João Pereira Coutinho*
Conservadores tradicionais sempre foram a via média entre os extremos e não há motivos para reverter isso
Gosto de ler Ross Douthat. Ele faz parte de um pequeno time de intelectuais conservadores que tem o hábito, hoje extravagante, de pensar.
Em texto para o jornal americano The New York Times, Douthat analisou as duas crises do conservadorismo americano. As suas linhas merecem reflexão.
A primeira crise, para mim menos interessante, é a crise do próprio Partido Republicano. Argumenta o autor que o velho GOP, no século 21, já experimentou de tudo: uma versão compassiva, um flerte com o libertarianismo do Tea Party, o paleonacionalismo de Trump —mas nada teve o mesmo sucesso de Ronald Reagan na década de 1980.
Mas é a segunda crise que me interessa e que se resume numa pergunta: o que pode o conservadorismo conservar numa ordem crescentemente liberal?
A resposta clássica, segundo Douthat, é mais ou menos óbvia: deve conservar aquele conjunto de “bens humanos” que o liberalismo na sua versão mais extrema ameaça ou destrói. Entre esses bens estão a família e a religião perante um mundo crescentemente individualista e secularizado.
A questão, porém, é saber como. Sim, como conservar a família quando as taxas de fecundidade despencam no Ocidente?
E que dizer da religião, quando é o abandono dos fiéis, e não necessariamente um complô ateu, que esvazia as igrejas?
Douthat não oferece resposta; apenas afirma, com razão, que a ausência de uma resposta vai jogando a direita para os braços do radicalismo e do reacionarismo.
Acontece que existe uma resposta. Uma boa resposta. Ela foi oferecida por Michael Oakeshott há mais de 60 anos no ensaio “Ser conservador”.
Por motivos acadêmicos, reli o texto recentemente na ótima edição da brasileira Âyiné (“Conservadorismo”, trad. André Bezamat, 194 págs.).
A parte mais conhecida do ensaio está no fato de Oakeshott definir o conservadorismo como uma “disposição” pessoal, e não tanto como uma ideologia.
Ser conservador, na bela prosa de Oakeshott, é “preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna”.
Como é evidente, qualquer um pode exibir essa disposição na sua vida pessoal. Até pessoas de esquerda. Conheço várias.
E o inverso também acontece: pessoas de direita que, nas suas condutas privadas, são tudo menos conservadoras. Também conheço várias.
Mas é quando Oakeshott reflete sobre o conservadorismo em política que as coisas se tornam interessantes. Tão interessantes que o ensaio sempre provocou hostilidade em muitos conservadores (Irving Kristol, o alegado pai do neoconservadorismo americano, recusou publicá-lo na revista Encounter).
Fácil entender por quê: para Oakeshott, o conservadorismo do futuro será liberal ou não será.
Que o mesmo é dizer: “O ofício de governar não é impor aos outros suas crenças, nem educar ou tutelar ninguém, nem fazê-los melhores e mais felizes de outra maneira, nem direcioná-los, incentivá-los a agir, liderá-los ou coordenar suas atividades de forma que nenhum conflito surja; o ofício de governar é simplesmente garantir que a lei seja cumprida.”
Seis décadas depois, Oakeshott foi um visionário ao antecipar os tribalismos do nosso tempo: gente apaixonada por si própria que, à esquerda e à direita, quer fazer-nos melhores ou mais felizes.
Contra essas tentações radicais, sejam revolucionárias ou reacionárias, o autor relembra que a função de um conservador em política é conservar, e não afrontar, a herança liberal que triunfou no século 20 contra tiranias de todo tipo.
É conservar a democracia; o Estado de Direito; a separação e a limitação dos poderes; a liberdade de pensamento e de expressão; a livre iniciativa; e a autonomia dos indivíduos para viverem suas vidas como entenderem, mesmo que isso implique menos bebês na família e menos igrejas lotadas.
No fundo, Oakeshott compreendeu que a ambição de parar a mudança ou de reverter os ponteiros do relógio é tão absurda como sequestrar uma sociedade inteira rumo ao vanguardismo e à ruptura.
O conservadorismo sempre foi, na sua tradição mais moderada e florescente, essa via média entre os extremos. Não há nenhum motivo para que não continue assim.
* Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa
Arte: Angelo Abu/Folhapress
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