segunda-feira, 4 de julho de 2011

O filósofo brasileiro no Show de King Kong

Paulo Ghiraldelli Jr.
Não é segredo para ninguém que a formação em filosofia, no Brasil de hoje, obriga o futuro filósofo a uma dedicação aos clássicos que, em geral, outras áreas negligenciam. Assim, em termos de especialização, a formação acadêmica básica em filosofia – graduação, mestrado e doutorado – é realmente algo que demanda esforço e tempo. Mas, infelizmente, isso não tem produzido entre nós, no volume que precisamos, pessoas que, como filósofos, conseguem “dar conta” dos problemas ditos “cotidianos”. Desse modo, o professor de filosofia brasileiro acaba ficando aquém da condição de filósofo.
Ele, o professor universitário de filosofia, às vezes sabe, em alemão, o que Wittgenstein disse em um parágrafo X de uma de suas obras, e consegue comentar aquilo por meio de um texto de mais de oitenta páginas. Mas essa mesma pessoa não consegue usar da filosofia para resolver um problema com a namorada ou até mesmo usar do próprio Wittgenstein para equacionar um problema que implica em saber qual “jogo de linguagem” usar com a esposa ou com o gerente do banco. Não raro, o estudioso acadêmico de Epicuro, mestre do bem viver, não consegue tirar férias – sempre vai a um lugar que ele acha legal, mas que sua esposa ou namorada acha “um saco”. Assim, eis que a modernidade de Weber se realizou de modo especial para o professor de filosofia: ele se tornou o homem moderno par excellence, o “especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”. Ele não sabe nada além de um campo restrito e ele não consegue gozar a vida embora acredite sinceramente que está se divertindo.
O que há de errado nisso? Ora, o que há de errado é que, talvez mais que outras graduações, a graduação em filosofia força os estudantes a falarem, com palavras técnicas, sobre o que não sabem conversar com palavra alguma e a respeito do qual jamais tiveram experiência. Os estudantes são jovens e ignorantes. Tudo bem. Mas, uma vez na universidade, a juventude lhes é incentivada (ninguém quer o aluno “um pouco maio velho” ou o aluno que amadurece um pouco e efetivamente questiona) e a ignorância passa a ser algo que ele deve cultivar. Caso ele comece a ler mais coisas do que aquilo que é dado em aula, e então deixe a imaginação voar, ele é cortado. Caso ele queria “aplicar” o que aprende, é posto de lado. Deve repetir o que é dado, mesmo que não saiba o que significa. Aliás, principalmente, não é cobrado sobre o significado do que diz e escreve (ou tenta escrever!). Além do mais, não deve sair do script, tendo de ser antes um puxa-saco do professor que um pensador. E isso se torna ainda mais verdade quando esse estudante faz um curso onde existe pós-graduação. Aí ele logo é transformado em um capacho de primeira classe, pois vai entrar no mestrado daquele mesmo lugar antes pela sua força bajuladora que pelo seu esforço cerebral. Às vezes ele, estudante, nem percebe isso. Não se dá conta que se tornou, ao longo dos anos, uma mente dócil e uma alma pobre.

"A formação em filosofia deveria
começar a articular história, temas filosóficos e,
ao mesmo tempo, problemas cotidianos – aliás,
como fizeram os grandes filósofos,
a começar de Sócrates e Platão."

É assim que nossa filosofia tem dado passos largos para se transformar naquilo que aparece como show de King Kong nas ANPOFs da vida. Ali, grandes gorilas ficam tentando derrubar aviões falsos enquanto uma massa de desinformados olha o espetáculo e tenta aparecer diante das câmeras, como figurantes, antes que o monstro despenque. Há quem acredite que se trate de uma reunião de filosofia. Mas, uma parte dos frequentadores, sabe que não é assim. Mas essa parte faz pouco para mudar. No geral, voltando para suas universidades, reproduzem o ensino de graduação que só irá fazer surgir outros grandes macacos, profissionais da imitação, seguidos de figurantes, profissionais da mediocridade.
Pude perceber isso com clareza em uma época em que fui incumbido de receber e avaliar projetos para entrada em um doutorado com várias áreas, inclusive filosofia. Os candidatos de história, antropologia, pedagogia etc. vinham para a entrevista com um problema e um tema, por sua vez, os candidatos da filosofia, antes de falarem do tema e problema, que nem sempre tinham, diziam com quem haviam feito o mestrado. Eles assinavam em baixo de uma declaração anti-kantiana, anti-iluminista: pensar era antes de tudo pensar segundo o que havia dito um orientador, um professor que eles achavam importante; pensar não era pensar pela própria razão. Vi isso e computei. De fato, a área de filosofia é uma das que mais faz o que em política chamamos de o “culto à personalidade”. E nem sempre o orientador ao qual se referem é de fato uma personalidade, às vezes é alguém que, uma vez no Jô Soares, pode ser chicoteado e ridicularizado – exatamente porque é um tipo que não sabe lidar com a vida, embora tenha lido exatamente os grandes homens que tentaram dar instrumentos para lidarmos com a vida.
A formação em filosofia deveria começar a articular história, temas filosóficos e, ao mesmo tempo, problemas cotidianos – aliás, como fizeram os grandes filósofos, a começar de Sócrates e Platão. Esses três elementos precisariam ser bem cuidados, bem amarrados e, então, teríamos um aluno com alguma chance de não se tornar um tolo. A filosofia não pode continuar formando gente que passa por ridículo todo dia. A área de filosofia deveria não ter de cair no colo de Weber e vê-lo tomar o formado nela como seu exemplo predileto do gênio imbecilizado.
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Filósofo, escritor e professor de filosofia da UFRRJ.

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