sexta-feira, 11 de junho de 2021

A terapia dos livros que salvam vidas

 “A biblioterapia é uma ciência com resultados rápidos e efetivos”, afirma Galeno Amorim, um dos principais fomentadores dessa terapia no Brasil — Foto: Lídia Muradás/Divulgação 

“A biblioterapia é uma ciência com resultados rápidos e efetivos”, afirma Galeno Amorim, um dos principais fomentadores dessa terapia no Brasil — Foto: Lídia Muradás/Divulgação
 

Biblioterapia usa poder das histórias e ganha força em meio à pandemia

Além de entreter e alargar nosso mundo com experiências diversas das que conhecemos, a literatura pode ter excepcional poder terapêutico. Esta é a aposta da biblioterapia, tratamento milenar que vem ganhando cada vez maior visibilidade e adeptos. Definida como terapia por meio da leitura, é aplicada tanto em casos individuais, nos consultórios, como em bibliotecas, hospitais, prisões e outros serviços públicos, mostrando-se efetiva ao lidar com temas perenes, que hoje se fazem urgentes, como o medo, o luto, a solidão, o transtorno mental.

Curar, assim como ler, é “abrir-se a uma outra dimensão, sair de todo encerramento dogmático”, escreveu Marc-Alain Ouaknin no clássico “Biblioterapia”, de 1994. Foi também por volta dessa época que Galeno Amorim, um dos principais fomentadores da biblioterapia no Brasil, começou a trabalhar na área. Ele conheceu a terapia bem jovem, na condição de paciente, ao participar de um grupo que conversava sobre seus problemas a partir da leitura de histórias. Com uma carreira profissional voltada às políticas públicas de promoção da leitura, ele criou em 1999 o Observatório do Livro e da Leitura, com ações biblioterapêuticas voltadas inicialmente a jovens em atendimento socioeducativo, dentro e fora de abrigos, e em seguida a presidiários e idosos. São essas experiências que o levam a afirmar, enfático, que “a biblioterapia é uma ciência com resultados rápidos e efetivos”.

Entre os vários casos de transformação que acompanhou, Galeno conta de um rapaz, preso por assalto à mão armada e tráfico de drogas, que encontrou nos livros a motivação para a vida pós-cárcere. “Ele começou a entrar em pânico quando estava prestes a sair porque não sabia o que ia fazer fora da prisão. De repente, leu o livro ‘Hermes, o motoboy’, do Ilan Brenman, que lhe deu novas ideias. Com a ajuda da mãe, comprou uma moto baratinha, virou motoboy, começou a fazer entregas e hoje está terminando o curso de direito.” O encantamento pela leitura é levado a presos que, em sua maioria, nunca tinham tido a chance de ler. “Isso sem proselitismo ou fundamentalismo”, destaca Galeno.

O trabalho com os idosos teve início em 2008, com a criação de clubes de leitura. Naquele ano, como coordenador da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, Galeno constatou que nessa faixa etária, em que teoricamente se tem mais tempo para a leitura, é quando menos se lê. Ano passado, antes da pandemia, avançou nas ações com idosos, dando destaque à leitura de e-books em computadores, tablets e celulares. “Até para efeito de teste, decidimos desafiar a tendência de as pessoas mais velhas resistirem ao uso da tecnologia”, diz. Deu certo e, com o início do isolamento social, os encontros presenciais foram transferidos para lives. O Observatório contratou 20 biblioterapeutas e criou 108 clubes de leitura distribuídos por 26 cidades do Estado de São Paulo. O projeto atingiu 1.124 pessoas. “Nossa leitora mais longeva”, conta Galeno, “faleceu recentemente com cem anos”.

