Rubem Alves*
Tantas coisas estão no meu apartamento que não têm nenhuma relação umas com as outras... Como no corpo. Que relação tem a unha com o umbigo, ou o dedo do pé com a cor dos olhos? Sem relação formal e anatômica umas com as outras e, no entanto, fazem parte de um organismo vivo... Peças de um quebra-cabeças..
Uma pedra que peguei no alto da serra da Boa Esperança (por milhões de ano ela havia estado a contemplar das alturas, o vale lá embaixo), três folhas de caquizeiro que transformei num quadro, uma canastra velha que comprei que comprei por um dólar numa loja do Exército da Salvação em Trenton (USA), várias garrafas de pimenta que nunca vou abrir porque são obras de arte para serem vistas o que me sugere uma alteração no aforismo que todo mundo conhece, “nos olhos dos outros pimenta é refresco”: “pimenta dentro da garrafa é refresco pros olhos da gente”; elas, as pimentas engarrafadas, não ardem. Brincam. Ver as pimentas vermelhas me faz lembrar um hai-kai de Basho, “Essas pimentas! Daí-lhe asas e serão libélulas!”
Continuando: um ramo com folhas desidratadas que prendi num sarcófago de vidro que estava numa árvore que fazia sombra ao túmulo de Abelardo e Heloísa no Cemitério Pere Lachaise em Paris – Abelardo e Heloísa, um dos mais intensos e trágicos casos de amor que se tem registro. (O amor para se tornar literatura há de ser trágico. Se Romeu e Julieta tivessem se casado, é provável que seis meses depois Romeu estivesse passando noites nas tavernas...).
Garrafas de Bourbon Jack Daniels – há muitos risos e lágrimas dentro delas... Mais que bebidas, sacramento. Uma pesada prancha de madeira onde mandei esculpir um poema de Alberto Caeiro, uma espada do exército brasileiro, um mínimo relógio de sol que os peregrinos que iam adorar em San Thiago de Compostela usavam como colar, conchas que sempre me foram objetos de assombro por sua beleza, nunca entendi como é que aqueles animais de corpo mole sabem fazer tais objetos matematicamente perfeitos, uma das conchas se parece com um peixe virado do avesso, o esqueleto todo espetado como se fosse um porco espinho arrepiado, vários quadros guardados atrás de armários que não cabem nas paredes, estão lá a espera, uma tela de Arcimboldo (século 16) na porta da cozinha, um rosto feito com abobrinhas, cabeças de alho, azeitonas, espigas de trigo, abóboras, chuchus, como é que essa loucura aparece na cabeça de um pintor eu não sei... também pintou um rosto com flores, um outro com livros, e outro com frangos.
"Mais as coisas invisíveis,
memórias de tempos passados
que continuam presentes no meu corpo
e vão comigo por onde quer que eu vá
e é preciso que eu escreva ou fale
para que fiquem visíveis".
Porta-fogos chamados velas, quadros nas paredes, uma velha fazenda onde vive quando menino e sobre a qual escrevi, caquis de mármore, quebra-cabeças feitos pelo Hans, símbolos religiosos, a saudação franciscana aos que chegam: “Pax et Bonum”, paz e bem na porta de entrada, uma placa de cerâmica com a bênção irlandesa sobre os que partem: “Que o caminho seja brando a teus pés, o vento sopre leve em teus ombros, que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que eu de novo te veja, que Deus te guarde na palma de sua mão...”
Mais as coisas invisíveis, memórias de tempos passados que continuam presentes no meu corpo e vão comigo por onde quer que eu vá e é preciso que eu escreva ou fale para que fiquem visíveis. Doei 30 caixas de livros, livros que eu não mais leria porque o tempo é curto e o espaço do apartamento para o qual me mudei é pequeno.
Guardei alguns poucos livros de arte, de literatura e poesia. Guardei também músicas adormecidas em CDs esperando que eu queira ouvi-las. Como se fossem namoradas à espera do amado...
Espero que esse rol de objetos insignificantes tenha provocado a sua imaginação. Volte sempre. Há muitas estórias a ser contadas.
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* Teólogo. Pedagogo. Educador. Poeta. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, 02/01/2011.
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