Maria Carpi*
CUIDAR É UM PRINCÍPIO DA VIDA EM COMUNIDADE, TAREFA DE GOVERNANTES E, DE ALGUM MODO, DE TODOS NÓS, NO DIA A DIA
Cuidar da alguém é cuidar do universo. Tudo está interligado. No cuidado não há exclusividade: quando uma pessoa está a nosso cuidado, percebemos o mundo em volta e também dele cuidamos. A terra inteira faz parte do poema do cuidado. Hoje a Política anda ao descaso da Ética, que para Aristóteles faz parte integrante da arte de bem governar, visando ao cuidado coletivo do bem comum como a mais alta virtude.
Segundo Martin Heidegger, em sua notável obra O Ser e o Tempo, o cuidado é da essência do existir do homem. Não é um conceito filosófico da existência, mas fático. No aqui e agora, em nosso tempo, seremos avaliados pelo que fazemos ou deixamos de fazer. A presença nos torna responsáveis pela existência humana e inclusive pela vida no planeta. Não se admite o descartável do consumismo atual.
Não apenas a ética da lei, mas a ética comunitária. Estamos juntos, recíprocos, numa relação com a vida. O escritor argentino Enrique Dussel tem um belo livro sobre a Ética Comunitária, que não se restringe às pequenas corporações, aos interesses grupais, privilégios de alguns, mas à preocupação e ao atendimento aos direitos de todos.
Muitas vezes, o cuidado é uma transgressão à lei da mais-valia. O cuidado dos mais necessitados ao arrepio do descuido dos códigos. Lembro a Irmã Dulce na Bahia quando levou os sem-teto a uma casa desocupada pelo proprietário, sem o dito direito de posse. Ela estava exercendo a ética do cuidado.
A ética do cuidado, que também é uma ética poética, gera a fraternidade não só com o gênero humano, mas com a vida animal e vegetal, com os elementos e as coisas. Gera um pacto social do convívio e da solidariedade. Por isso Francisco de Assis, ao cuidar dos desamparados e da natureza como um bem precioso, pôde dizer: Irmão Sol e Imã Lua, Irmão Fogo e Irmã Água. A árvore da vida compartilha frutos e flores, alertando que o cuidado vem desde as entranhas da terra.
A semente é o núcleo da poética do cuidado. Compreende o cultivo das palavras e o cultivo de quem escreve. Um livro jamais te escusa de seres uma pessoa responsável pela colheita dos dias. Nessa eira, crescem, juntos, o joio com o trigo, ervas daninhas com ervas medicinais. Haverá luz e sombras. Tudo é muito misturado, como disse Guimarães Rosa. A ética do cuidado é escolha de vida. Destino é escolha.
O contrário do cuidado é o descaso, o abandono, a negligência, que geram a indiferença com toda a criação. Ser com o outro ou ser com os demais conjuga-se com o amor. O ágape de todas as religiões. Nem sempre ver é enxergar. E nem sempre enxergar é perceber. A primeira tarefa do cuidado é aprender a olhar até perceber a pessoa como única e só então, tê-la a seu cuidado.
A obsessão não é cuidado. Quem não tem cuidado perde a conexão com o universo. A Sinergia: cuidar de outrem começa com cuidar de si mesmo. Cuidar é coexistir: razão da cordialidade. Não um valor adjetivo que se agrega às pessoas ou às coisas, ou as submete, mas um valor substantivo.
O cuidado pressupõe zelo e responsabilidade. Mas os cuidados terão também desvelo, isto é, despreendimento, sabendo que aquele que está sob o cuidado não pertence ao cuidador. É hóspede do cuidado, deixando aberta a porta da morada provisória. Cuida-se para a vida. Ter cuidado é mais do que uma ação: é uma atitude de vida. E a atitude revela o rosto de nossa humanidade.
Certa vez, como defensora pública, quando ficamos sem sala para atender nossos assistidos, por mudança de localização do Juizado da Infância para o Fórum Central, fui informada de que: "aqui é para a administração da Justiça e não para a circulação de sua clientela". Trabalho esse apenas burocrático, sem o endereçado do serviço. Esqueceu-se da principal finalidade: a distribuição da Justiça. O acesso do pobre à Justiça é o mais belo poema social da ética do cuidado.
- Aqui é para a administração da Justiça e não para a circulação de sua clientela.
Trabalho apenas burocrático. Esqueceu-se da principal finalidade: a distribuição da Justiça. O acesso do pobre à Justiça é o mais belo poema social da ética do cuidado.
O mesmo ocorre com quem tem o múnus público de governar uma Nação. Ele e seus assessores formam uma equipe com o dever de zelar pelos interesses dos cidadãos da pátria comum, sob a ética comunitária. A res publica não é res nullius, objeto de usucapião da ganância sistêmica. A responsabilidade política é da essência do poder delegado. Ela vai contra ações ou omissões norteadas por ideologias predatórias. A vontade política tem soberania por expressar a vontade da sociedade civil organizada por uma Constituição. Os sujeitos constituintes nela expressam seus valores éticos e cívicos, rejeitando padrões culturais e sociais que não estão em consonância com o bem comum.
Também temos responsabilidade de ficarmos atentos. Segundo Imannuel Kant, "o sábio pode mudar de opinião. O ignorante nunca". E bem mais grave quando ele pensa tirar vantagem de nossa ignorância.
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