizacional e o animalesco, o humano e o divino…
Francis Bacon, que pintou a trindade na ruína da carne, cuja
opção pelo suporte tríptico não será alheia a essa dimensão espiritual,
escrevia: «Quando estamos a pintar qualquer coisa, estamo-nos a pintar
a nós próprios também». Nem sempre os que falam ou escrevem se falam ou se
escrevem a si mesmos. Falta muito o “se” reflexivo... o enigma da
linguagem... E, no entanto, todos, no tempo próprio, deixaremos de ser
simulacro, para passar a ser cinza pura e verdadeira. Ninguém escapa a
isso... O enigma dos enigmas, a morte, como o paredão último do sonho
da imortalidade que a tecnociência procura abater com todas as suas
forças, como tentativa desesperada de forçar os limites do humanamente
pensável. Como afirma a curadora da exposição: «Numa vida de permanente
fuga à morte, o artista ateu viu a imagética cristã ser o seu maior aliado e arma
num percurso artístico em que este tema consegue ser traçado do seu
primeiro ao último quadro. Enquanto artista, destacou-se por transformar compulsões inconscientes em formas figurativas e grotescas, revelando-se obcecado pelo horror da existência e vulnerabilidade do ser humano.» (7)
Feliz obsessão, diremos nós, porque ela estende sobre a nossa
vulnerabilidade um olhar luminoso, sem a sublimar ou esconder, mas
trespassando-a ou habitando-a por dentro, não por via do conformismo,
mas por uma luta permanente com os seus próprios demónios e estigmas.
Esta dimensão do mal radical, em Bacon, que a imagética cristã apelida
de “pecado originário”, no sentido que há um caos que nos precede, uma
espécie de zona ou buraco negro cósmico (cf. a presença desta dimensão
da “noite escura” nos vários quadros de Bacon), do qual saímos e para o
qual podemos a todo o instante voltar, não é primeiramente uma
realidade moral, é, sim, ontológica, no sentido que pertence ou está
radicada no mais profundo do nosso ser. É aqui que o humano raia à
animalidade, a possibilidade da metamorfose em algo ou totalmente
diverso de si, como acontece na parábola literária ou existencial “A
Metamorfose”, de Francis Kafka, em que o humano (Gregor Samsa) devém
animal (insecto), por via da corrente de forças pessoais e impessoais
que agrilhoam a sua carne solitária no seio da comunidade familiar.
Sem dúvida, assim pensamos, que estes dois artistas, Bacon e Giacometti, são a expressão superior do espiritual na arte, na mediação paradoxal e dialéctica entre a figuração e a abstracção, ou melhor, na capacidade singular de relativizar o que é figural e o que é abstracto, como se estas duas formas de dar corpo ao material e ao imaterial, de tornar visível o invisível, pudessem ser pensadas separadamente. São dois artistas do corpo sensível, a partir do quais ou entre os quais, se poderá inaugurar toda uma outra via artística ou pensamento estético, o da universalidade singular do anonimato da carne, de que falava o filósofo Merleau-Ponty. Esta carne anónima não é atomização ou individuação separada, mas relação viva e pulsional com a carne do mundo, de tal modo que já não somos nós que pensamos as coisas (a obra de arte, a paisagem, o rosto…) mas são as coisas que se pensam em nós. Esta espécie de simbiose diferenciada, nunca indiferente à diferença dos entes, interpela-nos e convoca-nos para a comunicação imemorial, mais real do que a própria presente de si a si mesmo ou a outrem, na medida em que nos precede e permanentemente nos vem à consciência ou à memória.
