Os mitos que tentam eximir de culpa os verdadeiros criminosos
Pete Etchells, The Observer
Os videogames são uma das
formas menos compreendidas de entretenimento. Em certo sentido, é fácil
entender o porquê: se você não teve muita interação com eles, ver alguém
jogar pode ser uma experiência bastante perturbadora. Os jogadores
muitas vezes dão a impressão de estarem colados à tela, absortos pelo
que parece ser o equivalente digital de junk food. No máximo, parece algo inútil de se fazer; no mínimo, tememos que os games sejam
isoladores sociais ou ativamente nocivos. Se nos demorarmos um pouco
para descobrir a verdadeira natureza dos videogames, porém,
encontraremos uma história muito diferente.
1. “Os videogames nos tornam mais violentos”
Um dos mais antigos slogans
sobre os videogames é fazer os jogadores ficarem mais agressivos no
mundo real. É uma preocupação que se torna agudamente visível no
contexto das chacinas a tiros. Os videogames geralmente ocupam o centro
do palco nas análises feitas pela mídia dessas atrocidades, com
insinuações de que não só os perpetradores praticam jogos violentos como
foram levados a cometer o ato porque jogavam.
Essas acusações muitas vezes perdem
força depois de uma análise forense. Na verdade, evidências científicas
sugerem que a ligação entre games e agressão é fraca. Em um estudo recente publicado em Molecular Psychiatry,
os participantes foram solicitados a praticar um jogo violento (Grand
Theft Auto V), um não violento (The Sims 3) ou nenhum jogo, todos os
dias durante dois meses. Usando uma série de questionários e medições
comportamentais para testar a agressividade, atitudes sexistas e
questões de saúde mental, os autores do estudo descobriram que jogar o game violento não tinha efeitos negativos significativos sobre qualquer uma das medidas.
Pesquisa atesta: jogos violentos não deixam os jovens mais agressivos ou menos sociáveis
De modo semelhante, pesquisa publicada neste ano em Royal Society Open Science
mostrou que, em um estudo com mais de 2 mil adolescentes e cuidadores
no Reino Unido, não havia evidência de que praticar jogos violentos
deixasse os jovens mais agressivos ou menos sociáveis.
Dois estudos não vão nos dar a história inteira, é claro, mas a
imagem que surge da literatura de pesquisa é que os videogames não
parecem ter um impacto significativo sobre o comportamento agressivo e
que, certamente, não são a causa principal de atos de violência em
massa.
2. “Os videogames causam vício”
No verão de 2018, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) incluiu formalmente “transtorno de jogo” em seu
manual de diagnósticos, a Classificação Internacional de Doenças. A
decisão desencadeou uma discussão furiosa na comunidade acadêmica. Um
grupo de estudiosos afirmou que esse rótulo oferecerá maior acesso a
tratamento e ajuda financeira aos que experimentam verdadeiros problemas
por jogar videogames. Outros (inclusive eu mesmo) afirmaram que a
decisão era prematura; que a evidência científica da dependência dos
jogos simplesmente não era acurada ou significativa (ainda).
Parte do problema está nas listas de
checagem usadas para determinar se um transtorno existe. Historicamente,
os critérios para dependência de jogos foram derivados dos usados para
outros tipos de dependência. Embora esse possa ser um lugar razoável
para se começar, talvez não conte toda a história sobre quais são os
aspectos únicos do vício em videogames. Por exemplo, um dos
critérios-padrão é que as pessoas ficam preocupadas com jogos, ou
começam a jogá-los exclusivamente, em vez de praticar outros hobbies.
Porém, estes não se encaixam bem como parâmetro do que se poderia
considerar envolvimento “prejudicial”, porque os jogos em si (ao
contrário do abuso de drogas, por exemplo) não são inerentemente
nocivos.
Usar esse critério também tem o
potencial de inflar a predominância da dependência. Embora haja pessoas
por aí para quem o jogo pode se tornar um problema, é provável que seja
um pequeno grupo.
Além disso, algumas pesquisas sugerem
que a dependência de jogos é razoavelmente passageira. Dados que
examinam jogadores num período de seis meses mostraram que, dos que
exibiam inicialmente o critério de diagnóstico de dependência, nenhum
chegou ao limite no final do estudo.
Isso não quer dizer que não haja nada
com que se preocupar nos jogos. Cada vez mais, e especialmente no caso
de jogos para celular, mecanismos de aposta na forma de compras por
aplicativo e “caixas de recompensas” estão sendo usados como fontes de
renda. Aqui, algumas pesquisas emergentes sugerem uma correlação entre
pessoas que gastam dinheiro comprando recompensas para adquirir novos
itens do jogo e notas sobre medidas de jogo problemático. Esse trabalho é
preliminar, e ainda não sabemos a direção casual da relação, mas ela
indica que há alguns aspectos do marketing e monetização dos games com que devemos tomar cuidado.
