ANA CLÁUDIA MUNARI*
MultimídiaVisitantes experimentam aparelhos de leitura digital
durante a Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha.
É hora de os agentes das letras encararem o espaço digital como uma realidade, sob pena de tornar inevitável a leitura fragmentada do futuroAssisti recentemente a uma discussão sobre o ensino de literatura e o Enem no Facebook, que logo se estendeu a jornais e blogs, em que professores, escritores e pesquisadores debatiam a validade das questões da prova em relação à formação de leitores. Não pude entrar no debate, porque na ocasião não lera a matéria da revista Veja que era o cerne dos argumentos. Talvez para o desgosto de um dos protagonistas da contenda, baixei a edição de Veja no meu iPad e li depois. Digo isso porque ele teme que a leitura, num futuro próximo, seja feita apenas através de aplicativos digitais. E ele está certíssimo quando diz que, aí, a literatura será outra coisa. Ela já é: a hiperliteratura.
Agora, minha leitura do Facebook me levou a pensar nesta questão que vem há tempos se evidenciando para mim: que leitura, mesmo a literária, deixa de ser, nesses tempos digitais, objeto especial dos agentes das Letras, para se tornar matéria para jornalistas, publicitários e webdesigners. Já falei em artigo neste veículo interessado na questão, em ensaio na área de Comunicação, em palestra, em mesa no 1º Congresso Brasileiro de Leitura Digital, e não me custa repetir: a passagem das letras do papel para o digital não é a primeira nem será a última revolução da leitura. A literatura já foi muito diferente do que é hoje – e nem por isso pior ou melhor – e ainda vai mudar muito. Quem transforma a literatura é o leitor, o que ele escolhe para ler e a forma como lê.
Talvez a questão central desse temor dos acadêmicos do mundo do papel pela revolução digital esteja no fato de que o livro seja, enfim, o suporte perfeito para o literário. Como disse Umberto Eco, artefatos como a roda, a colher, o martelo, a tesoura, os óculos e o livro sofreram poucas alterações desde que foram inventados, porque alcançaram formas ideais que não necessitam de inovação. Sim, Dom Quixote, Em Busca do Tempo Perdido, Ensaio sobre a Cegueira, Dom Casmurro e toda a literatura desde o século 16 foi feita para caber nas páginas de papel – embora eu tenha algumas dúvidas sobre se, por exemplo, Un Coup de Dés e Ulisses são textos realmente feitos para o suporte analógico. No entanto, quando eu leio Síndrome de Quimera e A Guerra dos Bastardos, e imagino histórias em quadrinhos e filmes de Tarantino, suponho que eles cairiam redondos como hipermídia. E hipermídia não tem sido tema para as Letras.
Li em Zero Hora uma matéria sobre o projeto que está ensinado moradores da área rural de Cachoeira do Sul a usar o computador. Diante da tela, uma das aprendizes “edita o título de seu exercício usando o editor de textos”. Ela está aprendendo a escrever e a ler na tela! E quem é o responsável por essa alfabetização digital? Uma voluntária, professora de Artes. É ela quem está ajudando os alunos a “aprimorarem a língua portuguesa”. É uma iniciativa eficiente, que só posso aplaudir, mas que serve para mostrar que o espaço da escrita e leitura tem-se tornado “conteúdo” para profissionais das mais diversas áreas, basta que ele entenda do uso da ferramenta digital. Quanto mais conhece a máquina, mais tem a ensinar sobre hiperleitura.
"Não há como parar o trem.
A leitura digital é fato que se formata
rapidamente na tela."
Enquanto isso, a escritora e ilustradora Ângela Lago publica minicontos no Facebook e realiza uma tradução compartilhada de poemas de Rilke, escolhidos ao acaso, lidos, traduzidos e comentados entre a rede de amigos. Leitura, interpretação, tradução e crítica simultâneas e compartilhadas em rede. Enquanto isso, Vitor Reis escreve, há mais de 10 anos, um hiperlivro na internet, postando impressões de leitura, poemas, fotos, textos e comentários dos escrileitores, gente que lê-escreve-posta-comenta-vê-assiste-compartilha-curte-linka suas leituras do mundo. Enquanto isso, o mundo da leitura – digital, diga-se, mas ainda assim uma parcela significativa das práticas de leitura – torna-se um tema pertinente da área de comunicação. O ensino-aprendizagem escolático ganha mais um adversário: o comunicacional.
Se os agentes das letras, como responsáveis pelo ensino de literatura, ficarem restritos ao mundo do papel – e às vezes nessa defesa alarmada do livro –, então virá mesmo a triste realidade da leitura fragmentada do futuro, em que os hiperleitores serão vorazes consumidores de notícias, notas, comentários, perdendo a capacidade de interpretação de um texto que diz mais do que algumas linhas e várias imagens dadas. Os mitos contemporâneos, frágeis e voláteis, serão aqueles a modelar nosso ethos, e não os mitos eternos e profundos, que a literatura em papel tem-se encarregado de recontar geração após geração.
Não há como parar o trem – quer ele nos leve à evolução ou não: a leitura digital – e a literatura digital e a cultura digital – é fato que se formata rapidamente na tela. Se os textos já escritos em papel vão fazer-lhes companhia nas telas, e como isso vai se dar, já está sendo discutido entre webdesigners. Como esses textos, analógicos e digitais, serão escritos e lidos, é matéria para os agentes das letras. Literatura, seja em que suporte for, serve a qualquer leitor interessado, mas teoria, crítica e formação do leitor, tomemos tenência, é coisa nossa!
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* Doutora em letras pela PUCRS
Fonte: ZH/CULTURA on line, 03/12/2011
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