Notre Dame: transcendência
imanente
Michel Maffesoli*
O fogo devorava a Notre-Dame de Paris naquela noite fatal! Ao redor, pouco a
pouco, uma enorme multidão se reuniu. Desamparado, mas como na comunhão do
destino com um espírito de pedra incandescente, juntava-se um povo silencioso.
De repente, todos cantavam ou rezavam a "Ave Maria". Na praça Saint
Michel, no Quai d'Orleans, na ponte Saint-Louis, por tudo ali, a emoção foi
sublimada com uma canção suave, uma canção inofensiva, mas que soava como o eco
de uma alma coletiva, aquela que, desde a Idade Média Idade, envolve essa figura
protetora da cidade.
Muitos celebraram, como Victor Hugo, "Notre-Dame de Paris" (1831).
Todos observaram que seus sinos, seu badalo, especialmente, sacodem os
espíritos mais duros e, em certos dias, incendeiam a cidade inteira. O que
chama a atenção é o clima de piedade que prevalece ao redor da catedral. Algo
que remetia a um pensamento meditativo. Vem à mente a observação de Heidegger,
que considerava o "pensamento como um exercício de piedade". Piedade
característica daqueles que são devotos. A viga é, também, a peça de madeira
reta que dá estabilidade e solidez. Notre-Dame é como uma estaca presa no chão
a servir de base para todos estarem juntos.
Enquanto isso, a mídia mainstream lamentava de modo infame o incêndio,
destacando, antes de tudo, que ele colocava em risco a atração turística
exercida por essa catedral, conhecida mundialmente, que arrasta 14 milhões de
turistas por ano. Notre-Dame era situada no mesmo nível da Disney World.
Simplificação utilitarista reveladora de uma visão muito curta, incapaz de
captar a força do imaginário, causa e efeito de tal monumento. Os construtores
das catedrais eram movidos por outro objetivo: a encarnação do sagrado.
A emoção coletiva experimentada ao ver a catedral queimar nada mais é do que
a persistência indestrutível daquilo que Joseph de Maistre chamou de
"resíduo divino". Resíduo como um substrato sólido de qualquer
sociedade, ou mesmo de qualquer cultura. Resíduo que, como a viga da piedade,
está certamente enraizado num determinado lugar, mas não deixa de se irradiar
de maneira ampla. Foi o suficiente para se ouvir, na multidão compacta, os
murmúrios pronunciados em nossas línguas latinas, para entender a
"unidiversidade" da qual a Notre-Dame de Paris é o símbolo. Ela
recolhe o que está espalhado. É o protótipo do enraizamento dinâmico, aquele da
"troca", em sentido amplo, que era pré-moderna e que certamente será
pós-moderna.
“Troca" que é encontrada no romance de Victor Hugo, onde Quasimodo,
Esmeralda, o cigano e o belo Phoebus Châteauperce misturam-se numa sinfonia
barroca na qual falar em várias línguas sublinha a singularidade fundamental em
torno de um princípio comum. A esse respeito, transparece a nostalgia de outro
lugar, a do homem do desejo, sempre extrapolada pela transcendência. Isso é o
que orações e músicas espontaneamente transmitem. As lágrimas, que caíam sem
pudor, traduziam uma transcendência imanente, reconfortante, confortando um
povo reunido.
Durkheim falou de "ritos piaculares": ritos de lágrimas. Momentos
em que a emoção coletiva tem uma função carismática, isto é, uma função de
união, de comunhão. Renascimento de uma ligação que o individualismo moderno
não conseguiu romper e que, às vezes, recupera força e vigor inegáveis. A mídia
fútil jogava conversa fora sobre a atração turística da catedral, o que está
longe de ser essencial. Além ou abaixo do turismo, a verdadeira atração é
espiritual ou mesmo sacramental. Isto é, a imagem do sacramento, que torna
visível uma força invisível. No caso, a necessidade de um além do confinamento egoísta
próprio da modernidade. Dialogia do visível e do invisível, ignorando a
mercantilização dominante.
