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Kevin Ku/Unsplash
O peso da
tecnologia nas impressões sobre o tempo
Em
entrevista ao ‘Nexo’, Rodrigo Turin comenta impactos da chamada ‘aceleração
social do tempo’, que influencia o número de horas que as pessoas passam
trabalhando até a vontade de não fazer absolutamente nada na internet
É
domingo. Em tese, é um dia livre para “passar o tempo” como quiser.
O tempo é um só: a métrica de contagem é igual
para todos (segundos, minutos, horas, dias e assim por diante).
O que
muda são as impressões sobre o tempo, que variam de acordo com uma série de
fatores, como condições de trabalho, estilo de vida, gênero, idade e relações
sociais. Essas percepções vêm atraindo atenções de especialistas de diferentes
áreas, como sociologia, psicologia, neurociência, linguística, filosofia e
design.
“Com os
avanços tecnológicos recentes, nossa compreensão sobre como percebemos e
estimamos o tempo deve abrir novos horizontes”, anuncia o texto da segunda
edição da conferência internacional Timing Research Forum, no Instituto de
Neurobiologia da Universidad Nacional Autónoma do México, marcada para outubro
de 2019.
Quanto tempo perdemos
‘perdendo tempo’
Com o
ritmo acelerado das novas tecnologias digitais, algumas atividades cotidianas
podem ser vistas como “perda de tempo”.
Na cidade
de São Paulo, por exemplo, esperar o semáforo fechar para atravessar a rua pode
demorar até 17 minutos na zona leste (segundo registro do jornal Folha de
S.Paulo, em 2017) e pode levar 7 minutos para o trem chegar na linha prata do
metrô (de acordo com dados consultados pelo Nexo em 2016). Os paulistanos
passam 2 horas e 43 minutos por dia se deslocando na cidade, segundo estudo do
Ibope Inteligência de 2018 – isso corresponde a 36 dias ao ano perdidos no
trânsito.
Em abril
de 2011, cruzando diferentes levantamentos e a expectativa de vida de 71,3 anos
no Brasil, de acordo com o IBGE, a revista Mundo Estranho estimou que os
brasileiros passam 23 anos, 9 meses e 7 dias dormindo; 1 ano e 10 meses
estudando; 3 meses e 3 dias fazendo sexo; e 27 dias e 2 horas esperando o
elevador.
Em
fevereiro de 2017, o jornal britânico Daily Mail publicou uma reportagem que, a
partir de diferentes levantamentos e considerando a expectativa de vida de 80
anos no Reino Unido (cerca de 29 mil dias), indicou que os britânicos passam o
equivalente a 26 anos ininterruptos dormindo, 12 anos no trabalho, 3 anos nas
redes sociais, 2 anos de ressaca, 588 no trânsito e 117 dias fazendo sexo.
Segundo o
relatório “Digital in 2019”, realizado pela agência americana We Are Social e
divulgado em janeiro de 2019, os brasileiros passam 9 horas e 29 minutos por
dia na internet. A média global é de 6 horas e 42 minutos.
Mas o que
é perda de tempo? Há uma linha tênue entre desperdício de tempo e descanso de
verdade, que é facilmente confundido com distrações, comenta a jornalista Heidi
Stevens, em coluna de setembro de 2015 no jornal americano Chicago Tribune.
“Nós
somos inundados por estatísticas e histórias de como somos superocupados e
dormimos pouco. [...] Não é de se admirar, então, que procuremos – e
encontremos – maneiras de relaxar, frequentemente com ocupações que não
acrescentam muito às nossas vidas, como ver fotos do namorado de faculdade no
Facebook, jogar Candy Crush e assistir ‘Friends’ na Netflix. Mas isso é bom ou
ruim?”, questiona a autora, que defende a importância de descansar, o
“downtime” (tempo de inatividade, em português).
