sexta-feira, 1 de julho de 2011

Grandes ciumentos na arte da ficção

Eliana Cardoso*

Imagem de  Renato Alarcão
 
Ponto e Vírgula:
Grandes astros do ciúme-invejoso da literatura ocidental,
Pozdnyshev e Paulo Honório reluzem na "Sonata Kreutzer" (Tolstói) e
em "São Bernardo" (Graciliano Ramos).

 Ciúme sexual é tema de arromba e de controvérsias. Na França, por exemplo, o homicídio de um concorrente amoroso acarreta punição menos severa que outros tipos de assassinato. Por trás do aniquilamento do rival, o júri assume a existência de amor pela parceira infiel. Mas, em muitos casos, o ciumento - tomado de inveja assassina - mata também aquela que dizia amar.
Desconfio ser quase impossível separar o ciúme da inveja. Sei que o ciumento sofre ao imaginar o roubo do amor que lhe era devido, enquanto o invejoso sente raiva de quem possui algo desejável. Sei que o ciumento teme perder algo que acredita possuir, enquanto o invejoso sofre com o gozo do outro e quer destruir ou tomar aquilo que inveja. Mas, na verdade, quando o medo aguça a ânsia impetuosa e insaciável, o ciúme se transforma em inveja destruidora.
Nessas divagações estou em boa companhia. Shakespeare também parece acreditar que não existe muita diferença entre esses dois sentimentos quando observa em "Otelo" que "o ciúme é um monstro de olhos verdes que zomba do alimento de que vive". E mais. Acredita ainda que não é o outro que provoca esses sentimentos negativos: eles brotam de dentro da alma. Os ciumentos "não precisam de causa para o ciúme: têm ciúme porque o têm. O ciúme é monstro gerado em si mesmo e nascido de si mesmo". Otelo de novo? Claro. O que você queria?
Depois do mouro de Veneza, o ciúme sexual masculino tomou conta de milhares de protagonistas famosos. Entre muitas narrativas fascinantes, deixo para o fim "São Bernardo", de Graciliano Ramos, e a "Sonata Kreutzer" de Tolstói. Mas antes lembro, "en passant", outras obras, como: "Dom Casmurro", de Machado de Assis - sobre cuja ambiguidade narrativa muitos se debruçaram; "Senilidade", de Italo Svevo - na qual Emilio deseja Angelina ao visualizá-la com outro homem e chega a desejá-la exatamente porque ela esteve com outro. E "No Caminho de Swann", de Proust - história do ciumento manso, que misturava esse sentimento à piedade, transformando-o de paixão contínua e indivisível numa infinidade de ciúmes diferentes, cujo objeto era sempre Odette.
Mas hoje não é dia de Swann nem de corno manso. Estou interessada no ciumento violento e confesso. Na cisão insinuada por Otelo quando, perto do fim da peça, responde à pergunta de Ludovico sobre o paradeiro do mais infeliz dos homens, dizendo a respeito de si mesmo: "Aquele é ele que era Otelo. Aqui estou eu". ("That's he that was Othello. Here I am.") Estou interessada, portanto, no ciumento de personalidade cindida entre a do protagonista que sofre e a do narrador que tenta se explicar. No ciumento que parece não entender a duplicidade que vive.
"...agora poderíamos citar Chaucer,
que no "Conto do Pároco"
observa que a inveja é o pior pecado que existe,
porque todos os outros são pecados
apenas contra uma só virtude,
enquanto a inveja é contra tudo
o que seja bom."