Seria ousado chamarmos a esta Carne, ou Ser, «Deus», na medida em que nele, como diz Paulo de Tarso, citando talvez o poeta grego Epiménides (séc. VI, a.C.) e Arato (sec. III a.C.), no seu poema astral Fenómeno 5: «Pois nele vivemos e nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: Da raça dele também nós somos. Sendo nós da raça de Deus, não devemos pensar que semelhante a ouro ou a prata ou a pedra – a coisa gravada pela arte e imaginação do homem – é o Divino» (8)? O sacro encontra o profano, o religioso o poético, numa “feliz contaminação” de estilos existenciais. Só uma visão dualista das coisas ousa dividir o que está ontologicamente próximo. Com certeza, não o Deus conceptual dos sistemas filosóficos teístas, causa sui sem correspondência nem relação, ou da explicação causal e última de tudo, mas o «Deus sensível» (Blaise Pascal) à carne abissal, aquém de nós, como força ou pulsão vital que dinamiza a corrente da história e a transformação da matéria. Do «Deus» (Carne anónima) que se faz sentir nesse “mistério em redor de nós”, e entre nós, nas pregas ou franjas da matéria imaterial, como massa ou buraco negro, em torno do qual rodopiamos, seja para o crer, imaginar ou simplesmente negar. E todavia, a negação, porque Ele vem sempre à ideia ou nos símbolos culturais que nos circundam como vestígios inapagáveis, para além evidentemente da convicção crente religiosa, é passivamente um outro modo de afirmação. Como argumenta Florence Gaillard, no seu artigo Francis Bacon à corps et à cri:
O homem de Bacon é um homem sem Deus, um animal entre outros animais, respondendo como tal ao medo, às necessidades físicas. Mas, ao contrário do animal, este homem aspira a um sentido que não alcança. Portanto, ele sofre. A sua carne tortura-o, ele grita, não há ninguém que possa fazer mais por ele. Deus não está aí, mas o cristianismo é onipresente nas suas pinturas: seja nos retratos de papas de sua primeira época, seja em sua série de crucificações, que em Bacon são apenas formas sofisticadas de carnificina, a iconografia cristã escoa, desabrocha mesmo, nos seus aspectos sacrificiais, mas também eróticos. (9)
Assim, a arte pictural de Bacon radicaliza e dramatiza a carne do Invisível, na medida em que vive permanentemente no fio da navalha, no confronto com a possibilidade desestabilizadora da sua existência, não enquanto ente abstracto, mas enquanto habitáculo do nosso próprio ser. É neste não-sentido da existência, exacerbada em surdina pela não-presença visível de «Deus», que leva à disformidade e desintegração do corpo-humano (humanizado) em corpo-animal (desumanização), que entrevemos Baco como anateísta, quer dizer, o teólogo ateu da carne crucificada, da negação do «Deus» omnipotente, e a afirmação do regresso (anateísmo) do «Deus» crístico por via e na fragilidade humana, como modo fundamental da sua presença. Esta fuga ao divino clássico é simultaneamente êxodo do humano, a impossibilidade mesma de pensar o humano, sendo esta impossibilidade da possibilidade de «Deus», o trauma inesquecível do próprio artista, a incapacidade de nomeação, a ferida de morte que os fluídos e líquidos corporais (sémen, urina, sangue, lágrimas…) anunciam em permanência. Ou dito doutro modo, com a interrogação do poeta Fernando Pessoa: «Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna» (10).
A liquidez existencial, a vida entendida como “liquidade” instável, escorreita, esventrada, leve, sem peso nem medida, sem solidez, advém precisamente dessa ausência brutal do Transcendente, ou pelo menos, o que já sintomático de uma crise, da incapacidade de o nomear como fonte de sentido e de salvação. Restar-nos-á o desespero de uma existência vivida na radical imanência, sem esperança de uma transformação ou transfiguração da materialidade? O que nos acontecerá, o que somos ou seremos, quando não podermos mais divertir-nos, e a festa se revelar uma “festa da insignificância” (Milan Kundera)? Essa era a pergunta de Rainer Maria Rilke: «Que farás tu, Deus, quando eu morrer»? E se, como Bacon, não ousarmos fazer essa pergunta, o que nos restará? A violência da luta das espécies? Valerá a pena destacar aqui as palavras do próprio artista irlandês:
A minha pintura não é violenta; a vida é que é violenta. Vivenciei a violência física, inclusive tive os meus dentes fraturados. Sexualidade, emoções humanas, vida quotidiana, humilhação pessoal – a violência faz parte da natureza humana […] Nascemos, fazemos sexo, morremos. O que poderá ser mais violento do que isto? É através de um único grito que nascemos para este mundo. O sexo é um acto muito violento, principalmente entre homens e nem vamos falar da morte […]. A minha pintura é uma representação da vida, e, acima de tudo, da minha própria vida, que tem sido muito difícil. Então, talvez a minha pintura seja muito violenta, mas isto é algo natural para mim. (11)
Ora, é precisamente desta confissão encarnada que nasce a pulsão poética criativa da sua obra, que não sublima nada do que é humano em subterfúgios ilusórios ou simplesmente em simulacros que distorcem a própria percepção de si, da obra mesma e da realidade que o envolve. Toda a grande obra de arte, as verdadeiras reformas do pensamento e das instituições, nasce desta ferida na carne, do divino de dom de iluminar a ranhura dessa ferida que é comum a todos os humanos. Muito possivelmente estas não serão as questões que inquietem os humanos de hoje, ávidos que estamos para voltar à dita “vida normal”, à folia do esgotamento de si no imediato das relações e dos encontros sociais. Mas estes “metafísicos da carne” estão aí para nos sinalizar as questões radicais, com as quais, mais dia menos dia, teremos de nos confrontar ou até lutar, que dizer, atravessar mar adentro. Se, como escrevia Genet sobre a arte de Giacometti, «na origem da beleza está unicamente a ferida, singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si […]. A arte de Giacometti parece querer revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas, para que ela os ilumine» (12), mais presente ainda está essa ferida inesgotável na obra de Bacon.