No livro
"How To Do Nothing", lançado em abril de 2019, a artista americana
Jenny Odell propõe dedicar atenção para como nos relacionamos com o mundo, com
os outros e nós mesmos. Segundo a autora, a maneira de conseguir essa mudança
de consciência é se dar o tempo de fazer nada, literalmente nada relacionado à
lógica de produção capitalista: desde observar pássaros até contemplar um
jardim, exemplifica a jornalista Marie Sollis, em resenha publicada no portal
Vice.
Diferenças
entre “perder”, “passar” ou “aproveitar” o tempo são subjetivas e variam
segundo a atual aceleração social do tempo – a leitura deste texto, por
exemplo, leva cerca de 17 minutos, o que pode ser considerado “muito” ou
“pouco”, “útil” ou “inútil”, a depender da perspectiva do leitor.
O que é aceleração social
do tempo
A
impressão de que o tempo está passando mais rápido, mais acelerado, pode ser
estudada nas humanidades a partir do conceito de “aceleração social”, que se
refere ao aumento de atividades realizadas em um período de tempo acompanhando
as transformações da sociedade. Trata-se, segundo o historiador Rodrigo Turin,
de uma “experiência histórica”.
Desde a
Revolução Industrial (1760-1860), na Inglaterra, e a Revolução Francesa (1789),
iniciou-se um sentimento de aceleração marcado pela busca do “progresso”. As
transformações tecnológicas, com o surgimento das fábricas, do telégrafo e do
trem, por exemplo, “encurtaram” as noções de tempo e espaço. As rupturas
políticas, com o fim da monarquia e a instauração da República, incutiram a
ideia de mudar a realidade radicalmente – o próprio conceito de revolução.
Segundo
Turin, atualmente estamos vivendo uma nova onda de aceleração, impulsionada
pelas tecnologias digitais e pelo sistema financeiro internacional. Essa
aceleração agora encontra expressão em palavras como “eficiência”,
“flexibilidade” e “produtividade”.
É por
isso que nós nos sentimos culpados pela sensação de “perder tempo”, por
exemplo, nas redes sociais. Para Turin, a internet pode ser um convite à
procrastinação e, ao mesmo tempo, um fator de pressão para produtividade.
Nas
grandes cidades, o ritmo acelerado inspirou a oferta de uma série de serviços
para “economizar tempo”, como aplicativos de entrega de “tudo” -–até uma
cápsula de café, como exemplifica a página do aplicativo Rappi, disponível no
Google Play. Assim, a aceleração abriu margem para da chamada “uberização”,
expressão do autor britânico-canadense Tom Slee para o fenômeno de precarização
das atuais condições de trabalho.
“A
relação entre aceleração do tempo e precarização do trabalho é algo cada vez
mais estrutural na sociedade. Estamos chegando ao limite fisiológico e
psicológico”, disse Turin ao Nexo.
Professor
da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e autor de
“Tessituras do Tempo” (Ed. Uerj), o historiador pesquisa o assunto no
pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Leia
abaixo a entrevista concedida ao Nexo por e-mail.
Estamos vivendo um tempo
mais ‘acelerado’?
RODRIGO TURIN Sim, estamos vivendo um
tempo mais acelerado. Mas é importante especificar a natureza dessa aceleração.
As sociedades modernas são essencialmente “aceleracionistas”, isto é, elas se
estruturam a partir da produção de um movimento de crescimento e de
diferenciação. É o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss chamou de
“sociedades quentes”, por oposição às “sociedades frias”, que se organizam de
modo a privilegiar a estabilidade.
A
aceleração, portanto, não é algo pontual na nossa sociedade, mas seu próprio
fundamento. Todas as nossas instituições e nossa linguagem espelham esse
imperativo da aceleração. Precisamos sempre estar em busca do “progresso”,
inovando, intensificando o crescimento econômico, tecnológico, cultural. Nas
últimas décadas, com as novas tecnologias, as mudanças nas formas de trabalho,
a hegemonia do capital financeiro global, esse imperativo aceleracionista
ganhou novas dimensões.