3.“Games causam isolamento social”
A visão estereotipada de um jogador é
um adolescente branco pálido jogando sozinho em seu quarto. É
compreensível que algo nessa situação parece insalubre ou não natural.
Mas essa opinião geralmente vem da incompreensão do que realmente são os
videogames. Desde a sua concepção, os jogos foram projetados como
experiências sociais. Enquanto nos primeiros 30 anos de sua existência
isso se restringiu a pessoas praticando jogos de diversos jogadores umas
com as outras, o advento do acesso à internet em alta velocidade
significa cada vez mais que essas interações estão se movendo para a
rede. Em vez de isolar as pessoas, os jogos online
têm o potencial de nos aproximar de diversas novas maneiras, de formar
comunidades sólidas em torno de interesses e passatempos comuns.
Mats Steen, por exemplo, nasceu com
distrofia muscular de Duchenne, uma doença devastadora que causa a
deterioração progressiva dos músculos. Conforme ele cresceu, para o
mundo exterior – mesmo para sua família –, ele parecia se tornar isolado
e retraído. Depois que ele morreu, em 2014, com 25 anos, surgiu uma
imagem diferente – Mats tinha uma vida plena e feliz no mundo online
de Azeroth, o cenário do antigo jogo World of Warcraft. Longe de estar
sozinho, Mats estava cercado de amigos nesse mundo, que se uniram para
viajar à Noruega para o enterro dele.
Para Mats, como para muitas outras
pessoas em todo o mundo, o valor de jogar videogames não está apenas em
sua capacidade de ajudá-lo a escapar, mas em sua capacidade de ajudar a
nos conectarmos com outras pessoas.
4. “É uma perda de tempo sem sentido”
Muitas vezes ouço essa crítica como pesquisador de games
– não poderia estar fazendo algo melhor com meu tempo? Há uma certa
dissonância na ideia: de alguma forma, somos capazes de ao mesmo tempo
nos preocuparmos com que os jogos sejam a raiz de muitos problemas
sociais, mas também considerarmos que eles sejam algo inútil ou vazio de
se fazer. Por que jogar, quando você poderia ir lá fora ou se envolver
em formas de arte mais enriquecedoras culturalmente? Mas isso vem de uma
incompreensão sobre o poder criativo dos games.
Eles nos oferecem uma oportunidade de experimentar o nosso mundo e
outros lugares fantásticos de uma maneira que nenhuma outra forma de
mídia consegue chegar perto.
Como explicou a romancista e designer de games
Naomi Alderman em um ensaio por rádio em 2013: “Enquanto todas as
formas de arte podem instigar emoções poderosas, só os videogames
conseguem fazer seu público sentir a emoção da agência. Um romance pode
entristecê-lo, mas só um game pode fazê-lo se sentir culpado por seus atos”.
Os videogames o colocam no centro da
história – você é um participante ativo, e não um observador passivo.
Eles nos oferecem um lugar seguro para interrogar e testar as
consequências emocionais de nossos atos. Longe de ser um desperdício de
tempo, então, os games
nos ajudam a explorar o que significa ser humano, a explorar ideias de
amor e perda e a viajar para lugares distantes e incríveis, a nos
tornarmos pessoas também incríveis – tudo isso no conforto de nossas
casas.
Não é perda de tempo. Jogos nos ajudam a explorar o que significa ser humano
5. “É meramente diversão”
Os videogames, obviamente, foram um
produto do desenvolvimento científico. Cada vez mais essa relação se
torna simbiótica – em parte por seu poder de nos absorver, os videogames
estão sendo aproveitados em estudos científicos. Os melhores exemplos
disso realizam duas coisas: eles agem como terreno fértil para coletar
dados científicos, e ao mesmo tempo são uma experiência divertida.
Um exemplo disso é o recente game
para celular Sea Hero Quest. Desenvolvido em 2016, ele é um laboratório
virtual vivo e respirante, onde os jogos atuam como um experimento. Os
jogadores devem memorizar um mapa e depois navegar num barco por uma
série de vias aquáticas, visitando um conjunto de boias em uma
determinada ordem. Esses dados estão sendo usados por cientistas do
Univesity College London e da Universidade de East Anglia para
compreender como as capacidades de navegação espacial variam ao redor do
mundo e durante o período de vida.
Esse tipo de conhecimento é crucial
para desenvolver uma compreensão mais profunda de como essas habilidades
começam a diminuir e dar errado no caso de doenças degenerativas como a
de Alzheimer. Seis meses depois do lançamento, o game
havia sido baixado por quase 4 milhões de pessoas de todos os países, e
espera-se que no futuro dados do jogo ajudem a informar novas
abordagens no diagnóstico e no tratamento da demência.
--------------- *Autor de Lost in a Good Game: Why We Play Video Games and What They Can Do for Us (editora Icon, GB).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/tecnologia/5-pontos-para-entender-por-que-videogame-nao-mata-e-e-bom-para-voce/?utm_campaign=newsletter_rd_-_23042019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 22/04/2019
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