A regulamentação do ensino domiciliar, hoje restrita a 0,03% dos alunos, abre as portas para a exploração do 'mercado cristão'
A regulamentação do ensino domiciliar, hoje restrita a 0,03% dos alunos, abre as portas para a exploração do 'mercado cristão
O Brasil possui 47 milhões de alunos na Educação Básica, segundo o último Censo do Ministério da Educação. A pasta foi a que mais teve recursos bloqueados pelo governo federal neste ano, 2,7 bilhões de reais. Com a pandemia, o abismo social entre os estudantes brasileiros cresceu: ao menos 4,3 milhões de estudantes não possuem acesso à internet e, portanto, não puderam acompanhar as aulas remotamente. Em meio a esse apagão educacional, Jair Bolsonaro e sua base no Congresso têm aplicado energia em outra pauta, absolutamente lateral nas discussões da área, o chamado homeschooling. Segundo dados da Associação Nacional do Ensino Domiciliar, apenas 15 mil alunos são educados em casa. O número representa 0,03% do universo da educação pública e privada, mas o ex-capitão trata o tema como essencial.
Cumprindo promessa de campanha firmada com igrejas e “cristãos conservadores”, ele entregou ao Congresso uma lista com 34 projetos prioritários. Da lista, apenas um versava sobre educação, a regulamentação do homeschooling. Missão dada, missão cumprida. A tropa de choque bolsonarista acatou o pedido do ex-capitão. O primeiro passo foi dado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, que deu aval ao Projeto de Lei 3262/2019, para descriminalizar a educação domiciliar, fora da rede oficial de ensino. Hoje, a prática pode ser enquadrada como crime de “abandono intelectual”, previsto no artigo 246 do Código Penal.
“Enquanto Bolsonaro trata o tema como prioritário, as escolas públicas sofrem com a asfixia financeira imposta pelo governo”
A proposta é de autoria das deputadas bolsonaristas Bia Kicis, Chris Tonietto e Caroline de Toni. Depois, a turma pretende aprovar a regulamentação do homeschooling, prevista no PL 3179/2012, de autoria do deputado Lincoln Portela, do PR. O projeto é relatado por Luísa Canziani, do PTB, que deve apresentar nos próximos dias um substitutivo. Caso seja aprovado, a prerrogativa de educar as crianças será dos pais, que poderão optar por matriculá-las em escolas ou não. Diferentemente do ensino a distância, nessa modalidade não há salas virtuais com interações com professores ou colegas de turma. Os próprios pais ensinam seus filhos.
Como a interação será única e exclusivamente familiar, as mães devem assumir essa função, abrindo mão de atuar no mercado de trabalho e obter a sua própria renda. É o modelo dos sonhos do patriarcado. Além disso, a proposta subverte completamente a lógica do sistema, explica Marcele Frossard, doutora em Ciências Sociais e assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “Se a educação é direito da criança e do adolescente, esse direito passará a ser dos seus pais ou tutores.”
Damares Alves e Milton Ribeiro estendem tapete vermelho para os empresários do setor. Autor do projeto de regulamentação, Lincoln Portela é pastor da Igreja Batista Getsêmani. (Foto: Alan Santos/PR, Ag. Câmara e Willian Meira/MMFDH
O ensino domiciliar é autorizado em ao menos 63 países. O maior exportador da prática são os EUA, onde se estima que 3% de famílias optam pelo homeschooling, das quais três em cada quatro são evangélicas. Por outro lado, Alemanha e Suécia proibiram a modalidade. As famílias alemãs e suecas que não cumprem com a obrigatoriedade de matricular as crianças na rede oficial de ensino estão sujeitas a perder a guarda dos filhos. A despeito dos devaneios bolsonaristas, a enxergar nas escolas um polo de “doutrinação marxista”, a legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo na proteção aos direitos das crianças e adolescentes. “Fala-se muito dos EUA, mas eles têm um sistema jurídico muito distinto. Eles não ratificaram, por exemplo, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança nem o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, observa Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas da UFABC. Mesmo nos países em que há alguma regulamentação sobre a educação domiciliar, não se trata de uma autorização geral, “como um direito de livre escolha dos pais”, acrescenta o especialista.