A
percepção de que a velocidade aumentou se deve ao modo como essas
transformações afetam nosso cotidiano. Com os aparelhos tecnológicos, temos
acesso a um maior número de informações em “tempo real”, isto é, no momento
mesmo em que estão acontecendo. Somos bombardeados constantemente com novas
notícias e produtos, sem que tenhamos o tempo necessário para processá-los. As
próprias tecnologias parecem já nascer obsoletas, sendo substituídas em intervalos
cada vez mais curtos. Torna-se difícil se manter sincronizado com a velocidade
dessas mudanças, por isso a sensação de que estamos sempre atrasados. Assim, a
aceleração social pode ser entendida como uma contração do presente, promovida
pelo aumento de atividades a serem realizadas dentro dos mesmos intervalos de
tempo que, no fundo, não se alteram (as 24 horas do dia, por exemplo).
A
aceleração estrutura nossa sociedade, mas afeta os indivíduos de formas
diferentes, dependendo da classe social, da idade, do gênero e da raça. A
aceleração tende a afetar mais as mulheres, por exemplo, do que os homens. Ao
entrar para o mercado de trabalho, as mulheres acabam acumulando outras
tarefas, como afazeres domésticos e cuidado dos filhos. Essa divisão de tarefas
segundo o gênero, construída historicamente, não foi apagada com a inclusão das
mulheres no mercado de trabalho. Por isso elas tendem a sentir mais os efeitos
da aceleração que os homens.
Por que muitas vezes temos
a sensação de estar ‘perdendo tempo’, por exemplo, na internet?
RODRIGO TURIN A sensação de estar
“perdendo tempo” se deve à incorporação de um princípio ético que vincula o
tempo à dimensão do ganho, da produtividade. O lema “tempo é dinheiro”
sintetiza essa ideia.
“Perder
tempo”, portanto, nos deixa com a sensação de culpa, como se estivéssemos
violando esse imperativo ético. Atualmente, com a intensificação do ritmo de
vida, cada vez menos há a divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer,
que possibilitava um espaço legítimo para o ócio, o “não fazer nada”.
As
demandas aceleradas do mercado de trabalho, associadas às novas tecnologias,
fazem com que tenhamos que estar sempre disponíveis, conectados. A internet tem
um papel fundamental nisso, pois é o meio principal no qual essa otimização do
tempo ocorre. Mas a internet tem igualmente um efeito dispersivo. Navegamos com
diferentes páginas abertas, um link nos leva a um novo vídeo, um amigo nos
encaminha uma nova reportagem, e assim vamos nos dispersando nesse espaço
virtual. Segundo a acadêmica alemã Aleida Assmann, o “presente” na internet
dura cerca de 5 minutos. Esse é o tempo médio, por exemplo, que um internauta
ocupa assistindo um vídeo do YouTube. Vídeos ou textos maiores do que isso
tendem a ser menos consumidos, pois a atenção do internauta já vai ser
direcionada a outro objeto.
A
procrastinação é, portanto, um dos modos de habitar a internet. Ao mesmo tempo
em que o meio virtual permite e mesmo nos cobra uma produção acelerada, ele
também nos dispersa com atividades aparentemente inúteis, que adiam ou atrasam
aquela produção. O indivíduo entra na internet para resolver uma tarefa
específica, mas quando percebe já está navegando em uma página aleatória
postada nas redes sociais.
A
internet acelera e dispersa, capturando constantemente nossa atenção para
diferentes coisas. E isso não é gratuito. Um dos objetivos principais das
grandes redes sociais, como o Facebook, é fazer com que os usuários passem a
maior quantidade de tempo possível em suas plataformas. Um dos mecanismos que
torna isso possível é justamente o fato de elas servirem como uma espécie de
“centro de redistribuição”, no qual as informações são atualizadas e repassadas
pelos próprios usuários. Nesse sentido, pode-se dizer que a procrastinação na
internet é um comportamento induzido e que não deixa de ter um caráter
produtivo – pelo menos para as plataformas da internet que oferecem os
produtos. Por outro lado, talvez possamos dizer também que a procrastinação
serve como uma forma de micro-resistência dos sujeitos, um modo de desobedecer
aos prazos, escapar do imperativo da aceleração e, enfim, perder tempo. Afinal,
há um limite psíquico para o imperativo da aceleração.
