Fernando Abrucio*
O passado
tem um poder fascinante sobre os seres humanos, tanto no plano individual como
no mundo público. Mas há duas maneiras de se usar a história como referência de
nossas ações. Uma é se prender nos acontecimentos passados e travar uma batalha
sem fim com eles, nunca se libertando por completo do que já ocorreu. A outra é
utilizando a experiência pregressa como um farol para iluminar as decisões no
presente e no futuro. A diferença entre tais visões está em quanto aprendemos
com os que vieram antes de nós.
O
presidente Jair Bolsonaro construiu uma frase de efeito em sua viagem a Israel:
"Aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro". A
sabedoria contida nessa afirmação não revela, de imediato, qual é a concepção
de história que orienta nosso atual governante. Isto é, se ele prefere se
digladiar com os fatos passados, ou se opta por uma visão na qual se deve aprender
com o passado para melhorar as escolhas do futuro.
Tomando
como base as opiniões e decisões vindas do presidente nestes três meses de
governo, constata-se que Bolsonaro pouco tem aprendido com a história. Ele
insiste mais num ajuste de contas com o passado, seja para reverenciar o que
foi feito em tempos pretéritos, como aparece em sua visão sobre o regime
militar, seja para se colocar como um ponto de ruptura completa, de modo que é
preciso criar algo novo que seja o inverso da "velha política" da
Nova República.
O
governante que aprende com o passado evita os erros das gestões anteriores e se
inspira naquilo que é possível de ser replicado ou ser tomado como um ponto de
partida. Dois exemplos mostram que Bolsonaro está seguindo outra linha, mais
preocupado em defender posições derivadas de sua peculiar interpretação do que
foi a história e menos em utilizar os ensinamentos do tempo como instrumento
para produzir uma trilha diferente. Trata-se dos posicionamentos referentes ao
presidencialismo de coalizão e às ditaduras do passado, no Brasil e fora dele.
A visão
bolsonarista sobre o presidencialismo de coalizão se alimenta de uma
interpretação da história. Olhando para o passado mais recente, Bolsonaro tem
uma opinião segundo a qual tal modelo de governabilidade se baseava em
negociatas entre o Executivo e o Legislativo, gerando processos imensos de
corrupção. No fundo, ao se ancorar nesta ideia, o presidente está se colocando
de forma contrária aos governantes anteriores e seus partidos, PSDB e PT. É a
lógica da competição eleitoral que ainda alimenta a visão de mundo de alguém
que agora precisa governar o país.
Obviamente
que houve corrupção nos últimos governos e que ela, em parte, se originou da
relação do Poder Executivo com membros do Legislativo, inclusive para aprovar
certas matérias no Congresso Nacional. O problema está em interpretar que o
modelo presidencialista brasileiro, vinculado à combinação de
multipartidarismo, federalismo e presidente sem maioria congressual derivada da
eleição, sempre levará a negociatas e roubalheiras.
Por meio
do presidencialismo de coalizão, foi possível, nos últimos 30 anos, manter o
jogo democrático, algo raro e pouco duradouro na trajetória política do Brasil.
Utilizando esse modelo, o país fez várias reformas - quase cem emendas
constitucionais - e teve avanços significativos nos campos econômico, político
e social. Presidentes que tentaram evitar ou passar por cima dos congressistas
e, especialmente, dos partidos políticos, não foram bem-sucedidos em suas
políticas públicas e, ao fim e ao cabo, foram depostos. Essa é a maior lição da
história que Bolsonaro deveria aprender.
Isso quer
dizer que o presidente deve simplesmente dar todos os cargos e verbas que os
congressistas pedirem? Essa também não é a resposta que pode ser retirada do
aprendizado histórico. Na verdade, esse varejo só pode ser bem utilizado, com
os cuidados necessários, para se garantir simultaneamente a governabilidade e
padrões éticos, se for feito um pacto partidário prévio. Erram os governos que
não começam pelo atacado, isto é, pela criação de alianças partidárias que
alicercem a participação dos congressistas no Poder Executivo.