Não há beleza sem ferida, sem a gangrena carnal, ao ponto de, e foi assim que os génios da humanidade se revelaram, sem pudor nem fama, como escreve a artista Helena Almeida: «A Minha Obra é o Meu Corpo, O Meu Corpo é a Minha Obra». Mais do que pretende saber se a vida traduz a obra ou a obra a vida, é fundamental ir «às coisas mesmas”, em “carne e osso”, ao olhar fenomenológico sobre o que se nos dá a ver ali mesmo, onde corpo e obra são um só, como a comunhão dos corpos eróticos, na diferença irredutível dos seres entre si, se faz só corpo na relação amorosa dos amantes. Para usarmos uma metáfora visual, “O Meu Sangue é o vosso Sangue”, como intitula Rui Chafes a sua peça escultural permanente no Museu da Misericórdia do Porto. Diante da «sociedade do espetáculo» (Guy Debord), da «sociedade da sedução» (Gilles Lipovetsky) ou da «sociedade da transparência ou da positividade performativa» (Byung-Chul Han), que são também formas cómodas de uma certa sociologia pensar a complexidade da realidade, apraz-nos a via fenomenológica como via que terá ainda algo a dizer a propósito da existência, dos fenómenos artísticos e das obras de arte (13).
Mais do que nunca se impõe a necessidade de uma descrição fenomenológico-existencial da obra de arte para se sair de uma leitura meramente hermenêutica ou semiótica, ou então historicista e psicologizante, que tem sido, aliás, o caminho privilegiado, pelo menos no nosso ambiente intelectual e filosófico, na aproximação à obra de arte enquanto tal. Toda a arte é a materialização de um pensamento. Acontece que o tempo dos artistas-filósofos ou pensantes chegou praticamente ao seu fim. O diálogo de Bacon com Nietzsche é constante. Basta pensarmos em artistas como Malevich, Paul Klee, Kandinsky, Giorgio de Chirico ou René Magritte, entre tantos outros, que procuram dar corpo ou carne ao conceito e à ideia. Filosofia e arte sempre foram íntimos, já para não falarmos na relação entre pensamento místico ou religioso e arte, que só uma ideologia academicista obtusa pode obliterar por completo. Basta ver as teses e as análises que são feitas às obras de arte, centradas na compreensão literária, estilística, contextual, sem qualquer peso do facto teológico ou espiritual. Como seria possível compreendermos Tolstói ou Kafka, Bergman ou Tarkovsky sem o fundo «Deus» ou «crístico» que muda tudo, na medida em que para esses criadores ele é a ignição de toda a sua arte? (16)
Ora, se «Deus» nesses autores ainda se colocava como questão, que o diga Nietzsche, por exemplo, hoje «Deus» enquanto questão para o humano parece não ser a interrogação fundamental das artes nem da literatura, nem o ponto de ignição para as buscas existenciais mais radicais. Surpreendentemente, ou não, é essa a tese do filósofo Byung-Chul Han quando fala do «desaparecimento dos rituais» e a instauração da angústia moral como doença mortal do século. O tédio de existir, não obstante a folia do divertimento nocturno ou a transferência do Absoluto de outrora para uma vida simplesmente estética, poderá ser trágico, quando a sua ausência se efectiva e perdura (17). Ora, é precisamente isso, em nosso entender, que Francis Bacon, ou ainda mais radicalmente Lucian Freud, procura descrever picturalmente, sem concessões, e drasticamente. Sem a possibilidade de uma abertura do espírito à Transcendência, o humano degrada-se ao nível da animalidade, na medida em que já não é racionalidade que nos diferenciaria, mas a capacidade, como diria Thomas Mann, de sentir o divino, de se sentir vinculado a uma comunidade ritual cujo sentimento supera a própria comunidade ou está para além dela, como o sentido de uma obra está para além da sua forma material.
