segunda-feira, 11 de julho de 2011

Tá tudo concentrado: Negócios hoje podem gerar domínio de até 100%

'Quem mexe com defesa da concorrência no Brasil é acusado de comunista'

Secretário de Direito Econômico afirma
que consumidor deve ser o foco

A globalização das economias tornou comuns as fusões entre grandes empresas e obrigou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) a ser mais cauteloso na hora de examinar essas operações. A avaliação é do secretário de Direito Econômico e ex-integrante do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) Vinícius de Carvalho. Em entrevista ao GLOBO, ele disse que as autoridades antitruste têm hoje que avaliar negócios que podem gerar concentrações de quase 100%, algo diferente do que ocorria na década passada, quando esse percentual girava em torno de 30%. Por isso, é natural que às vezes se opte por decisões duras e que o SBDC seja taxado até de "comunista". Carvalho não se importa com a crítica. Para ele, o foco sempre deve ser o consumidor e seu direito de escolher e pagar mais barato por serviços e produtos.

O GLOBO: O Cade rejeitou grandes fusões, como a Nestlé-Garoto, e agora estuda restrições para a união entre Sadia e Perdigão. As autoridades de concorrência brasileiras estão se tornando mais rigorosas com a concentração de setores da economia?
VINÍCIUS DE CARVALHO: É natural que o Cade olhe com mais atenção para uma concentração de 70% do que para uma de 30%, como ocorria há dez anos. Não dá para esperar que os órgãos de defesa da concorrência, em qualquer lugar do mundo, aprovem uma operação que gere uma concentração de 60%, 70% ou 80% sem restrições.

A revista "The Economist" publicou semana passada que o BNDES fala mais alto do que o Cade. Ela se referia ao apoio do banco à fusão entre Carrefour e Pão de Açúcar. A avaliação está correta?
CARVALHO: Ela está errada no diagnóstico, mas acerta sobre o que falta fazer no sistema. O problema hoje no país não é o fato de que há fusões que são apoiadas pelo BNDES. Ele corre o risco tanto quanto outro banco privado quando faz análise para apoiar uma fusão. A fragilidade hoje é a falta de uma análise prévia das operações.

Existe algum tipo de ingerência ou pressão de outros órgãos do Executivo para que o sistema aprove fusões?
CARVALHO: Acho que o histórico de decisões do Cade demonstra que o órgão tem mandato para defender a concorrência no Brasil e ponto. Para o sistema não faz diferença se a empresa que está se fundindo é uma estatal ou não.

As empresas chegam hoje ao sistema considerando suas operações já aprovadas?
CARVALHO: Em casos que eu relatei como conselheiro, nunca vi uma empresa de antemão, com concentrações elevadas, assumir que tinha risco competitivo e sugerir remédios para o Cade. O discurso é sempre de que não tem problema nenhum. É claro que concentração em si pode não ser um problema, mas ela é um indício forte.

"A fragilidade hoje é a falta
de uma análise prévia das operações"

Qual deveria ser a postura das empresas?
CARVALHO: Se você conhece a jurisprudência, sabe que no sistema existem técnicos, economistas e advogados que sabem que aquela fusão pode ter riscos, e quer que haja decisão rápida do órgão. É muito melhor você assumir que há riscos e apresentar remédios para mitigá-los. E antes que me acusem de ingênuo, eu digo que isso acontece em outros lugares do mundo, como nos EUA e na Europa.

Falta conhecimento da população sobre o valor da concorrência (nos setores industrial e de serviços) na vida dela?
CARVALHO: Há dificuldade em mostrar para as pessoas que a defesa da concorrência gera efeitos benéficos na vida delas. Num ambiente de competição, elas conseguem ter acesso a uma maior qualidade de produtos. O Brasil tem um histórico de luta contra a inflação, de tabelamento de preços e, às vezes, vê ainda essa demanda da sociedade: o Estado tem de determinar o preço da gasolina porque, se isso acontece, não vai ter abuso. E a gente sempre tem de contrabalançar isso, mostrando que há benefícios no mercado concorrencialmente ativo. É claro que isso, às vezes, exige intervenções e decisões duras. Em algumas situações, quem mexe com defesa da concorrência no Brasil é acusado de comunista.

O senhor é a favor de uma mudança no Código de Defesa do Consumidor (CDC), para uma atualização, como está sendo pensado no Congresso?
CARVALHO: Os temas escolhidos são bem interessantes, têm coerência com o avanço da defesa do consumidor. Superendividamento, por exemplo, é um tema que tem muito a ver com o que está acontecendo no Brasil nos últimos anos, porque temos a emergência de uma parcela da população que não era consumidora. E essas pessoas têm de ter uma proteção em relação, por exemplo, a acesso a crédito. O comércio eletrônico é a mesma coisa. É uma dinâmica que envolve toda a população e temos vários exemplos recentes de problemas, como entrega de produto.

O senhor defende a transformação do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) - hoje um braço da SDE - em secretaria. Qual seria a vantagem?
CARVALHO: Isso ampliaria a nossa capacidade para lidar com recalls, com temas de consumo e segurança, setores regulados, interação com as agências. E o secretário vai poder interagir no governo federal com o nível hierárquico que merece. Não que isso não aconteça hoje, mas acontece mais por boa vontade dos outros do que por obrigação.

A entrada de milhões de brasileiros na chamada nova classe média aumentou o trabalho do DPDC?
CARVALHO: Se tornou cada vez mais importante trabalhar na educação para o consumo. Não é porque estamos numa sociedade de consumo que precisamos ser consumistas. E é natural que, ao ter acesso a novos bens, seja preciso transmitir a importância de ter consciência neste ato de consumir, porque isso pode gerar superendividamento, por exemplo. É importante também orientar para a qualidade dos produtos e dos serviços. Não podemos ter subcategorias de pessoas consumidoras e não podemos deixar que ofereçam subprodutos e subserviços.
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Autor(es): Martha Beck e Patrícia Duarte

O Globo - 10/07/2011

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