O mensalão nasceu no primeiro governo Lula porque o PT se recusou a fazer um pacto partidário com o maior partido congressual à sua disposição, que era o PMDB, e preferiu fazer negociações miúdas com os pequenos partidos da centro-direita. O petismo acreditava que bastava dar alguns pequenos nacos de poder a essas legendas invertebradas e, assim, manteria o controle sobre todo o processo legislativo sem perder sua hegemonia na condução da governabilidade. Com base num discurso purista e de superioridade sobre o restante do sistema político, esse hegemonismo petista foi a porta para a crise política e, ao contrário do que imaginavam, para a corrupção.
O mensalão nasceu no primeiro governo Lula porque o PT se recusou a fazer um pacto partidário com o maior partido congressual à sua disposição, que era o PMDB, e preferiu fazer negociações miúdas com os pequenos partidos da centro-direita. O petismo acreditava que bastava dar alguns pequenos nacos de poder a essas legendas invertebradas e, assim, manteria o controle sobre todo o processo legislativo sem perder sua hegemonia na condução da governabilidade. Com base num discurso purista e de superioridade sobre o restante do sistema político, esse hegemonismo petista foi a porta para a crise política e, ao contrário do que imaginavam, para a corrupção.
O discurso
bolsonarista nas redes sociais lembra os tempos iniciais do petismo no plano
federal. De um lado, como no passado petista, a parte mais radical do
bolsonarismo acredita que vai substituir o antigo regime por meio da pressão
popular - hoje baseada nas redes sociais. Para aprovar emendas constitucionais
e outras legislações, bem como para evitar a pressão congressual sobre o
presidente, esse caminho é um desastre. Mas, por outro lado, há outra parcela
de bolsonaristas, mais localizados nos postos-chave do governo, cuja concepção
de governabilidade passa pela conversa individualizada com os parlamentares e
com a entrega de pequenas benesses, sem dividir efetivamente o poder e as
responsabilidades que dele derivam.
A combinação
da deslegitimação do sistema político com um jogo pouco coordenado de
distribuição de prebendas aos parlamentares, inclusive aos do PSL, não
garantirá a formação de uma maioria governista sólida. Será sempre um modelo
baseado na desconfiança mútua entre Executivo e Legislativo. Esse era também o
clima, em medidas variadas, nos governos de Jânio, Collor e Dilma, ensina a
história, e os resultados finais são conhecidos. Ou então haverá algum
revisionismo histórico que diga que nesses casos a culpa do fracasso não foi do
presidente?
Se o presidente Bolsonaro quer instalar o novo na política brasileira, o que quer que seja isso, deve seguir uma máxima produzida pelo aprendizado histórico: somente é possível fazer mudanças de larga escala e de longo prazo, dentro de um regime democrático, por meio de alianças partidárias estáveis, nas quais haja compartilhamento de poder e responsabilidades. Para fazer isso, é preciso abandonar o comportamento messiânico e antipolítico, segundo o qual o presidente e seus seguidores são os únicos donos da verdade. Os congressistas são tão legítimos perante o voto do eleitor quanto Bolsonaro, e ele não tem maioria congressual para dar as cartas do jogo sem precisar de parceiros.
A história revela, ademais, que a eleição municipal de meio de mandato começa a afetar os parlamentares no fim do segundo semestre do primeiro ano de governo. Esse é o prazo para se aprovar reformas estruturais. Depois disso, tudo ficará mais difícil. O fato é que, se aprendesse com o passado, Bolsonaro estaria agora fazendo uma reforma ministerial com vistas não só a aprovar a reforma da Previdência, mas para criar uma aliança partidária mais estável, pelo menos de médio prazo, e voltada para o pleito local de 2020. Mas, no momento, o bolsonarismo está mais preocupado em olhar para a história para resgatar valores tradicionais e encontrar quem são seus inimigos eternos.
