sábado, 10 de dezembro de 2011

Criador e criatura

Juremir Machado da Silva*
Crédito: Arte Pedro Scaletsky 
Cada cineasta com sua loucura. O espanhol Pedro Almodóvar é mais voraz. Tem várias. Um filme é mais doido do que o outro. Chega a dar medo. Não do filme, do diretor. Vaza cada coisa da sua cabeça barroca. Até barraco. Tem uma época em que a gente sai de casa para ver filmes inteligentes ou de arte, aqueles que falam sobre a incomunicabilidade do ser em situação, juro, e duram quatro horas. A maior prova de amor que alguém pode dar é ser parceiro para ver o último filme iraniano em cartaz numa sessão especial nalgum cineclube da periferia. Normalmente isso acontece antes do casamento, na fase da paixão desbragada. Depois vem o tempo em que, numa quebra radical de paradigmas, só queremos ir ao cinema para nos distrair e escapar das novelas de televisão. E poder comer um quilo de pipoca sem sentir culpa. Antes de acabar numa casa de massas respingado de molho de tomate como um criminoso escapado da tela.
"A Pele que Habito" é a mais recente maluquice de Almodóvar. É tão bom que chega a dar vontade de não ter visto. Sério. É muito bom. Mas a gente não precisa ver tudo o que é bom para viver bem. Para fazer um roteiro semelhante eu precisaria consumir um carregamento de LSD. O cineasta retoma a velha história do criador que se apaixona pela criatura, um médico perverso que sequestra um homem por vingança e troca-lhe o sexo, até cair na armadilha da vítima e querer fazer sexo com ela (ele). Toda a loucura do Almodóvar está presente. Há maravilhosas cenas bregas, como a do filho bandido que reaparece, feito um Édipo 171, vestido de tigre e mostra o rabo (a bunda mesmo) diante de uma câmera para ser reconhecido pela mãe. A tecnologia permite fazer originais releituras dos clássicos. Nada como, num sábado à noite, ver inúmeros assassinatos, sequestros, estupros, cirurgias clandestinas, gargantas cortadas e outras brincadeiras semelhantes. É o que se chama de diversão.
Almodóvar deve ser visto sempre aos sábados à noite. Para desopilar. Toda a violência da semana se esvai em poucos minutos. O real, mesmo dos piores morros cariocas, não tem como concorrer. Há uma tese no filme de Almodóvar que poderá ser considerada machista, embora machismo e feminismo sejam categorias anacrônicas numa obra sobre o fim de todos os limites. Transformado em mulher, mesmo à força, um homem, para se defender, aprende a dissimular. Isso pode ser lido como a força do fraco é a esperteza ou como, digamos, toda mulher, mesmo artificial, é naturalmente dissimuladora. O tremendão Erasmo Carlos imortalizou essa ideia no seu hit "dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda". Tudo leva a crer que Almodóvar tenha feito uma parceria secreta com Erasmo para conceber esta nova obra-prima dos tempos modernos.
Cinema de qualidade é arte leve e educação. A gente aprende que a ciência pode estar a serviço do mal. Antes, o médico produzia monstros. Agora, produz gatas. A última barreira é o imaginário do transformado. Como fazer um homem cujo corpo foi remodelado para feminino ter mentalidade de mulher a ponto de querer fazer sexo anal? Tudo isso, repito, como distração de sábado à noite.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povojuremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 10/12/2011

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