Ambrose Bierce, Euclides da Cunha, Ernest Hemingway, T. E. Lawrence, George Orwell, Kurt Vonnegut… O que esses e outros autores têm em comum é que suas experiências pessoais nos legaram obras fundamentais para a literatura de guerra. Em 1967, Joe Haldeman
estudava astronomia na Universidade de Maryland quando foi convocado
para servir o exército americano no Vietnã, retornando com a medalha
Coração Púrpura, outorgada aos soldados mortos ou feridos em combate.
Ele entrou para essa linhagem de escritores com Guerra Sem Fim (1975), livro que ganha nova tradução no Brasil, de Leonardo Castilhone, pela editora Aleph.
Em seu romance de estreia, War Year (1972), Haldeman faz um relato sóbrio e realista de sua vivência no Vietnã, mas é com Guerra Sem Fim
que o autor se esquiva das amarras autobiográficas para colocar o
leitor na pele de um soldado. Na trama, que começa na então futurista
década de 1990, William Mandella é um jovem estudante de física alistado
em um conflito interplanetário contra uma espécie alienígena
desconhecida. O foco narrativo, entretanto, não é o embate em si, mas o
impossível retorno à vida normal após a guerra.
O
manjado aforismo atribuído ao filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso
constata que ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio, uma vez
que tanto o sujeito quanto as águas estão em constante mutação. Guerra Sem Fim
leva esse raciocínio às últimas consequências: graças aos efeitos
relativísticos das viagens espaciais, quando Mandella é dispensado, dois
anos se passaram para ele, mas a Terra já havia percorrido 21 voltas em
torno do Sol. Como se reconectar com seu mundo natal superpovoado por
uma sociedade desfigurada? A violência era generalizada, o dinheiro era
contado em quilocalorias, empregos precários eram negociados com
traficantes de vagas, os sotaques já eram quase irreconhecíveis.
A
questão mais polêmica, porém, é a sexualidade – para refrear a
superpopulação, o governo teria encorajado as relações homoafetivas.
“Sei que deve ser difícil aceitar, mas a heterossexualidade é
considerada uma disfunção emocional, mas relativamente fácil de curar”,
informa um coronel a Mandella, que não aceita a relação lésbica de sua
mãe na primeira vez em que retorna à Terra. A edição brasileira do livro
traz um pequeno texto inédito de Haldeman, no qual ele faz um mea culpa
ao público LGBT: “Nunca foi minha intenção ser injusto com eles ou
desumanizá-los – mas foi exatamente o que eu fiz, mesmo que tivesse a
melhor das intenções. Como todo o mundo hétero faz, e fazia cinquenta
anos atrás.”
As condições distópicas da Terra fazem Mandella se
sentir tão deslocado que ele retorna ao exército espontaneamente, para
mais alguns anos de serviço – na perspectiva terráquea, alguns séculos.
Embora recriar o ambiente das trincheiras não seja sua intenção
principal, Haldeman transmite com maestria as contradições que sente um
pacifista obrigado a combater: “Senti um bolo se formando em minha
garganta e soube que todas as pavorosas fitas de treinamento e todas as
terríveis mortes acidentais em treinamento não haviam me preparado para
essa súbita realidade”, pensa Mandella antes de lutar pela primeira
vez.
Essa primeira batalha entre humanos e alienígenas, aliás,
rompe com padrões dos romances bélicos em um verdadeiro anticlímax – os
inimigos se mostram absolutamente inaptos. “Nós simplesmente os
arrebanhamos e matamos. Assim foi o primeiro encontro entre a humanidade
e a outra espécie (...) O que teria acontecido se tivéssemos nos
sentado e tentado nos comunicar?”
Para manter o moral dos
soldados, o exército implementa uma espécie de hipnose que os motiva a
exterminar seus inimigos, mas Mandella se questiona quanto à
responsabilidade pelas mortes que causa. “No século 20, estabeleceu-se,
para satisfação de todos, que ‘eu estava apenas seguindo ordens’ era uma
desculpa adequada para condutas desumanas… Mas o que fazer quando as
ordens vêm das profundezas do inconsciente, que nos governa como
marionetes?”
Em suas idas e vindas, ele apaixona-se por Marygay,
uma das poucas veteranas provenientes de sua época – e heterossexual,
algo raríssimo. “Éramos, um para o outro, a única ligação com o mundo
real, com a Terra dos anos 1980 e 90. Não com o mundo grotesco e
perverso que estávamos supostamente lutando para preservar.” No entanto,
lá pela metade do romance, após um breve e idílico intervalo em que
vivem felizes, a burocracia do exército os ludibria. O casal se vê
separado por muitos séculos graças à dilatação temporal, e a
despedida lacônica de Mandella e Marygay sintetiza o tom de Guerra Sem Fim: “É tão desprezível.” “É tão militar.”
Por telefone, Joe Haldeman falou ao Aliás sobre sua obra:
Como a sua experiência no Vietnã o motivou a escrever ‘Guerra Sem Fim’?
Todos os escritores que se tornam soldados, ou quase todos, acabam
escrevendo um livro sobre a guerra. Então foi isso que eu fiz. Primeiro,
recontando factualmente minha experiência, War Year. E, então,
eu o reescrevi com um verniz de ficção científica, que era mais o
estilo de livro que eu gostaria de fazer. E esse foi Guerra Sem Fim.