No texto introdutório à exposição, a curadora afirma que Bacon «desafiou-se a buscar novas possibilidades na representação da figura humana, da forma mais realista e evocativa possível, explorando em que medida a vitalidade da carne e do sangue podia ser capturada e materializada na sua obra», constituindo-se ao mesmo tempo, como ponto crítico do optimismo do iluminismo da modernidade, que sob a égide do progresso linear e absoluto, descuidou a possibilidade real da desintegração do humano, cujas sequelas sísmicas dessa híper-racionalidade se fazem sentir hiperbolicamente na numerização quase total do humano. As expressões baconianas da figura humana, da sua desfiguração e anamorfose é, sem dúvida, um contragolpe nesse optimismo exacerbado, que colocou na tecnociência toda a esperança libertadora da existência humana.
Todavia, olhar para a obra de Bacon é ter em conta as diversas etapas do seu itinerário artístico-existencial, pelo que o Bacon do pós-guerra não é o Bacon dos 70 em diante, como é visível, por exemplo, na sua inovação da cor. Assim, como nota Didier Ottinger, editor do catálogo de retrospectiva da obra de Bacon, no Centre Pompidou: «De 1971 a 1992 (data da morte do pintor), a pintura é estilisticamente marcada pela sua simplificação, pela sua intensificação. As suas cores adquirem uma nova profundidade, ele usa um novo registro cromático, amarelo, rosa, laranja saturado.» (18)
Não por acaso Bacon, para além de impor uma nova figuração do corpo e do rosto humano, opera uma crítica da modernidade, através da reabilitação do sensível, do mítico, do arcaico, da animalidade, dos ritos ancestrais, como realidades significativas para a vida humana. Ao excesso de racionalidade Bacon contrapõe a matéria negra da existência, na qual se decide todo o que somos e o que não somos, e sem qual, por muito discurso lógico ou razão que tenhamos, o sujeito desmorona-se, esvai-se como líquido que se rarefaz no drama de existir. Ao invés do “Penso, logo existo”, poderíamos dizer que Bacon, e não só ele, contrapõe o “Sinto, logo existo”, sendo aqui que se joga a verdade universal do humano. Este “sentimento de si”, que só o é, na medida em que ressente o sentimento de Outrem, o desejo inalienável de amar e de ser amado, de tocar e ser tocado, de desejar e de ser desejado.
A carnalidade e sanguinidade omnipresente em toda a sua obra, que o vermelho escuro sugere e intensifica o drama, acusa a ambiguidade da existência: a morte e a vida, a pulsão e o tédio, a força e fragilidade, como lugares de revelação da vida humana. A eminência da morte é real, pois ela flui do próprio corpo (os fluídos ou líquidos como expressão da sua presença). E todavia, não poderá o irónico Kafka também dar-nos o antídoto para não perdermos o horizonte do caminho, a amplitude da decisão e o dom da esperança no seio da desgraça sanguínea baconiana? «Existem dois pecados humanos capitais, dos quais todos os outros derivam: a impaciência e o desleixo. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa do desleixo não volta para trás. Mas talvez só exista um pecado capital: a impaciência. Por causa da impaciência forma expulsos, por causa dela não voltam para trás […]. A partir de um certo ponto já não há retorno. Há que alcançar esse ponto» (19). Inevitavelmente, há que prosseguir o caminho aberto pela carne crucificada até que o clarão incandescente nos sature de riso a impaciência que paticamente nos habita.
(1)A Montanha Mágica, Relógio d’Água, Lisboa 2020, p. 703.
(2) Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Livro do Desassossego, edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisboa 2012, p. 157.
(3) Serena Bucalo-Mussley, «Quando o imaterial se torna visível», in Catálogo Alberto Giacometti-Peter Lindbergh: Capturar o Invisível, edição MMIPO, Porto 2021, p. 112.
(4) David Sylvester, The Brutality of Fact: Interviews with Francis Bacon 1962-1979, Thames and Hudson, Nova Iorque, 1987, pp. 23,46.
(5) Gilles Deleuze, Francis Bacon: Lógica da Sensação, Orfeu Negro, Lisboa 2011, p. 64.
(6) Folha de sala da exposição Obras Gráficas de Francis Bacon.