Também recorremos a
ferramentas digitais para ‘não perder tempo’, como aplicativos de entrega
rápida de diversos produtos. É um paradoxo?
RODRIGO TURIN Esses aplicativos
sintetizam o encontro entre a nova fase do capitalismo global e as tecnologias
digitais, implicando outras relações de trabalho e de consumo. Eles permitem a
criação de uma série de serviços direcionados, supostamente, a nos “poupar
tempo” – novamente, a metáfora do tempo como dinheiro.
Por um
lado, eles nos dão a impressão de uma maior facilidade e rapidez, nos liberando
tempo. Por outro, esse tempo liberado tende a ser “gasto” ou “investido” em
novas tarefas, intensificando ainda mais o ritmo de produção e de consumo. É um
ciclo de aceleração.
Cada vez
mais serão criadas diferentes demandas de serviços, que serão rapidamente
atendidas por novos prestadores. Esse ciclo de aceleração implica também uma
precarização do tempo, em diferentes sentidos. Primeiro, em função da
desregulamentação das relações de trabalho promovida por esses aplicativos.
Baseados na figura do indivíduo como empreendedor de si, eles não oferecem a
segurança das leis trabalhistas, como férias, por exemplo. Devido à
concorrência e ao valor baixo dos serviços, esses indivíduos precisam se ocupar
durante mais tempo com suas atividades.
Segundo,
do lado do consumo, a precarização se dá seja pela aceleração que produz
(tendemos a ocupar o tempo com novas atividades, metas e prazos), seja pelo
empobrecimento da relação que mantemos com as pessoas e com o espaço. Ao invés
de ir à rua, de percorrer o bairro, conhecendo o farmacêutico ou o garçom,
ficamos em casa ou no escritório, sendo atendidos por trabalhadores momentâneos
e precarizados. Pode parecer um detalhe, mas essa forma de distanciamento, ou
mesmo de alienação, frente aos outros e ao espaço, produz grandes efeitos
sociais, como a falta de empatia ou a perda de sentimento de coletividade.
Estamos mais ativos ou mais
preguiçosos?
RODRIGO TURIN Não acredito que estejamos
mais preguiçosos. Pelo contrário, estamos cada vez mais ativos.
Estudos
mostram que dormimos cada vez menos, viajamos cada vez mais, trabalhamos mais
horas. Mais do que preguiça, o que talvez caracterize a sociedade atual seja a
exaustão. Exaustão de trabalho, de imagens e informações, de tragédias que
parecem acontecer cada vez mais rapidamente sem que tenhamos tempo para
respirar.
Mas essa
exaustão atinge de modos diferentes os grupos sociais. A exaustão de um
motorista de ônibus no Rio de Janeiro, que faz bico como motorista de Uber nos
finais de semana, certamente não é a mesma exaustão do executivo que passa a
semana na ponte aérea, conectado com as variações do mercado financeiro global.
Eles têm condições e motivações diferentes.
De todo
modo, a relação entre aceleração do tempo e precarização do trabalho é algo
cada vez mais estrutural na sociedade. Estamos chegando ao limite fisiológico,
psicológico e climático. Alguns podem apostar na fase de um pós-humano habitado
por inteligências artificiais, capazes de acelerar indefinidamente. Não me
parece uma boa aposta. Eu diria que a questão fundamental hoje é tratar o tempo
como um tema central da nossa agenda política, questionando que tipo de tempo
queremos como sociedade. Qual o tempo de uma boa vida?
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Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/04/27/Por-que-estamos-mais-acelerados-segundo-este-historiador?utm_campaign=anexo&utm_source=anex
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