sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O império em sua glória, pela última vez

Niall Ferguson, sobre os atentados de 2001: terrorismo e islamismo radical eram
novidade apenas para os Estados Unidos.

Não há dúvida de que está em curso o fim da era de dominação global do Ocidente, iniciada há alguns séculos. Essa é a convicção de um dos mais renomados especialistas em história econômica e financeira, o escocês Niall Ferguson. A perda de posição relativa dos Estados Unidos e da União Europeia no mundo e o impacto desse encolhimento na sua capacidade de influir, econômica e politicamente, é o fenômeno central da análise de Ferguson, professor em Harvard e na London School of Economics.
O episódio do 11 de Setembro de 2001 foi o primeiro a sinalizar a fragilidade do "império" americano, depois escancarada pela sucessão de falências bancárias iniciada em 2008. Mas, quando perguntado, em 2004, por ocasião de uma palestra no American Enterprise Institute for Public Policy Research, se a União Europeia poderia se constituir na força que substituiria os Estados Unidos, Ferguson respondeu com um enfático "não". Para ele, a UE era um "desastre esperando para acontecer". Acreditava que a junção de culturas centenárias, por vezes milenares, sob uma mesma moeda só daria certo caso fosse concomitante à união fiscal, algo que não aconteceu. Teve, portanto, uma certeira visão do futuro.
Autor dos best-sellers "A Ascensão do Dinheiro" (Civilização, 2009) e "Colosso: Ascensão e Queda do Império Americano" (Planeta, 2011), Ferguson tem cadeira cativa como colunista do "Financial Times" e da revista "Newsweek".
"O poder tem saido das mãos das
elites econômicas para os cidadãos
em muitos países, num processo que é
cada vez mais abrangente"
Em seu livro mais recente, "Civilization", lançado em março nos Estados Unidos, Ferguson mapeia o período de domínio do Ocidente no mundo - justamente a era que, segundo ele, vive seu ocaso hoje.
Abaixo, os principais trechos da entrevista que Ferguson concedeu ao Valor.

Valor: Quais poderão ser as consequências desta crise mundial, originada nos Estados Unidos em 2008 e que ainda parece longe de estar solucionada?
Niall Ferguson: Não tenho nenhuma dúvida de que vivemos o fim da era de dominação do Ocidente. A grande história a que a humanidade assistiu nos últimos 500 anos foi a ascensão e o domínio do Ocidente. Mas o período em que os costumes ocidentais prevaleceram está começando a acabar. Já assistimos, nesta primeira década do século XXI, a um processo que se tornará ainda mais forte a partir de agora, que é o surgimento, ou ressurgimento, se pensarmos em termos históricos, de países como China e Índia. Além disso, os países da América Latina têm reduzido o fosso que os separa dos ricos.

Valor: Sem o "império" americano e a União Europeia, o mundo viverá um vácuo de hegemonia até que alguma outra nação entre em cena?
Ferguson: Estamos no olho do furacão desse processo de passagem do equilíbrio de poder econômico do Ocidente para o resto do mundo. O poder tem saído das mãos das elites econômicas para os cidadãos em muitos países, num processo ainda difuso, mas cada vez mais abrangente. Um exemplo disso é o que ocorre com a mídia, devido ao enorme desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Hoje, qualquer um pode escrever um blog sobre um problema, e a partir daí mudar o direcionamento de seu governo, antes influenciado apenas pelas elites econômicas e midiáticas. As redes sociais têm influenciado os levantes em Londres e a concentração de pessoas na praça Tahir [Egito]. A mídia é crucial para entender toda essa mudança que estamos vivendo, como sempre foi. As revoluções americana e francesa não teriam acontecido sem a imprensa.