Assim, além da destruição de uma joia do patrimônio da humanidade, o medo em
rostos assustados era o de ver desaparecer um verdadeiro "matrimônio"
coletivo: um lugar servindo como uma matriz espiritual para a vida em
sociedade.
Mas, assim como numa carreira humana, é necessário, nas palavras de Santo Agostinho, "In te ipsum redi", retornar a si mesmo para renascer para um ser mais. Tudo é símbolo. Na nave, a cruz luminosa no altar central continuava brilhando. Talvez esse fogo deva ser entendido como "catabase". A descida ao inferno é o sinal de uma ressurreição por vir. Isto é o que sentimos na piedade coletiva em torno de Notre-Dame de Paris em chamas!
* Professor Emérito da Sorbonne, membro do Instituto Universitário da França. Último livro publicado no Brasil: “O tesouro escondido: carta aberta aos franco-maçons e a outros” (Sulina, 2019).
*
Quem eram eles?
Hélène Strohl*
Quem eram aquelas pessoas que se encontravam nas pontes ao redor da catedral
e observavam, sem uma palavra, sem uma única exclamação, as nuvens de vapor
aspergidas sobre as chamas? Quem eram aquelas pessoas ali reunidas, sem
impaciência, sem reclamações, sem acusações, como se apenas velassem junto ao
leito de um doente grave, esperando que a sorte decidisse pela cura ou pelo o
fim?
Ninguém empurrava os outros para
ver melhor, ninguém tentava posicionar-se à frente das câmeras, ninguém tentava
ver as celebridades do momento. Havia, isso sim, uma expectativa fervorosa,
intercalada com algumas músicas, discreta. Foi através do colapso silencioso
que a catedral expressou todo o seu poder. Esse poder que superou todas as
qualidades grandiloquentes que os comentadores sempre destacam quando falam da
Notre-Dame: símbolo de Paris, símbolo da França, das nossas raízes, da
cristandade que nos moldou.
Claro que ela será reconstruída.
As autoridades não tardaram em prometer e em repetir: "Vamos reconstruí-la".
A Notre-Dame de Paris, cuja estrutura resistiu às chamas, reaparecerá nos
cartões postais. Paris não morreu na noite do incêndio. Mas um monumento é
também pedra e madeira e nos consola saber que um novo pináculo central, bem
ancorado, desta vez, em uma armação de metal, será erguida no lugar de vigas e
pedras calcinadas. Devemos, porém, lamentar que os cheiros e sons de uma
floresta milenar tenham desaparecido para sempre, ecoando o fervor do tempo das
catedrais. Há algo paradoxal no destino de Notre-Dame. Ela resistiu aos
assaltos de seus inimigos mais amargos, iconoclastas e revolucionários. Durante
as guerras mundiais, foi protegida da destruição pelos inimigos da França. E
agora quase pereceu por consequência imprevisíveis do zelo museográfico de
conservação de nosso tempo. Doença nosocomial! Talvez o fogo tenha sido uma
revolta da catedral que já não suportava os cuidados dos serviços do
patrimônio! Talvez não seja apenas uma coincidência que ela tenha perdido a sua
seta no começo desta sagrada Semana Santa, quando estava esperando pelos
adoradores da coroa de espinhos. Talvez Notre-Dame não acreditasse mais no
fervor dos fiéis que a visitavam entre duas selfies nas pontes do Sena. Não é
uma forma de blasfêmia olhar para essa relíquia milenar com os olhos da fria
razão crítica? Entretanto, na noite do incêndio, foram os fiéis que apareceram
como vizinhos silenciosos para compartilhar a dor das pedras e da madeira.
Vieram como numa espécie de vigília fúnebre, num rito coletivo capaz de
permitir, apesar de tudo, que a alma de um povo sobreviva. Estamos, portanto,
inscrevendo-nos na longa tradição de acontecimentos, dos adventos, dessas
catástrofes das quais não podemos acusar nenhum responsável, um desses
sobressaltos do destino humano.
• Escritora, ensaísta
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Caderno de Sábado. Ed. Impressa – 20 de Abril
de 2019
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