domingo, 16 de janeiro de 2011

O coletivo de brasileiro

MARCELO NERI*
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A dissonância entre a percepção do brasileiro
sobre sua vida e a vida de todos
é nossa jabuticabeira

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A VIDA DE CADA brasileiro vai melhor que a do coletivo de brasileiros. Essa é a impressão tirada do Gallup World Poll. Na pergunta subjetiva sobre a expectativa da satisfação de cada pessoa em cinco anos, numa escala de 0 a 10 a média brasileira é 8,78, a maior de 132 países.
Já a pergunta que se refere à nota do país no mesmo período e na mesma escala, a nota cai dois pontos. Somos o nono país do mundo com maior diferença de notas individuais e coletivas.
A felicidade geral da nação é menor que a soma da felicidade de cada um. Como o brasileiro pode dar uma nota tão alta para sua vida e dar uma nota tão baixa para a vida de todos brasileiros? Eis a questão.
A dissonância entre as percepções de cada brasileiro sobre sua vida e sobre a vida de todos os brasileiros é uma marca tupiniquim, a nossa jabuticabeira.
Talvez fruto dela, os grandes problemas brasileiros são de natureza coletiva, e não individuais. Não que os últimos não sejam aqui relevantes, pois em todas as partes sempre o são. Porém a nossa dificuldade diferenciada enquanto nação está mais na relação entre pessoas.
Isto é, o problema do Brasil é mais do Brasil do que de cada brasileiro. Como um enunciado alternativo da lei de Gerson: "O brasileiro quer tirar vantagem em tudo".
"O Brasil não é um país pobre,
mas temos muitos pobres,
pois somos desiguais -onde muitos têm pouco
enquanto poucos muito têm."
Por problemas coletivos entendemos desigualdade, inflação, informalidade, violência, ditadura, entre outros. Mas por que chamá-los de problemas coletivos? Por exemplo, desigualdade, ao contrário da pobreza, é um conceito relacional que não existe no indivíduo tomado isoladamente.
Não podemos dizer que uma pessoa é desigual, mas dizemos que uma pessoa é, ou não é, pobre. O Brasil não é um país pobre, mas temos muitos pobres, pois somos desiguais -onde muitos têm pouco enquanto poucos muito têm.
A pobreza brasileira resulta da alta desigualdade brasileira, e não da baixa renda média brasileira. Ou seja, deriva de um problema inerente ao coletivo de brasileiro.
Similarmente, a violência é de natureza relacional, um contra todos e de todos contra um. Isso se aplica tanto na agressão dos assaltos, dos homicídios, como na violência do trânsito. Mais uma vez, refletem problemas de relacionamento.
A informalidade é outro problema de relacionamento de pessoas físicas e jurídicas em relação ao Estado. A falta de instituições e de práticas democráticas é outra dimensão mais óbvia dessa dificuldade de funcionamento em coletividade.
Finalmente, a inflação tem um destaque maior: apesar de termos feito a estabilização há 15 anos, o Brasil no período 1970 a 2008 ainda é o segundo país do mundo em inflação acumulada, só perde- mos do Congo. O fenômeno da inflação guarda sempre conflitos distributivos.
As externalidades negativas emanadas do oportunismo individualista faz com que o todo seja menor que a soma das partes.
Objeto de vários clássicos brasileiros como os de Sérgio Buarque de Holanda e de Roberto da Matta, a novidade é que pudemos, através da melhora de relacionamentos, dar verdadeiros saltos enquanto sociedade. Senão, vejamos:
As décadas de 60 e 70 foram tanto do crescimento como da ditadura iniciada em 1964. Após o choque do petróleo e a vitória eleitoral da oposição em 1974 começou a distensão política.
O processo culmina nos anos 80, a década da redemocratização, cujo ápice foi o Diretas Já de 1984. A década de 90 foi a da estabilização, após o Plano Real. Já a década recém-encerrada foi a da queda da desigualdade de renda.
Coincidentemente os pontos de transição de cada década foram em anos terminados em "4", Golpe de 1964, a distensão política iniciada em 1974, Diretas Já de 1984, o Plano Real de 1994 e a queda da desigualdade com formalização desde 2004 (que continuam).
Além de consolidar essas conquistas coletivas, qual a nova busca para 2014? Para além da Copa do Mundo de futebol, o nosso derradeiro evento coletivo? Redução das assimetrias da qualidade de educação? Choque na criminalidade? Ou todas alternativas acima?
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* MARCELO NERI, 47, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Folha online, 16/01/2011

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