sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A literatura não é mais sagrada

Josefina em visita recente ao Palácio da República, no Catete, no Rio:
"O fato é que se lê cada vez menos literatura. As pessoas leem mais livros, mas menos literatura".

"Aquí América Latina - Una Especulación" (Eterna Cadencia), lançado no ano passado na Argentina pela crítica literária Josefina Ludmer, é um desses livros que dão o que falar e se tornam referência. A obra tem despertado tanta curiosidade que Josefina esteve no Brasil, há poucos dias, para uma palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e participa, nesta semana, de seminário sobre crítica literária no Itaú Cultural, em São Paulo. Ela é professora da Universidade de Buenos Aires, cidade para onde voltou em 2005, depois de 15 anos morando nos Estados Unidos. Lá recebeu o título de professora emérita da Universidade de Yale.
O livro - que está em fase de tradução para o português pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - nasceu como um diário, que ela escreveu em 2000, durante um período sabático em Buenos Aires. A chegada do novo milênio inspirou-lhe o estudo, no qual cria conceitos para pensar os novos tempos como os de "imaginação pública", "realidadeficção" e "literatura pós-autônoma".
A maneira como escreve, sem amarras acadêmicas, foi fundamental para lhe dar liberdade em sua "especulação" sobre a literatura e os desafios da cultura. Buenos Aires 2000 - "caminho para o apocalipse de 2001" - seria a constatação de que as utopias positivistas para a virada do milênio não se concretizaram. Curiosamente, São Paulo é uma de suas inspirações: "O sonho retrofuturista de 2000 como signo de modernidade e igualdade não foi escrito aqui [Buenos Aires], mas no Brasil. A utopia de Godofredo E. Barnsley, 'São Paulo no Anno 2000 ou Regeneração Nacional', de 1909, imagina nesse ano a sociedade igualitária e a cidade como máxima modernidade em transportes, comunicação e ciência". 
"Tudo veio por água abaixo", diz nesta entrevista, concedida no hotel onde estava hospedada, no Rio. Josefina também não teme a polêmica, como se poderá constatar a seguir.

Valor: A senhora deu há poucos dias no Rio de Janeiro uma palestra com o título "O que vem depois". Uma de suas preocupações é entender o que vem depois dos clássicos latino-americanos, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez. No seu livro, cita o chileno Roberto Bolaño como um desses escritores de depois, praticando uma literatura que a senhora chama de "pós-autônoma", que não é marcadamente nacional e muitas vezes nem se parece com literatura...
Josefina Ludmer: A literatura pós-autônoma é aquela que sai do cerco literário, onde estava encerrada a princípios literários, como os do modernismo. Ela trata de ser outra coisa, como uma investigação histórica, uma biografia, uma crônica, um testemunho. E é fundamental ver que a produção do livro se modifica. O livro se transforma num elemento econômico. Isso era algo que o regime de autonomia queria dissimular: na crítica, o livro não aparecia como uma mercadoria, ao passo que agora está bem claro que se trata de uma. O corte é de fundo tecnológico. A literatura autônoma seria aquela feita em máquina de escrever, antes da tela do computador, sobretudo a dos grandes clássicos dos anos 1960. Já na pós-autonomia, temos muitos escritos provisórios, que lemos e não raramente logo esquecemos. Pode-se dizer que é uma literatura dessacralizada, em geral mais simples do que aquela dos anos 60, que se queria mais densa. Hoje a literatura não ocupa mais um lugar sagrado e pode até se confundir com a leitura de um jornal...

Valor: Mas a senhora não concorda que a literatura tem de ser diferente da vida para ser minimamente interessante?

Rua da Consolação com avenida Paulista, em São Paulo,
uma das inspirações de Josefina em livro: “O sonho retrofuturista de 2000 como
signo de modernidade e igualdade não foi escrito aqui (Buenos Aires), mas no Brasil”.

Josefina: Claro. A literatura põe você em outro mundo, é diferente da vida, pois do contrário não existiria... Mas o fato é que se lê cada vez menos literatura. As pessoas leem mais livros, mas menos literatura. E eu tenho uma hipótese de que, ao colocar a literatura dentro da cultura, você consegue tirá-la do isolamento, da esfera elitista. Todavia, a ideia de utilizar a palavra "pós" é apontar para o anterior, ainda presente. Há uma ambivalência e não um corte, com "antes" e "agora" claramente definidos.

Valor: A pós-autonomia também seria uma estratégia para os escritores continuarem vivos diante do público. Essa mudança possivelmente requer novos críticos, que possam entendê-los. Acha que haveria uma crise da crítica tradicional?
Josefina: Uma grande crise, embora na universidade não se fale muito disso. A ideia seria passar a um tipo de reflexão mais participante do mundo da literatura e dos novos movimentos, com elementos de outras práticas, como os das artes visuais. A imagem do crítico que analisa a obra de fora também se encontra em xeque. Toda essa coisa universitária, muito analítica, saiu de moda. Há até pouco tempo, o "autor" era uma pessoa importante, cujo discurso político tinha impacto, enquanto hoje ninguém se interessa com o que ele pensa politicamente. O autor aparece na televisão, diz que escreve isso ou aquilo, e acabou. Por isso, a crítica centralizada no autor também não tem mais sentido. É a crise do crítico modernista e autônomo. Não sabemos, porém, para onde vamos. A crítica continua tendo sentido na medida em que participa de uma ação política, na medida em que consegue desarmar o aparato cultural. Eu acredito que ficará cada vez mais claro o sentido de contar uma história, o sentido de narrar, como nas tribos, com vozes coletivas, quase como um elemento que nos permite lidar com a vida. A vida está voltando com força para a literatura.
"A imagem do crítico que analisa
a obra de fora se encontra em xeque.
Toda essa coisa universitária, muito analítica,
saiu de moda"

