COMO EU FIZ. NILTON BONDER
O rabino venceu o medo de pôr
uma mulher despida no palco para
falar sobre as Escrituras
NILTON BONDER (EM DEPOIMENTO A MAURÍCIO MEIRELES)
"Já vão seis anos desde que A alma imoral, peça baseada no meu livro com mesmo nome, estreou e começou a viajar por teatros de todo o Brasil. Quem vê o sucesso não sabe da angústia que passei na véspera da estreia. Eu, um líder religioso, permiti que uma mulher nua lesse um texto que remete a Escrituras Sagradas da minha religião. Tudo começou em 2005. Fui procurado pela Clarice Niskier, que dirige e atua na peça, e começamos a adaptação. Era um texto filosófico e teológico, que precisava virar teatro.
Não há nudez na natureza. É essa uma das principais ideias que defendo no livro. A alma imoral prega a necessidade de o ser humano ser mais despojado e transparente para ser feliz. Clarice teve a ideia: “Precisamos ter algo que remeta à nudez”. Perguntou como eu me sentiria, por ser rabino. Tentamos pensar em um jogo de luzes, mas ela não demorou a chegar à conclusão óbvia: “Nilton, acho que fica estranho se não for nudez”. Não seria algo erotizado. A ideia era que o corpo nu representasse a alma. Concordei.
"Não há nudez na natureza.
É essa uma das principais ideias que
defendo no livro. A alma imoral prega
a necessidade de o ser humano ser mais despojado
e transparente para ser feliz."
A Clarice é uma artista séria. Ela sempre me respeitou. A nudez não seria algo apelativo, para lotar o teatro; era um recurso de dramaturgia. Mas é claro que era algo delicado. Na primeira leitura que ela fez nua, cheguei atrasado. Ela começou sem mim. Quando entrei, foi um constrangimento. Ela perdeu a concentração. “Vou precisar recomeçar.”
Dois dias antes da estreia, saí para jantar com um amigo, um sociólogo de cabeça aberta. Contei que a peça ia estrear e tinha uma mulher nua. “Mas você não pode. Isso é um absurdo”, disse ele. Levei um susto. Ele argumentou que o Nilton Bonder intelectual podia até fazer aquela ousadia. O rabino, não. Lembrou que eu tenho uma luta por uma tradição judaica mais aberta, e que as pessoas acreditam e esperam seriedade de mim. “Se isso for feito errado, vai ser uma traição a sua comunidade”, disse.
Traição. Ele ainda usou a palavra-chave do livro. Fiquei abalado e liguei para a Clarice na hora. Será que eu não estava colocando tudo em risco? Será que, como rabino, aquela ousadia não me era proibida? Não seria usar uma forma profana para falar de algo sagrado? Porque é fácil ousar por si mesmo. Mas, quando envolve a vida dos outros, uma tradição que é maior que você e é cara para outras pessoas, é complicado. “Não vou fazer nada que você não queira”, disse a Clarice. “Mas vai dormir e amanhã conversamos.” Cheguei em casa, tentei me aconselhar com minha mulher, liguei para amigos. Faltava pouco para a estreia. Resolvi dormir, já que dormir é entrar em águas profundas.
Quando acordei, tudo estava mais claro. Vi que não era uma nudez vazia. Foi um recurso que a atriz encontrou para expressar as ideias do texto. Percebi que não era uma proibição, mas um risco. E resolvi assumir. A prova de fogo foi na terceira noite de apresentação, repleta de senhorinhas da comunidade judaica. Fiquei do lado de fora tremendo com medo da reação delas. Mas foi ótimo, todas saíram encantadas. Nenhuma achou a nudez uma violência.
Fazer essa peça foi um risco que eu e a Clarice assumimos. Queríamos dizer que o nu é o que há de mais puro no ser humano. Conseguimos passar isso para o público. Levei aquele amigo para ver a peça, e ele disse: “Ainda bem que você não me ouviu”."
---------------------Fonte: Revista ÉPOCA on line, 02/12/2011
Imagem da Internet: O marco inicial do Cubismo ocorreu em Paris, em 1907, com a tela Les Demoiselles d''Avignon, pintura que Pablo Picasso levou um ano para finalizar. Nesta obra, este grande artista espanhol retratou a nudez feminina de uma forma inusitada, onde as formas reais, naturalmente arredondadas, deram espaço a figuras geométricas perfeitamente trabalhadas.
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