sábado, 3 de dezembro de 2011

Iluminura turca

LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA*

Imagem da Internet
Meu Nome É Vermelho é o nome do romance publicado por Orhan Pamuk antes de receber o Prêmio Nobel de Literatura, em dezembro de 2006. É uma história fantástica e, como uma pintura renascentista, vale por si só. Seu autor nasceu e vive em Istambul, que já foi Bizâncio, que já foi Constantinopla quando Constantino quis cristianizar o Oriente. Istambul (cenário do romance), às margens do Bósforo – cujo sentido de “caminho de vaca” remonta à mítica Europa em sua passagem pelo famoso estreito no retorno à Fenícia –, é uma cidade no meio do mundo, entre o Oriente e o Ocidente, ainda Europa e já Ásia. A obra de Pamuk os aproxima.
Em seu discurso de Estocolmo, Pamuk, ao contar da herança de seu pai, nos diz dessa relação. Recebida a mala de documentos que ele conhecia desde criança, com os escritos do pai, sentam-se os dois para conversar, como de hábito, sobre coisas sem importância: a vida, os inesgotáveis assuntos políticos da Turquia, os projetos inacabados! E, ainda antes de abrir a mala, nos confidencia uma lembrança de infância: certa vez, ao remexer nos papéis aí guardados, rescendeu uma fragrância de água de colônia e de países estrangeiros; respirou então os ares do mundo.
É disso que trata o romance do Nobel que ora nos visita. Ambientado no ateliê de pintura de um sultão, no século 16, onde se faziam miniaturas e iluminuras para os livros destinados a imortalizar a vida dos nobres, seus personagens são os humildes artistas que, para pintar um cavalo tal como visto e desejado por Alá, precisam ter desenhado cavalos por 50 anos, conforme os mestres de Shiraz e Herat. Mas constam ainda outros personagens menos ortodoxos, como uma árvore, ou melhor, o desenho de uma árvore, um cão, mas um cão que fala para os que são capazes de ouvi-lo! Não se surpreendam, passa-se o mesmo como o primeiro personagem a entrar em cena: um cadáver. E como conta coisas! Na verdade, os leitores já estão acostumados com os relatos póstumos de Brás Cubas. Alguns lembrarão do amigo da Morte, de Pedro Antonio de Alarcon, contemporâneo do nosso Machado, e mesmo de Odisseu indo ao Hades para ouvir as recomendações de Tirésias já falecido. Mas isso é apenas literatura, dirão. Pois perguntem a um policial quantas coisas um cadáver é capaz de contar. Claro, depende sempre de quem seja capaz de ouvir. E o que dizer da versão da história contada por uma moeda de ouro de 22 quilates, um escudo otomano cunhado em Veneza?
"Através do desenho,
antiga paixão do autor,
ele mostra as influências sofridas".
O tema é o clássico amor e morte. Se o cadáver é um personagem, seu assassino também o é. Estamos frente a um romance polifônico, com diversos narradores, onde se nota claramente a interinfluência das diversas culturas. Através do desenho, antiga paixão do autor, ele mostra as influências sofridas, pelos iluminadores, dos árabes e dos chineses, assim como dos venezianos, retratistas de individualidades. Istambul é o lugar onde as influências se mesclam. Reconheço na narrativa a valorização do início do romantismo, iluminador das figuras mais simples e menos valorizadas da sociedade, para o que a presença da moeda bem pode indicar, através do capitalismo, uma estrutura social menos rígida e homogênea e com um sistema político menos absolutista e mais democrático capaz de aumentar a liberdade de escolha individual. Mestre Cegonha, outro iluminador, por exemplo, havia amealhado, em três meses de trabalho, outros quarenta e sete escudos de ouro iguais ao do narrador. E a história de amor que nos encanta, entre o Negro e Shekure, está baseada em uma antiga lenda persa, da princesa Shirin e do príncipe Khosrow que, apaixonado, se fez amar apresentando à moça um retrato onde ele aparecia, como era o costume da época, igual ao retrato de todos os outros homens. E o Vermelho? Um hapax legomena para falar do sangue sem o qual nada é possível na história. Leiam o livro.
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* Psicanalista e escritor
Fonte: ZH/CULTURA on line, 03/12/2011

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