“Existem outras formas de socializar, na família, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas”,diz o ministro Ribeiro.”
Enquanto o governo desperdiça tempo e energia com o tema, o sucateamento no Brasil segue à toda. Em 2020, o governo nem sequer gastou em educação o que estava previsto no orçamento. Foram destinados 143 bilhões de reais ao Ministério da Educação, mas apenas 81% foram de fato aplicados, ou 116,5 bilhões. É o menor investimento desde 2011. Enquanto isso, as portas do MEC estão abertas para os interesses do “mercado cristão” de homeschooling nacional e internacional. “É claro que a escola oferece a possibilidade de socialização, mas existem outras formas de socializar, na família, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas”, declarou recentemente o ministro Milton Ribeiro, também pastor da Igreja Presbiteriana. Um mês depois, a pasta lançou a cartilha Educação Domiciliar: Um Direito Humano, documento de 20 páginas que orienta as famílias sobre a prática.
O MEC conta ainda com quadros de segundo escalão que são conhecidos pela defesa da pauta. No caso de Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização da pasta, ele desenvolveu seu próprio conteúdo para homeschooling, chamado Como Educar Seus Filhos. Movimentos internacionais como o Classical Conversations Brasil também têm livre acesso ao gabinete. Em fevereiro deste ano, um coral de crianças homeschoolers cantou para o ministro da Educação, que “pediu bis”. A Classical Conversations classifica-se como um grupo de “Educação Clássica Domiciliar Cristã” e foi criada nos EUA em 1997. Posteriormente, abriu filiais em outros países, entrando no Brasil em 2017.
O movimento “Escola Sem Partido” difunde a delirante tese de que os estabelecimentos regulares de ensino promovem “doutrinação marxista”. (FOTO: Redes Sociais )
De acordo com a descrição de sua página oficial, eles oferecem grade curricular compatível com as diretrizes sugeridas pelo MEC, “garantindo ensino domiciliar com qualidade”. “Oramos para que a próxima geração seja profundamente impactada por esses materiais, que são bíblicos e academicamente rigorosos.”
Outra entidade que tem força no Planalto é a Associação Nacional de Educação Domiciliar. Em sua página, ela critica os governos que “por razões ideológicas” nunca lhe abriram diálogo. A entidade viu as portas do MEC se abrirem na gestão de Mendonça Filho, ministro de Michel Temer. Com a eleição de Bolsonaro, a Aned tem realizado sucessivas audiências com Ribeiro e com a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
O presidente da Aned é Rick Dias, que possui um site chamado Simedu, uma das maiores plataformas de homeschooling do Brasil. A página mantém uma loja virtual que comercializa bíblias, material didático e traduções de autores, como o norte-americano Ben Shapiro, que assina títulos como Brainwashed: How Universities Indoctrinate America’s Youth (Lavagem Cerebral: Como as Universidades Doutrinam os Jovens da América).
Em fevereiro, a Aned lançou o Programa de Apoio à Educação Domiciliar em parceria com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, conhecida pela sigla Anajure. O projeto prevê, dentre outros serviços, dar assistência às famílias homeschoolers que necessitem de apoio jurídico no Brasil e auxílio aos parlamentares na elaboração de projetos de lei em todos os estados.
A Anajure tem como uma das fundadoras a ministra Damares e foi criada para ser o braço legal do “conservadorismo”, atuando do STF às Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, sempre com o mesmo objetivo: destravar as pautas conservadoras.