Os grandes ciumentos-invejosos eleitos para figurar nesta coluna são o Pozdnyshev de Tolstói e o Paulo Honório de Graciliano Ramos. Não os escolho apenas porque têm as qualidades descritas no parágrafo acima, nem porque essas qualidades faltem aos outros ciumentos mencionados anteriormente. É que os ciumentos, tanto na vida quanto na ficção, são tão numerosos que devo deixar alguns de fora.
Começo com Pozdnyshev, que rebatizo como Possante, porque os nomes russos são muito difíceis e gosto de facilitar a vida do leitor. "A Sonata Kreutzer" abre-se com a narrativa (que faz um senhor anônimo) da conversa entre passageiros de um trem. Possante entra em cena e conta que matou sua mulher num ataque de ciúme e o júri o absolveu do crime. Possante narra a história de seu casamento abalado desde a primeira relação sexual. Diz que considera o sexo coisa perversa e obscena. A música também o inflama e, portanto, é condenável. Um dia, um músico aceitou seu convite para ir à sua casa e Possante ficou excitadíssimo quando viu sua mulher ao piano e o músico ao violino tocarem juntos a sonata de Beethoven. Possante teve de sair para um compromisso e voltou cedo, imaginando que encontraria os dois amantes na cama e os mataria. Ele os encontrou sentados na sala. Enfurecido, matou a mulher e o músico escapou.
A sonata de Tolstói já deu o que falar. Há a variedade de emoções que Tolstói articula em sequência paralela aos três movimentos da sonata de Beethoven. E a tessitura ficcional do gênio que substitui a exibição do corpo da mulher morta pelo exibicionismo da confissão do narrador.
Dizem que Tolstói pensava em sexo como uma forma de comércio (onde o objeto do desejo pode sempre ser trocado por outro) e como teatro (já que o sexo praticado com outra pessoa também ocorre na presença do parceiro). A confissão de Possante prolonga a representação teatral e expõe sua personalidade dividida entre o narrador - responsável pelas longas diatribes contra mulheres, sexo e casamento - e o sujeito da narração - que sofre, mas não reflete.
A mim me intriga que Tolstoi tenha escrito um posfácio no qual afirma sua intenção de oferecer o caso exemplar com objetivo moralizador. O caso, ao dramatizar os riscos do casamento, serviria de apologia do celibato. Ironia? Talvez. Por quê? O discurso moralizador de Possante, semeado de contradições, esconde o tema subjacente do ciúme e monta, na primeira parte da novela, o cenário para o drama que vem em seguida. Com a introdução do tema do ciúme, o ritmo da novela se acelera.
Em determinado momento, Possante declara sua mulher um mistério. Seu ciúme parece uma reação invejosa a esse mistério. Cabe aqui um paralelo com o Paulo Honório de "São Bernardo", que também nunca conseguiu entender Madalena, que deseja controlar e cuja bondade só descobre depois de viúvo e sozinho.
Mas antes de chegarmos lá, relembro o enredo do magnífico romance de Graciliano Ramos. Assim como o protagonista de Tolstói, Paulo Honório - o narrador-protagonista de "São Bernardo" - também não entra de chofre no tema do ciúme. Primeiro leva dois capítulos para discutir sua ideia de escrever um livro "pela divisão do trabalho" e informar o leitor por que desistiu dessa ideia. Depois conta que rolou pelo mundo quando menino e aprendeu a ler na cadeia. Com esperteza tornou-se dono da fazenda São Bernardo, ampliou seus limites e virou "coronel" poderoso. Acertou o casamento com Madalena como um negócio.
Logo depois de casada, Madalena começou a dar opiniões e interferir a favor dos colonos. O marido se irritou: "Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano."
Madalena resistiu ao mandonismo do marido, que começou a mexer-lhe nas malas e nos livros. A vida se tornou um inferno para os dois à medida que as crises de ciúme se agravaram. "A infelicidade deu um pulo medonho: notei que Madalena namorava os caboclos da lavoura. [...] Às vezes, o bom senso me puxava as orelhas: - Baixa o fogo, sendeiro. Isso não tem pé na cabeça." Até que, não suportando a convivência com o marido, Madalena se suicidou.
Paulo Honório confessa seu ciúme, que é também desejo de dominar a mulher que não se submete e de quem ele inveja a competência. Paulo Honório tem razões de sobra para invejar Madalena. A causa mais importante não é, como Paulo Honório às vezes insinua, que ela tenha a educação que lhe falta. O que ela tem - e ele não - é a bondade, o bom caráter e a sanidade. A sanidade que pertence a alguém que pode, sem rancor nem mesquinhez, alegrar-se com o trabalho criativo do outro e que, por isso mesmo, está livre dos tormentos da inveja, do ressentimento e da perseguição.
Coitado do Paulo Honório. Se tivéssemos começado lá em cima lembrando autores anteriores a Shakespeare, agora poderíamos citar Chaucer, que no "Conto do Pároco" observa que a inveja é o pior pecado que existe, porque todos os outros são pecados apenas contra uma só virtude, enquanto a inveja é contra tudo o que seja bom.
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* Eliana Cardoso escreve semanalmente no VALOR ECONÔMICO, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). Jornalista.
 www.elianacardoso.com
Fonte: EU& Fim de semana › Cultura - Valor Econômico on line, 01/07/2011

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