Valor: Ao mesmo tempo, a maior inclusão no debate político proporcionado pelas redes sociais tem gerado casos de impasse, como ocorre nos Estados Unidos, onde pequenos grupos organizados, como o Tea Party, são acusados pelo governo Obama de travarem as negociações entre democratas e republicanos...
Ferguson: A ideia de que os Estados Unidos estão polarizados e que isso é perigoso está totalmente errada. De fato, vivemos tempos de maior engajamento político, mas isso é muito mais interessante do que a fase pela qual os Estados Unidos estavam passando quando cheguei aqui pela primeira vez [no fim dos anos 1980]. Eram tempos de apatia e cinismo, e pouca participação política. Hoje é totalmente diferente. As pessoas estão politicamente energizadas pela internet e também por meios tradicionais, como a televisão. Acho isso ótimo.
"Com as novas guerras, os EUA
passaram a incorrer no triplo déficit
e começaram a caminhar para
a crise de 2008"
Valor: Alguns analistas associam o maior acirramento político à série de eventos iniciada pelos ataques terroristas aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Como o senhor avalia isso?
Ferguson: Os ataques terroristas não foram um ponto de inflexão na política americana de que tanto se falava. Foram, sim, o primeiro sinal de fragilidade do império, ao mostrar ao americano comum o sério risco representado pelo terrorismo e pelo Islã radical. Mas esses fenômenos eram novidade apenas para os Estados Unidos. Já se tratava de algo claro e evidente para o resto do mundo. Ao mesmo tempo, o episódio criou a chance de os Estados Unidos serem, pela última vez, um império em sua glória completa.

Valor: Foi o início do fim?
Ferguson: Exatamente. As guerras no Afeganistão e no Iraque, naqueles primeiros anos, foram o último grande momento do poder americano. Em seguida, aquela nação que exalava um poder atraente e excitante passou a lidar com guerras mais complexas do que o governo George W. Bush inicialmente supunha, e também mais caras. Os Estados Unidos passaram a incorrer no triplo déficit - público, militar e em contas externas - e começaram a caminhar para a crise de 2008.

Valor: Como o senhor vê o combate à crise econômica nos Estados Unidos?
Ferguson: O governo Obama poderia, facilmente, ser pior do que está sendo. Mas isso não quer dizer que o combate à crise seja correto. O governo realmente aprendeu a lição dada pela péssima decisão do governo [Herbert] Hoover [1929-1932], que não utilizou as políticas fiscal e monetária para resgatar os bancos e empresas que estavam falindo. Mas, ainda que tenha agido corretamente no resgate, em 2009, o governo Obama trabalhou com uma lei de estímulos que era uma bagunça, e o dinheiro não foi gasto do jeito que poderia, mesmo em termos keynesianos.

Valor: Como o governo americano poderia ter usado a política fiscal para combater a crise?
Ferguson: Do modo como os chineses fizeram. O plano de estímulo à economia implementado pela China em 2009 foi um sucesso, ao concentrar uma fatia enorme de recursos para investimentos em infraestrutura. A sina que o governo Obama deixará é a falta de estabilização fiscal, especialmente o problema das aposentadorias, que começará a ocupar um espaço enorme no orçamento a partir de agora, com a aposentadoria dos "baby boomers" [os nascidos entre 1946 e 1964, que começam a se aposentar em 2011]. Metade dos americanos não paga imposto. Arrumar a questão fiscal e tributária será a missão número um do próximo presidente [que assume em 2013], mesmo que seja o próprio Obama.

Valor: Na Inglaterra, um forte aperto fiscal tem sido implementado desde o ano passado, mas ainda não parece ter dado resultado prático.
Ferguson: No caso britânico, a análise é razoavelmente simples: a situação fiscal era realmente muito ruim quando [o atual primeiro-ministro] David Cameron assumiu [em junho de 2010]. Cameron realmente tinha que fazer algo para que a economia não parasse. A tentativa de controlar o enorme déficit público tão logo assumisse era a decisão certa a ser tomada, já que a situação era insustentável. Mas o governo deveria saber que, mesmo que o aperto fosse necessário, invarialmente produziria reação popular. Os protestos a que assistimos recentemente em Londres são resultado direto do enorme fracasso da política pública interna.

