domingo, 3 de julho de 2011

Miolo x couve-flor

Rubem Alves*


Meu sogro nasceu na Alemanha e veio para o Brasil depois da Primeira Guerra. Era filho de um pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Como é bem sabido, os membros desse grupo religioso são extremamente rigorosos acerca de seus hábitos alimentares. Não comem carne de porco ou sangue, não bebem bebidas alcoólicas, café ou chá. Meu sogro, muito embora estivesse deixado de ser um fiel praticante, não se esquecera dos tabus alimentares. Eles estavam escritos em sua própria carne. E tinha mesmo um tabu todo seu, particular: ele não comia miolos, muito embora nunca os tivesse comido antes. O fato é que, mesmo assim, sem comer, não gostou...
Um dia foi convidado para um jantar. Era o convidado de honra, jovem alemão recém-chegado ao Brasil. E ficou muito contente ao ver que a anfitriã, certamente sabedora de seus hábitos quase vegetarianos, havia escolhido couve-flor empanada como prato principal. Delícia pura! Comeu, gostou e repetiu. Ao final, reconciliado com a vida (isso sempre acontece quando a comida nos dá prazer), a alquimia da digestão já se tendo iniciado, disse à dona da casa:
- A couve-flor empanada estava um prato digno dos deuses...
- Quem bom! - ela responde.
- Alegro-me que o senhor tenha gostado. Só que não era couve-flor; era miolo...
Pobre senhora! Não podia imaginar a tempestade que uma palavra inocente na boca podia provocar no corpo... Meu sogro, esquecendo-se de todas as regras de etiquetas, pulou da cadeira, correu para o banheiro, e vomitou tudo...

"O corpo tem uma filosofia que é toda sua.
Para ele "realidade" não é aquilo que
comumente chamamos
por esse nome."

Como explicar o ocorrido?
A "coisa": os sentidos já não a haviam aprovado, declarando-a deliciosa? A boca não a havia transportado para dentro do corpo, dando assim o seu nihil obstat? E o estômago? Não estava feliz, entregue a seus jogos alquímicos de incorporação? Que catástrofes físicas e químicas poderiam ter acontecido por obra mágica de uma simples palavra, sopro, vento, para que o corpo mudasse de opinião tão de repente, vetando tudo aquilo que já havia provado e aprovado?
Nenhuma. Meu sogro, na cabeça, sabia que as palavras não podem mudar a coisa. Mas seu corpo seguia outra filosofia, pois para o corpo a comida não é só a coisa: é a coisa misturada com palavras. Não foi o gosto, não foi o cheiro, não foi a vista, não foi o tato, o que provocou o vomitório. Foi uma simples palavra. Meu sogro não vomitou a coisa. O que ele vomitou foi uma palavra. O que dá prazer e desprazer não são as coisas, mas as palavras que nelas moram. Como Zaratustra sugeriu, o que torna as coisas agradáveis são os nomes e os sons que lhes são dados. Por razões desconhecidas a palavra "couve-flor", no corpo de meu sogro, era moradora de um mundo bonito, enquanto a palavra "miolo" era o elo de uma cadeia de imagens repulsivas. Basta uma única palavra para transformar um príncipe num sapo. E nem é preciso a presença de uma bruxa. O próprio príncipe se enfeitiça...
O corpo tem uma filosofia que é toda sua. Para ele "realidade" não é aquilo que comumente chamamos por esse nome. Não é algo dado, pronto. É antes o resultado de uma operação alquímica por meio da qual a coisa sem nome é misturada com palavras. É assim que seu mundo é criado. E é isso que é dado ao corpo para ser comido. Guimarães Rosa conhecia a sabedoria do corpo e foi por isso que disse: "Tudo é real porque tudo é inventado". "Somos feitos de sonhos", diz Norman O. Brown. Meu sogro não vomitou a coisa. Ele vomitou sonhos maus, pesadelos, entidades sinistras invocadas pela palavra enfeitiçante...
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*Escritor. Teólogo e educador.
Fonte: Correio Popular on line, 03/07/2011

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