“O único pré-requisito é amar a literatura e ter vivenciado na pele o poder terapêutico que as histórias têm na nossa vida”, diz Carla Sousa, de Doses de Biblioterapia — Foto: Maikele Pasini/Divulgação

“O único pré-requisito é amar a literatura e ter vivenciado na pele o poder terapêutico que as histórias têm na nossa vida”, diz Carla Sousa, de Doses de Biblioterapia — Foto: Maikele Pasini/Divulgação

Foi também a partir de uma experiência pessoal que a psicóloga clínica Cristiana Seixas, um nome de referência na área, se aproximou da biblioterapia. Numa fase especialmente difícil, caiu em suas mãos o livro “Mas por quê??!”, do alemão Peter Schossow, que conta a história de um luto não processado. “Foi um clarão”, diz ela. “Há palavras que, apenas murmuradas, abrandam em nós os tumultos”, acrescenta, citando o filósofo Gaston Bachelard. Hoje, além de utilizar a biblioterapia no seu consultório em Niterói, no Rio, ela dá cursos de formação e conduz círculos de biblioterapia gratuitos on-line.

À frente do site Comunidade Biblioterapia, Cristiana prefere falar em “cuidado”, e não em“cura”. Em 2020, ela publicou “Quintais da biblioterapia: experiência na poética do cuidado”, e em junho próximo vai lançar “Biblioterapia: cais de sopros vitais”. Ela também incentiva pacientes, alunos e participantes das rodas de leitura a escreverem. “Há um efeito catártico, de expurgo mesmo”, afirma. Até agora foram publicadas sete antologias com esses textos.

Uma de suas pacientes, Angela Puppim, autora de “Escritas libertárias”, conta que chegou à biblioterapia em 2015, quando terminava um casamento de mais de 40 anos e sofria graves problemas de saúde. Ela detalha o processo terapêutico: “Os trechos de livros prescritos nominavam a minha dor, me faziam olhá-la, acolhê-la e ressignificá-la. A biblioterapia curou a dor, me fez sair daquele lugar e me levou a utilizar a escrita como um processo libertador”. Angela ainda faz terapia e participa dos círculos de leitura on-line. “Esses encontros têm sido um bálsamo, um suporte importante para atravessar esse tempo de sofrimentos e dores individuais e coletivas.”

Cristiana Seixas, que já atuou com pacientes em processo de quimioterapia no Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói, e com mulheres mastectomizadas, ressalta o efeito curativo, já conhecido por nossos ancestrais, de encontros em que se trocam histórias. “É perceptível como o clima muda instantaneamente, gera uma sensação de pertencimento, nos nutrimos de ‘palavras formosas’, para usar a expressão de Kaká Werá”, diz a psicóloga.

Bachelard, Kaká Werá, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Mia Couto, Adélia Prado, Manoel de Barros e muitos outros são autores que compõem sua “farmacinha”, como ela chama. Por ter resultados terapêuticos comprovados, ela argumenta que a biblioterapia deveria ser incluída como uma das práticas integrativas e complementares de saúde (PICS) do SUS, que  já reconhece 29 procedimentos baseados em conhecimentos tradicionais para a prevenção de doenças.

Como não tem formação na área “psi”, a jornalista Carla Sousa não se define como biblioterapeuta, mas sim como especialista e mediadora em biblioterapia. No momento em que ouviu pela primeira vez o termo, ela soube que queria trabalhar na área. Deixou Aracaju, onde nasceu, e transferiu-se para Florianópolis para cursar o mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina com a professora Clarice Fortkamp Caldin, precursora da biblioterapia nos meios acadêmicos do país. Ao concluir o mestrado, dedicou-se inteiramente ao campo. Criou os Doses de Biblioterapia, onde promove cursos e oficinas, antes presenciais, em Florianópolis, e agora on-line. Segundo ela, pessoas de qualquer profissão podem trabalhar na área. “O único pré-requisito é amar a literatura e ter vivenciado na pele o poder terapêutico que as histórias têm na nossa vida”, diz Carla, autora do e-book gratuito “Biblioterapia, por onde começar?”, disponível em seu site, e do recém-lançado “Biblioterapia e mediação afetuosa da literatura”, com prefácio de sua mestra e mentora Clarice Fortkamp Caldin. 

Reportagem Por Sheila Kaplan — Para o Valor, do Rio

11/06/2021 

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/06/11/a-terapia-dos-livros-que-salvam-vidas.ghtml

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