Alguma guerra um dia acaba para quem esteve envolvido nela?
Não acredito que termine por completo. Eu não sei se existe alguém tão
equilibrado a esse ponto… Acho que você passa sua vida inteira meio que
reinterpretando e se recuperando dessa experiência.
De que forma você encara os avanços tecnológicos na área militar hoje?
Acho que são diferenças de gradação, não de essência. Desde a 1.ª
Guerra Mundial, os avanços permitem matar pessoas a distâncias cada vez
maiores sem se envolver pessoalmente com elas. Mas agora é estranhamente
impessoal, porque você pode estar sentado nos Estados Unidos em frente a
um computador, pressiona um botão, mata alguém do outro lado do mundo, e
então vai para casa jantar com sua mulher e sua família. É muito
esquisito, mas é também o que a guerra se tornou hoje em dia.
É
curioso que, a certa altura de ‘Guerra Sem Fim’, a homossexualidade
seja encorajada pelo governo e os heterossexuais sejam discriminados.
Hoje, há quem realmente acredite que estamos vivendo sob essa ‘ditadura
gay’. Como você enxerga essa questão LGBT atualmente?
É
uma reviravolta interessante. Eu propus essa sátira completamente
descabida e impossível com a minha perspectiva dos anos 1970. Agora,
imagino que existam pessoas loucas o suficiente para sugerir que isso
seja uma realidade prática. Eu discordo, é claro. Acredito que a
sexualidade é mais complicada do que isso. Por exemplo, não há nada
inerentemente masculino em homens heterossexuais ou feminino em
homossexuais. São questões completamente separadas.
Quão diferentes estão suas opiniões desde que você escreveu ‘Guerra Sem Fim’?
Bem, eu estou consideravelmente mais velho. Estou quase 50 anos mais velho do que quando estava escrevendo a maior parte de Guerra Sem Fim.
Minhas ideias básicas não mudaram tanto, eu suponho. Eu era um
pacifista antes de ser enviado para o Vietnã e, eu espero, ainda sou,
embora minha postura tenha ficado atenuada e mitigada pelo meio século
de história ao qual eu assisti desde então. Eu ainda acredito que a
guerra seja uma insanidade, mas eu sou obrigado a admitir que venho
observando o governo continuar com ela, agora por 75 anos, e não
parecemos estar nem um pouco mais próximos de soluções pacíficas do que
estávamos lá atrás.
Qual será a função da ficção científica nos próximos anos?
Uma coisa que parece clara é que a ficção científica está sendo tão
absorvida pela literatura em geral que a sua função social foi se
diluindo por toda a literatura. Busca por vida alienígena, conflitos de
nível mundial intermináveis e coisas assim povoam o noticiário de hoje
em dia, não são mais parte apenas da ficção. Não sei se isso é bom ou
ruim, mas eu gostava mais de quando esses temas estavam apenas nas
revistas pulp.
Quais são suas principais preocupações sobre o futuro da humanidade em nosso mundo cada vez mais tecnológico?
É difícil resumir em apenas algumas poucas palavras, mas minha
principal preocupação sobre o futuro da humanidade é se a humanidade
terá algum futuro. E o avanço tecnológico não está seguindo uma boa
direção. Certamente, não há grandes avanços na filosofia e na ciência
política, pelo menos não que eu saiba. Nós parecemos estar mais perto da
meia-noite do Relógio do Juízo Final do que estivemos em qualquer outra
época de minha vida, exceto pela era Kennedy, quando sentíamos que
poderíamos entrar em um confronto nuclear a qualquer momento.
Uma
das questões mais interessantes do livro é como o senhor usa a
dilatação temporal como metáfora de um veterano deslocado no país para o
qual ele volta após a guerra.
Bem, isso é parte do que
eu estava tentando transmitir. Eu fico imaginando se uma pessoa em sã
consciência é capaz de se recuperar da experiência de assassinar alguém,
mesmo que essa morte tenha sido ordenada por um superior.
Você foi influenciado de alguma forma por ‘Tropas Estelares’, de Robert A. Heinlein?
Eu não diria isso. De fato, eu li Tropas Estelares, eu já era um fã de ficção científica na época, mas se houve um livro que me influenciou de verdade foi The Red Badge of Courage (livro de 1895 escrito por Stephen Crane sobre a Guerra Civil Americana). Eu fui impactado por vários romances sci-fi, e reli Tropas Estelares
enquanto estava no exército. Era uma extrapolação razoável. Mais tarde,
o filme foi lançado, e tinha uma história bem diferente da do romance.
Foi um trabalho bastante repreensível, eu diria.
De que modo subgênero militar da ficção científica ainda é relevante nos dias de hoje?
É uma excelente área de investigação ficcional e sempre será. Na
verdade, é natural que seja, porque a sci-fi é uma ficção filosófica, e o
problema da guerra e da agressão é central para a filosofia.
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Reportagem por André Cáceres, O Estado de S.Paulo 30 de março de 2019 Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,minha-preocupacao-sobre-o-futuro-da-humanidade-e-se-a-humanidade-tera-um-futuro-diz-joe-haldeman,70002771757
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