Massimo Recalcati*
A tese compartilhada pelos participantes do Congresso Mundial sobre a
família em Verona é que a família seria um evento natural. Mas eram
naturalmente estéreis as matriarcas (Sara, Rebeca, Raquel)
e não era de forma alguma natural, como sabemos, o pai carpinteiro que assumiu
a responsabilidade de criar o filho de Deus. O texto bíblico indica de forma
forte que o mistério da geração da vida e de seu acolhimento, nunca possa ser
reduzido materialistamente às leis da natureza, pois traz consigo aquele
milagre da palavra sem o qual a humanização da vida seria simplesmente
impossível.
O comentário é do psicanalista italiano Massimo Recalcati.
Que palavra? Aquela que realmente fomenta a vida, tornando-a digna de
vida, instituindo-a como a vida de um filho. Aquela palavra que nomeia e
reconhece em uma determinada vida não a manifestação anônima da natureza, mas
uma vida humana, vida carregada por um nome próprio. O amor nunca é, de fato,
amor genérico pela vida, mas é sempre o amor por um nome.
Sem o milagre da palavra que adota a vida do filho, não existe nem pai
nem mãe, não existe aquela responsabilidade ilimitada que institui a
parentalidade muito além das leis da natureza. É tão difícil de entender?
Deveríamos realmente reduzir a força sublime desse extraordinário gesto de adoção, fruto do amor dos Dois, a um mero
mecanismo de células, a uma engrenagem anônima da natureza ou a uma mera
necessidade instintiva? Ou deveríamos realmente pensar que essa
responsabilidade ilimitada é um privilégio exclusivo dos chamados pais
naturais?
Mas não é justamente esse gesto de parentalidade um gesto que
excede qualquer lei da natureza? Não é a força nua da palavra de Deus - de sua
graça - que cura as matriarcas da esterilidade, possibilitando a filiação
humana da vida? Podemos realmente pensar - realmente pensam isso os defensores
da família natural - que a geração de um filho seja um evento da natureza,
semelhante a uma chuva ou a uma folha de grama?
A vida humana não vive de instintos, mas se alimenta
da luz da palavra
–
Massimo Recalcati –
A vida humana não vive de instintos, mas se alimenta da luz da palavra.
Um espermatozoide ou um óvulo não são suficientes para realmente gerar um
filho, nem para criar um pai ou uma mãe. Há pais e mães naturais que
abandonaram seus filhos, que nunca se tornaram pais, que não têm interesse
algum pelas vidas dos filhos que geraram naturalmente. Há casais heterossexuais
que não têm ideia do que seja o héteros, o respeito e a admiração pela
diferença do outro que a lição do amor exige.
A heterossexualidade, dizia Lacan, nunca é reduzível
a um dado de
anatomia, mas é a postura
fundamental do amor
– Massimo Recalcati –
A heterossexualidade, dizia Lacan, nunca é reduzível a um dado de anatomia, mas é a
postura fundamental do amor: é realmente heterossexual quem sabe amar o outro
em sua diferença. Pode sê-lo ou não, com as mesmas possibilidades, uma lésbica,
um homossexual ou um chamado heterossexual. É tão
difícil de entender?
O que realmente faz a diferença é a lei do amor e não a lei da natureza. É o coração da
pregação cristã. Onde esta Lei é operacional há respeito pelo héteros, pela
diferença absoluta do outro; onde, ao contrário, esta Lei está ausente, há
contestação, reivindicação, destruição do héteros. Há famílias que querem
reivindicar o direito exclusivo do amor. Há quem pense que o anonimato da lei
da natureza garanta uma boa parentalidade. Não se percebe o caráter
toscamente materialista de tais posições? Na natureza, o instinto organiza a
vida da cabeça aos pés.
O que realmente faz a diferença é a lei do amor
e não a lei da natureza.
É o coração da pregação cristã
– Massimo Recalcati –
Mas o mesmo vale para a vida humana? Existiria um instinto parental?
Talvez presente em pais naturais e ausente em pais adotivos? Não deveríamos
talvez aprender a raciocinar de outra forma? Pensar, por exemplo, que todos os pais
naturais deveriam olhar aqueles adotivos para aprender o que significa doar
a si mesmos em uma relação sem qualquer continuidade natural, sem espelhamento.
É tão difícil entender que existe pai e existe mãe, que existe família não
porque há continuidade de sangue ou diferença anatômica dos órgãos genitais dos
pais, mas porque há doação, amor pelo héteros do filho, aceitação de uma
responsabilidade ilimitada, experiência incondicional do acolhimento?
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*Professor das universidades de
Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 31-03-2019.
A tradução é de Luisa Rabolini.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/587988-a-verdadeira-lei-do-amor
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