“Mesmo nos EUA, apenas 3% das famílias optam pelo homeschooling. Três em cada quatro são evangélicas”
Outro empreendimento que sonha em lucrar com a pauta é a IP.TV, responsável por criar o aplicativo Mano, desenvolvido para a campanha de Bolsonaro e que tem como objetivo driblar os vetos de redes sociais às fake news, como revelou o site The Intercept Brasil. Com a pandemia, a empresa, localizada no Rio de Janeiro e que possui capital social de apenas 250 mil reais, abocanhou contratos em cinco estados para criar aplicativos de EAD. Alguns deles difundem mensagens ideológicas e teorias da conspiração bolsonaristas aos alunos. Ainda segundo a reportagem, um deles teve acesso a dados pessoais de alunos menores de idade e professores.
Se tem um mercado pronto para lucrar, isso só é possível devido à atuação de parlamentares bolsonaristas e da Bancada da Bíblia. Autor do principal projeto que regulamenta o ensino doméstico, Lincoln Portela também é pastor da Igreja Batista Getsêmani e tem um filho que exerce a mesma função, Leonardo Portela, eleito deputado estadual por Minas Gerais com a bandeira do movimento “Escola Sem Partido”. Nas eleições de 2018, os três usaram o bordão: “Uma família em defesa das famílias. Se você é Bolsonaro, você é Portela”. Uma das autoras do projeto que descriminaliza o abandono intelectual, Chris Tonietto causou polêmica ao associar o abuso de menores às escolas. “A pedofilia está relacionada mais especificamente com a chamada ‘teoria de gênero’ e a sua aplicação nos ambientes escolares”, afirmou.
Na Alemanha e na Suécia, pais que não matriculam as crianças na escola podem perder a guarda dos filhos. (FOTO: Martin Wippel/Graz-Österreich.
Fora desse mercado e dos interesses políticos, famílias brasileiras praticam o homeschooling, mesmo que proibido por lei. Dados da Aned apontam que ao menos 15 mil crianças entre 7 e 17 anos são educadas nesse formato. Famílias chegam a dar cursos para outros pais, além de montarem e venderem seus próprios materiais pedagógicos. Ainda segundo dados da associação, um quarto dos adeptos da educação domiciliar no Brasil diz ter optado pela prática por “princípios da fé familiar”. Outros 9% falam em “doutrinação” como razão e 23% discordavam do “ambiente escolar”. Um terço diz que queria “oferecer uma educação personalizada”, motivo que pode englobar todos os outros.
“Não dá para generalizar os motivos que levam os pais a fazerem essa escolha. Mas, nesses casos citados, dá para perceber que a educação perpassa por uma cosmovisão religiosa muito específica, muito fechada, e que exclui qualquer chance de antagonismo a essa estrutura”, alerta Andréa Silveira de Souza, pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Religião, Educação e Gênero do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF.
Se, por um lado, pais defendem o direito de escolher como educar seus filhos, especialistas apontam problemas que vão além da socialização: o risco de insegurança alimentar para famílias pobres, novas demandas não dimensionadas para conselhos tutelares e escolas, aumento de gastos púbicos com serviços de fiscalização e violência doméstica. Cerca de 70% dos agressores de crianças e adolescentes são integrantes da própria família. Em 2020, durante o isolamento social e o fechamento de escolas, acarretados pela pandemia, o Brasil atingiu o maior número de denúncias de violência contra crianças: foram 95.247, média de 260 novos casos a cada dia.
A relatora do substitutivo adicionou novidades no texto, que passa a incluir a exigência de matrícula anual do estudante em instituição de ensino credenciada pelo Poder Público e acompanhamento por docente tutor da instituição em que estiver matriculado mediante encontros semestrais. Por estarem matriculados, os alunos passariam a fazer as provas nacionais de avaliação. Dessa forma, a judicialização do acesso à universidade fica equacionada, uma vez que o aluno teria um diploma. Apesar dos avanços em relação ao PL de 2012, especialistas ainda apontam brechas, como critérios mais específicos de quais instituições serão credenciadas e como vai se dar a fiscalização.
Publicado na edição nº 1162 de CartaCapital, em 17 de junho de 2021.
Reportagem por Ana Flávia Gussen - 21 de junho de 2021
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