Valor: Em seu livro, a senhora exerce uma crítica literária de maneira bem heterodoxa para uma acadêmica, com um texto saboroso e com técnicas emprestadas da ficção, sem deixar de tecer juízos de valores. Seria um novo caminho para a crítica?
Josefina: A ideia é sair da crítica, fazendo um diário, com esses elementos de ficção, pondo palavras de outros - tudo isso a crítica tradicional não faz. Foi como abrir o discurso da crítica. Criticam-me muito na Argentina por considerar que eu leio qualquer coisa, toda literatura ruim, mas esta é a ideia: deixar-me levar pela história e ver no presente tudo o que aparece, sem descartar, sem preconceitos. Quero dissolver ou partir da crítica para ir a outro lugar, para realizar outro tipo de texto ou prática.

Valor: A senhora conecta a literatura a questões culturais, econômicas, sociais e filosóficas, como ao observar as novas percepções de tempo e a relação da literatura com o território na globalização. Para lidar com tanta novidade, diz que é preciso criar novos conceitos e, entre os que apresenta, um dos mais fortes é o de "imaginação pública". Seria seu ponto de partida?
Josefina: Simplesmente, isso começou porque me entediei. Passei toda a minha vida estudando autores, analisando seus textos. A carreira de letras precisa lidar mais com a matéria viva, e eu comecei a criticar as antigas práticas e me ocorreu que a imaginação pública seria um modo de dissolver autores e obras numa trajetória de movimento. O foco não seria mais entender autor, obra, contexto - outra expressão típica das letras, com "o texto e seu contexto". Na imaginação pública, não há nem texto nem contexto, tudo funciona em movimento. A imaginação pública é tudo o que circula, ela é absolutamente geral. Nela, não se reconhece a divisão entre o social e o privado. Quando se vê um programa na televisão, por exemplo, este é público, mas isso ocorre de forma privada, por meio da sua singularidade. E é importante que seja também "imaginação", como produção de imagens, e não pensamento.

Valor: A senhora explica no livro que a literatura faz parte dessa imaginação pública, não sendo central nela. É simplesmente o meio que escolheu para estudar a imaginação pública, pois é o que melhor domina. Mas é uma ideia que se entende ainda melhor quando se pensa no cinema, não acha?
Josefina: Sim, com o cinema você entende a imaginação pública de forma clara. A imaginação pública implica ideias, não abstratas, mas como imagens, pois as imagens também transmitem ideias. Nossa cultura é de imagens. A literatura hoje é minoritária porque não comporta imagens. A imaginação pública me permitiu ler além dos autores, porque é um coletivo. Colaboramos para a imaginação pública e somos todos tocados por ela. Também foi muito produtiva para mim a ideia de "realidadeficção", presente no nosso cotidiano. É algo que compreendemos bem também por meio do cinema ou da literatura contemporânea. Nos autores contemporâneos, muitas vezes não sabemos se o que lemos é real ou ficcional.

Valor: Parece que muitos dos professores para os quais a senhora falou, no Rio, ficaram um pouco incomodados com a defesa que fez do estudo dos best-sellers nos cursos de letras...
Josefina: Eu sou uma crítica das carreiras de letras, tais como estão, congeladas num enfoque dos anos 1960 ou 70, com análises muito detidas dos textos, realizadas com muita paciência. Hoje em dia não se lê mais assim. Os best-sellers deveriam ser estudados nos cursos de letras porque são literatura também. O que existe hoje na universidade é mais que uma institucionalização, é uma burocracia das letras. A universidade canoniza certos escritores e despreza outros. Mas eu mesma gostaria de escrever um best-seller. É preciso saber narrar e isso não é muito fácil. Eu gosto muito de um autor como o japonês [Haruki] Murakami, best-seller e bom escritor. Isso é algo que não costuma agradar muito aos estudantes de letras, que tendem a ser mais elitistas.

Valor: Na primeira parte do seu livro em forma de diário, a senhora leva o leitor a um passeio por Buenos Aires e o apresenta à nova literatura argentina, que a senhora lê à noite e chama de "ficções noturnas", evocando os sonhos. A senhora mescla impressões dessas leituras com as da cidade e conta sobre conversas com os escritores que encontra durante a sua "especulação". Seu objetivo é entender as temporalidades que a Buenos Aires ano 2000 inspira por meio da literatura. Mas um ano depois a crise econômica varreu a Argentina num cataclismo. E, diferentemente dos estudos literários tradicionais, a senhora leva em conta o mercado nas suas análises, ao observar, por exemplo, as restrições impostas pelas editoras aos escritores. Seu passeio, pouco depois, teria sido completamente diverso. Foi por isso que demorou a lançar o livro?
Josefina: Eu trabalhava na Universidade de Yale e em 2000 tive um período sabático, com oito meses livres, em Buenos Aires. E me perguntei o que poderia fazer na cidade, com o olhar que eu estava trazendo do outro lado. Então, comecei a escrever, mas depois acabei deixando aquilo de lado, até que, uns cinco anos depois, resolvi trabalhar com a ideia de Buenos Aires futurista, ano 2000. Eu vi que o sentido de 2000 era o de ter sido o momento imediatamente anterior ao da crise. E a minha pergunta era se havia indícios de que tudo poderia vir abaixo e, claro, eles existiam. Aquela paridade do peso com o dólar não poderia ser mantida... Há cem anos, imaginava-se o ano 2000 como de plena modernidade, mas tudo veio por água abaixo. Agora estou preocupada com o que vem depois. Sempre estou preocupada com o que era anterior e com o que vem depois...
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REPORTAGEM POR Por Rachel Bertol Para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico on line, 09/12/2011

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