Valor: E na União Europeia?
Ferguson: A zona do euro está em uma trajetória muito perigosa. Caminhamos para um calote permanente. A política de aperto fiscal coordenado só piora o problema da falta de crescimento e não resolve a sinuca do alto endividamento. Há um problema profundo nos países europeus: uma espiral de mergulho do crescimento, risco de calote e de falências bancárias, e de uma crise política na Alemanha.

Valor: O senhor afirmou, em 2004, que a UE era um "desastre esperando para acontecer", porque não tinha realizado a união fiscal, apenas monetária. Acertou?
Ferguson: Era óbvio que seria impossível sustentar uma união monetária sem uma união fiscal. Imagine os Estados brasileiros com liberdade fiscal, ainda que usando a mesma moeda. O país não funcionaria. Mas os líderes europeus não sabiam disso, o que demonstra uma completa ignorância histórica.

Valor: Sua previsão, portanto, está se confirmando?
Ferguson: Não gosto quando as pessoas dizem "eu avisei". Mas, enfim, eu avisei.

Valor: Em 9 de dezembro deste ano serão completados 20 anos da desintegração da União Soviética. O senhor vê aí uma lição para os europeus?
Ferguson: O grande paradoxo do nosso tempo é que a busca pela união expõe a necessidade de fragmentação. A falência da União Soviética demonstrou que o desejo de fragmentação política, embasada na miríade de diferenças culturais, era muito forte. Foi o último império a quebrar. Os países com grandes territórios que querem continuar com o tamanho que têm terão de atuar de maneira firme e compreensiva com suas minorias. Nesse sentido, Estados Unidos e Brasil, por exemplo, não vão se desintegrar. Mas o mesmo não pode ser dito da União Europeia, da Rússia e mesmo da China. Será interessante ver o mundo daqui a cem anos.

Valor: Valor: O que mais o preocupa hoje?
Ferguson: O fato de que a economia mundial está muito próxima do que vivemos na década de 1930. Estamos à beira de uma depressão, a despeito dos países ricos terem implementado políticas fiscais e monetárias ativas. Já usamos todas as armas e continuamos em uma situação muito delicada.
"Aliás, os brasileiros vão precisar
se preparar para um cenário
em que os solavancos cambiais serão
ainda mais violentos no mundo."
Valor: E parece que não há um "plano B" para a economia mundial.
Ferguson: Não há uma saída como em Bretton Woods [1944], um padrão ouro ou um Plaza Accord [1985] no radar. O G20, que teve participação importante na formação de consensos no pós-crise, entre 2009 e o início de 2010, desapareceu. O mundo está no "cada um por si", sem qualquer coordenação entre as nações. Os Estados Unidos, por meio do Federal Reserve, consideram uma terceira expansão quantitativa, sem qualquer consideração sobre o efeito que isso produzirá na moeda brasileira, por exemplo. Da mesma forma, a China mantém sua moeda ligada ao dólar, evitando sua valorização, sem se preocupar com o comércio global. Essa falta de coordenação é assombrosa.

Valor: O senhor é otimista quanto ao papel que o Brasil pode desempenhar no futuro?
Ferguson: O Brasil é uma das razões para ficarmos otimistas, mas vai ser muito difícil para a economia brasileira manter seu ritmo de crescimento num cenário em que a União Europeia se auto destrói e os Estados Unidos ficam estagnados. O Brasil tem enfrentado a valorização de sua moeda, algo que continuará no médio e longo prazos. Aliás, os brasileiros vão precisar se preparar para um cenário em que os solavancos cambiais serão ainda mais violentos no mundo.

Valor: Qual deve ser a prioridade do governo brasileiro nesse cenário?
Ferguson: Apelar para o fortalecimento de fóruns coletivos, como o G20, e para que se construa uma coordenação sobre o movimento nas taxas de câmbio.
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Reportagem Por João Villaverde De Brasília
Fonte: Valor Econômico on line, 09/09/2011

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