Só um grande respeito pelo solo, pelas vinhas e uma vinificação não intervencionista irão garantir a presença da mineralidade no vinho
Por Jorge Lucki
04/06/2021
“Vinho não é feito para ser cheirado, é feito para ser bebido”. Assim bradava Henri Jayer (1922 - 2006), um dos nomes mais importantes da Borgonha, cansado de ver sommeliers e críticos de vinhos recitarem todo um arsenal de aromas ao falar sobre a bebida. A velha guarda dava menos importância à parte olfativa, usando o tradicional “tastevin” para provar seus vinhos. Foi com seu inseparável “cinzeirinho” que monsieur Charles Rousseau (1923 - 2016), que comandava o já então celebrado Domaine Armand Rousseau, em Gevrey-Chambertin, me levou escada abaixo para degustar direto das barricas na minha primeira visita à Borgonha, em dezembro de 1980. O “tastevin” foi destronado com o aparecimento das técnicas de degustação desenvolvidas nas décadas de 1960 e 1970, conhecidas como análise sensorial, que dava grande importância à expressão aromática dos vinhos, servindo-se de taças desenhadas para ressaltar seus aromas (para uniformizar, o copo padrão ISO foi lançado em 1974).
Até que os aromas de um vinho adquirissem tanta importância, o que interessava era, primeiramente, o aspecto visual, sua limpidez e brilho - que o “tastevin” revelava de forma implacável através de suas ranhuras -, e depois na boca, onde era “mastigado”, liberando sensações táteis, estrutura, persistência e retro-olfação. É de se supor que foi utilizando essa técnica que os monges beneditinos e cistercienses conseguiam separar e representar cada terrroir dos vinhos da Borgonha. A rigor, o que eles detectavam era a sapidez e os aspectos minerais trazidos pela mineralidade natural do solo, percepção que foi sendo encoberta pelas cada vez mais utilizadas práticas enológicas e intervencionistas.
Embora o advento da análise sensorial tivesse alargado os limites para se analisar um vinho com mais profundidade, ela deu margem, também, a que muitos produtores exagerassem nos recursos enológicos - excesso de madeira, barris novos ou pior, aduelas (“staves”) para imitar aromas e sabores amadeirados; goma arábica para dar untuosidade; leveduras industrializadas e outros tantos aditivos -, com o objetivo de deixar os vinhos mais sedosos e capazes de impressionar críticos e consumidores.
Depois de tantos abusos, era de se esperar que mais hora menos hora haveria uma reação contrária. E ela veio a partir da necessidade de dar importância à identidade, voltar a dar atenção ao terroir, intensificando-se a partir do movimento do “mínimo intervencionismo”, nascido neste milênio. Com isso, de uns 15 anos para cá uma palavra foi acrescentada no vocabulário da análise sensorial: mineralidade.
Resultado da absorção de minerais existentes no solo pelas raízes da videira, a noção de mineralidade renasceu, não sem causar polêmica. A questão, levantada sobretudo pelos “cientistas do vinho”, residia no fato de as substâncias encontradas nos vinhos serem reais e mensuráveis, que se associam a aromas conhecidos - pyrazinas, a pimentão da cabernet sauvignon, acetato de isoamila, a banana (encontrada nos beaujolais) ou benzaldeido, a cereja -, enquanto os minerais são inodoros, o que levaria a se concluir que a mineralidade na nobre bebida seria restrita apenas a sensações gustativas. Mesmo assim sem convicção, já que a concentração dos minerais nos vinhos seria muito baixa, praticamente imperceptível mesmo para degustadores experimentados.
Vá lá, mas na prática a teoria é outra. Quem já teve a oportunidade de provar grandes vinhos da Borgonha não questiona a existência da mineralidade.
Em todo caso, há argumentos contrários à tese da inexistência da mineralidade. Eles levam em conta, em especial, a existência no solo de partículas (íons de cálcio, magnésio, ferro etc.) que, embora insuficientes individualmente em concentração para impactar no sabor, podem, combinadas, contribuir para sensações gustativas - tátil, salino, leve amargor -, que nos conduzem não só à noção de mineralidade como reforçam a textura, o caráter e a extensão do vinho na boca (exemplo clássico são os vinhos do Priorato).
Existem também evidências de aromas associados à mineralidade, contrariando proposições da ciência - cá para nós, o fato de a ciência não explicar não significa que não exista. Assim é o aroma de giz dos chablis provenientes de solos Kimmeridgian (basicamente os 1ers e grands crus), o de pedra de isqueiro (pierre à fusil) dos Pouilly Fumé assentes em sílex (rocha sedimentar típica daquela zona do Loire) ou o cheiro de querosene/“petrolé” dos rieslings dos vinhedos do Mosel, com suas encostas compostas de ardósia fragmentada.
A palavra mineralidade tem sido usada de forma indiscriminada. Virou moda. Vale, contudo, ressaltar, que tratando-se de aromas e sensações ligadas ao lugar é fundamental que seja preservada. Só um grande respeito pelo solo e pelas vinhas e uma vinificação não intervencionista irão garantir suas presenças no vinho. Todas as ações realizadas pelo viticultor para aumentar a profundidade e a quantidade de raízes no solo e para descompactar e promover a vida no solo resultarão no aumento da absorção de minerais pela videira. Mineralidade tem a ver com vinhos limpos (“clean”) e com frescor. É o que distingue um produto tecnológico de um vinho de terroir.
Enfim, a percepção da mineralidade de um vinho é a manifestação íntima da profundidade de um terroir e sua capacidade de se tornar um vinho único.
Jorge Lucki escreve neste espaço semanalmente
E-mail: Colaborador-jorge.lucki@valor.com.br
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