Se o presidente Bolsonaro quer instalar o novo na política brasileira, o que quer que seja isso, deve seguir uma máxima produzida pelo aprendizado histórico: somente é possível fazer mudanças de larga escala e de longo prazo, dentro de um regime democrático, por meio de alianças partidárias estáveis, nas quais haja compartilhamento de poder e responsabilidades. Para fazer isso, é preciso abandonar o comportamento messiânico e antipolítico, segundo o qual o presidente e seus seguidores são os únicos donos da verdade. Os congressistas são tão legítimos perante o voto do eleitor quanto Bolsonaro, e ele não tem maioria congressual para dar as cartas do jogo sem precisar de parceiros.
A história revela, ademais, que a eleição municipal de meio de mandato começa a afetar os parlamentares no fim do segundo semestre do primeiro ano de governo. Esse é o prazo para se aprovar reformas estruturais. Depois disso, tudo ficará mais difícil. O fato é que, se aprendesse com o passado, Bolsonaro estaria agora fazendo uma reforma ministerial com vistas não só a aprovar a reforma da Previdência, mas para criar uma aliança partidária mais estável, pelo menos de médio prazo, e voltada para o pleito local de 2020. Mas, no momento, o bolsonarismo está mais preocupado em olhar para a história para resgatar valores tradicionais e encontrar quem são seus inimigos eternos.
E aqui
entra o segundo exemplo da dificuldade de Bolsonaro em lidar com o passado:
suas ações e frases em relação a regimes autoritários no Brasil e no exterior.
Sua insistência em dizer que não houve uma ditadura em nosso país a partir de
1964 luta contra os fatos: os presidentes não eram eleitos pelo povo, muitos políticos
e cidadãos perderam seus direitos políticos, a sociedade foi calada pela
censura, pessoas foram torturadas, morreram e desapareceram. Se o bolsonarismo
não achar que isso é um modelo ditatorial, vai ter que dizer que há democracia
em Cuba e na Coreia do Norte.
O que está por trás do raciocínio bolsonarista fica mais claro quando é dito que o nazismo foi um fenômeno político de esquerda. Tal versão contraria os fatos - os comunistas foram os primeiros presos por Hitler, que os odiava - e a visão dos dois principais interessados em elucidar o Holocausto, que são Alemanha e Israel, países onde majoritariamente e de forma oficial se diz que os nazistas eram de extrema direita. Essa interpretação tresloucada tem como propósito comprovar que a esquerda está vinculada à maior tragédia do século XX, e desse modo continuar a guerra política para aniquilar o inimigo.
No fundo, Bolsonaro ainda não aprendeu o que é democracia, ou pior, tem uma visão peculiar dela, na qual só são admitidos os que pensam como ele. Trata-se de uma doutrina que não aceita a pluralidade necessária para a vida democrática. O bolsonarismo está dizendo que não se pode aceitar a velha política e só ele representa o novo. Não há espaço para o diálogo e o convencimento. Ao seguir essa trilha, Bolsonaro reinventa o passado para interditar o futuro pensado como um feixe de possibilidades.
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* Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP, escreve neste espaço quinzenalmente
O que está por trás do raciocínio bolsonarista fica mais claro quando é dito que o nazismo foi um fenômeno político de esquerda. Tal versão contraria os fatos - os comunistas foram os primeiros presos por Hitler, que os odiava - e a visão dos dois principais interessados em elucidar o Holocausto, que são Alemanha e Israel, países onde majoritariamente e de forma oficial se diz que os nazistas eram de extrema direita. Essa interpretação tresloucada tem como propósito comprovar que a esquerda está vinculada à maior tragédia do século XX, e desse modo continuar a guerra política para aniquilar o inimigo.
No fundo, Bolsonaro ainda não aprendeu o que é democracia, ou pior, tem uma visão peculiar dela, na qual só são admitidos os que pensam como ele. Trata-se de uma doutrina que não aceita a pluralidade necessária para a vida democrática. O bolsonarismo está dizendo que não se pode aceitar a velha política e só ele representa o novo. Não há espaço para o diálogo e o convencimento. Ao seguir essa trilha, Bolsonaro reinventa o passado para interditar o futuro pensado como um feixe de possibilidades.
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* Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail:
fabrucio@gmail.com
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