(7) Cf. https://wow.pt/pt/event-wow/exposicao-francis-bacon/
(8) Cf. «Livro Actos dos Apóstolos (17, 28-29)», in Novo Testamento, Vol. II: Apóstolos, Epístolas e Apocalipse, trad. Frederico Lourenço, Quetzal, Lisboa 2017, p. 107.
(9) https://www.letemps.ch/culture/francis-bacon-corps-cri.
(10) Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Livro do Desassossego, p. 106.
(11) Cf. folha de sala da exposição.
(12) Jean Genet, O Estúdio de Alberto Giacometti, Assírio e Alvim, Lisboa 1998, pp. 19 e segs.
(13) Em Portugal, essa via é assumida quase solitariamente pelo
filósofo José Gil, ao contrário da tradição francesa, ou mais
recentemente pela anglo-saxónica, que tem encetado caminhos
fenomenológicos deveras originais na abordagem da obra de arte,
particularmente, na relação entre a estética, a psiquiatria ou a
psicanálise, assumindo, assim, por inteiro, a dimensão existencial da
arte.
(14) Cf. Marc Jimenez, A Querela da Arte Contemporânea,
Orfeu Negro, Lisboa 2021, no qual o autor nos lança a questão central:
«Como julgar a qualidade artística de objectos e de práticas quando já
não existem critérios nem normas de referência?» Ora a hipótese de
Jimenez está que, relativamente à obra de arte contemporânea, não se
trata tanto de incompreensibilidade por parte do público, mas da
inadequação mesma dos conceitos tradicionais, tais como de arte, obra
ou de artista, para expressar a criação artística e conceptual
contemporânea. Todavia, permanece a questão de saber o que significa a
palavra “contemporâneo” e o seu alcance mais amplo, na medida em que
toda a grande arte é nossa contemporânea, portanto imemorial, no
sentido que continua ainda hoje a dizer-nos algo. Pode acontecer que um
clássico, que lemos e relemos vezes sem conta, seja mais nosso
contemporâneo que um autor do século XXI. Acompanhamos o pensamento do
escultor Rui Chafes quando afirma: «Também não sei o que é arte
contemporânea, não sei o que é isso; não sei quem é que decide ou quem é
que escreve acerca de uma arte que dizem que nasceu hoje» (in O Silêncio de…,
Assírio & Alvim, Lisboa 2006, p. 94). A grande arte transporta
consigo em cada época e lugar toda a história da arte, do pensamento ou
da filosofia, pois como dizia Umberto Eco, parafraseando Bernard de
Chartres, caminhamos sempre “aos ombros dos gigantes”, a partir dos
quais se abrem novas clareiras ou rasgões criativos. Francis Bacon é um
exemplo disso mesmo, pois a sua pintura inspira-se claramente em
Vélasquez ou Zurbarán. Não será este um critério crucial para
distinguir a arte de génio da arte mediana ou meramente circunstancial?
(15) Rui Chafes, O Silêncio de…, p. 94.
(16) Sobre a questão, ainda que não de modo detalhado, mas com
elementos de análise absolutamente cruciais para uma outra abordagem da
obra de arte, cf. Bernardo Pinto de Almeida, Arte e Infinitude. O contemporâneo: entre a arkhé e o tecnológico,
Relógio d’Água, Lisboa 2018. Em todo o caso, em minha opinião,
continua indiscutível o trabalho imenso e único de Georges
Didi-Huberman, que, com fineza e inteligência, explora os meandros das
obras de arte, numa reflexão sempre ampla e culta.
(17) Para constatarmos que esta questão não está démodé,
nem diz respeito simplesmente ao mundo religioso ou teológico, é de
saudar vivamente a conferência “A angústia de um mundo sem Deus e
outras inquietações da existência: No bicentenário do nascimento de
Dostoievski”, no âmbito do Festival dos Capuchos, a realizar no dia 3
de Julho de 2021, com intervenções de António Pescada, Guilherme
d’Oliveira Martins e Hélia Correia, sob a moderação de Carlos Vaz
Marques.
(18) Cf. Francis Bacon en toutes lettres : Catalogue de
l'exposition présentée au Centre Pompidou du 11 septembre 2019 au 20
janvier 2020, Bibliothèque publique d'information du Centre Pompidou, Paris 2020.
(19) Francis Kafka, Considerações sobre o pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho, Sr Teste edições, 2020, pp. 5, 6.
Fonte: https://www.snpcultura.org/francis_bacon_o_anateista_da_carne_crucificada.html
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