terça-feira, 9 de abril de 2019

Harmonia entre ciência e fé

Frei Betto*

Da es­querda para a di­reita: Frei Betto, Wal­demar Falcão e Mar­celo Gleiser, em foto de Bruno Veiga  
      
O fí­sico bra­si­leiro Mar­celo Gleiser, pro­fessor da Uni­ver­si­dade de Dart­mouth (EUA), ar­re­batou o Prêmio Tem­pleton 2019, con­si­de­rado o “Nobel” da es­pi­ri­tu­a­li­dade. A fun­dação pre­mi­a­dora res­saltou ter ele dado “uma con­tri­buição ex­cep­ci­onal para afirmar a di­mensão es­pi­ri­tual da vida”.
       
Em julho de 2010, Gleiser e eu nos tran­camos quatro dias no Hotel Santa Te­resa, no Rio, para di­a­logar sobre fé e ci­ência, me­di­ados por Wal­demar Falcão. Do en­contro re­sultou o livro “Con­versa sobre a fé a ci­ência” (Agir/Nova Fron­teira), hoje fora de ca­tá­logo.
       
De for­mação ju­daica e órfão de mãe ainda cri­ança, Gleiser teve a morte como pri­meiro de­safio para en­carar o além. Ainda jovem se in­te­ressou pelo ta­oísmo e o hin­duísmo, pra­ticou ioga e, graças à lei­tura de Eins­tein, para quem nada era mais im­por­tante do que “ex­pe­ri­mentar o mis­tério”, des­co­briu que temas ou­trora re­ser­vados às re­li­giões, como ori­gens do Uni­verso e da vida, agora eram abor­dados pela ci­ência. Re­cebeu ainda in­fluência do fí­sico e co­mu­nista bra­si­leiro Mario Schen­berg, que se de­cla­rava “ma­te­ri­a­lista mís­tico”.
       
Antes de nosso en­contro, lemos os li­vros um do outro. Ve­ri­fi­camos haver entre nós mais con­ver­gên­cias que di­ver­gên­cias. Ad­mirei-me com sua aber­tura ao trans­cen­dente, em es­pe­cial nas obras “A har­monia do mundo” e “Cri­ação im­per­feita”, em um pe­ríodo em que fí­sicos como Stephen Haw­king e Ri­chard Daw­kins pro­fes­savam o ateísmo mi­li­tante.
       
Gleiser ad­mitiu ter se sur­pre­en­dido com os co­nhe­ci­mentos de as­tro­fí­sica e fí­sica quân­tica de um frade após ler meus li­vros “A obra do ar­tista – uma visão ho­lís­tica do Uni­verso” (José Olympio) e “Sin­fonia Uni­versal – a cos­mo­visão de Tei­lhard de Chardin” (Vozes).
       
En­tender o mundo é des­vendar a mente de Deus. À minha afir­mação de que a ci­ência é o reino da dú­vida, Gleiser com­pletou que “ela se ali­menta da dú­vida para buscar a ver­dade. Não existem ver­dades aca­badas. O pro­cesso da busca é o pro­cesso da trans­cen­dência.”
       
A ci­ência trata do “como” e a te­o­logia do “por que”. “Não existe in­com­pa­ti­bi­li­dade entre es­pi­ri­tu­a­li­dade e ci­ência”, disse Gleiser. “Muito pelo con­trário, o ci­en­tista de­dica a vida ao es­tudo da na­tu­reza porque é apai­xo­nado por ela. Essa re­lação é es­pi­ri­tual.”
       
Ad­mitiu ver “a busca pelo co­nhe­ci­mento ci­en­tí­fico como uma grande busca es­pi­ri­tual, que res­ponde a an­seios que estão co­nosco desde tempos an­ces­trais. Nossa visão do mundo ca­minha de mãos dadas com os avanços da ci­ência. Nossa es­pi­ri­tu­a­li­dade também”.
       
Ag­nós­tico, o fí­sico teó­rico con­corda que a ideia de Deus não pode ser ob­jeto da ci­ência, pois, como o amor, não é ve­ri­fi­cável. Per­tence à es­fera do mis­tério, que su­pera a nossa ra­ci­o­na­li­dade. Talvez, opinou, a ci­ência ja­mais venha a obter a Te­oria Uni­fi­cada, capaz de ar­ti­cular todas as forças da na­tu­reza, como as­pi­rava Haw­king. E Gleiser du­vida que, um dia, se possa ex­plicar ci­en­ti­fi­ca­mente as ori­gens do Big Bang e da vida, e o fun­ci­o­na­mento da mente, ainda que o cé­rebro es­teja quase todo ma­peado, bem como o me­ca­nismo de suas ondas elé­tricas.
      
Gleiser e eu en­ten­demos que não se deve con­fundir re­li­gião e es­pi­ri­tu­a­li­dade. A pri­meira é uma ins­ti­tuição, a se­gunda, uma ex­pe­ri­ência, assim como na dis­tinção entre fa­mília e amor. E ambos con­si­de­ramos que o es­teio da es­pi­ri­tu­a­li­dade é a me­di­tação. Em um lago pró­ximo à sua casa, em Ha­nover, pra­ti­cava o fly fishing, pesca com isca ar­ti­fi­cial, em que os peixes são de­vol­vidos vivos à água; o ob­je­tivo é es­va­ziar a mente do pes­cador. “A meta final de qual­quer prá­tica de me­di­tação é você se 
de­si­den­ti­ficar de sua mente”, res­saltou.
       
Pre­miar Mar­celo Gleiser re­pre­senta sig­ni­fi­ca­tivo li­belo contra a in­to­le­rância re­li­giosa e a ob­sessão de pre­tender di­vi­nizar a ci­ência e des­pres­ti­giar a fé. 
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 * Frade dominicano. Escritor. Assessor de movimentos sociais.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13721-harmonia-entre-ciencia-e-fe 03/04/2019
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

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