José Eli da Veiga*
Duas
novas ciências têm a ousadíssima proposta de romper com inclinação comum às
ciências naturais e sociais de só olharem para o próprio umbigo. Querem construir
pontes que superem a histórica cisão entre humanidades e ciências. Mais:
pretendem integrar os conhecimentos necessários ao estudo conjunto e simultâneo
das quatro dinâmicas históricas da Terra - do planeta, da vida, da natureza
humana e da civilização.
A mais
consolidada é a "Ciência do Sistema Terra", que tomou corpo em meados
dos anos 1980 por clarividente iniciativa da Nasa. Até 2015, avançou muito, graças
ao trabalho estratégico dos pesquisadores do Programa Internacional
Geosfera-Biosfera (IGBP).
Há quem
exagere ao afirmar que tal ciência já teria emergido no início dos anos 1970,
com a famosa "Hipótese Gaia" de James Lovelock e Lynn Margulis. Ou
exorbite recuando até mesmo à lenta virada paradigmática que acabou por levar a
velha Geologia a admitir a teoria dos movimentos globais da litosfera, ou "tectônica
de placas". Mas são visões que menosprezam a envergadura do desafio
transdisciplinar, que só começou a ser realmente enfrentado em 1986, com o
relatório da Nasa intitulado "Earth System Science".
A
segunda, bem mais audaciosa, chama-se "Ciência da Sustentabilidade".
Entre 2001 e 2011, ela só engatinhou nas páginas do periódico "PNAS"
(Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of
America). A partir de 2012, ganhou forte impulso com o surgimento da
organização global "Future Earth" (http://www.futureearth.org/ ), em substituição
à duvidosa "ESSP" (Earth System Science Partnership). E, em janeiro
de 2018, foi autenticada pela primeira edição mensal da super-revista Nature
Sustainability.
As duas
novas ciências querem revelar as propriedades que emergem da interação entre as
dimensões vivas e não vivas da História da Terra, como diz, quase ipsis
litteris, o
fértil jornalista científico Reinaldo José Lopes. Desnecessário dizer que o maior complicador advém da insigne importância conquistada por uma única espécie - a do Homo sapiens-demens-ludicus - e pelas poucas civilizações que foi capaz de fazer vingar.
fértil jornalista científico Reinaldo José Lopes. Desnecessário dizer que o maior complicador advém da insigne importância conquistada por uma única espécie - a do Homo sapiens-demens-ludicus - e pelas poucas civilizações que foi capaz de fazer vingar.
Outra das
maiores dificuldades congênitas de tão recentes ciências está na confusão entre
o multidisciplinar e o inter/transdisciplinar. O prefixo multi (muitas) não
implica qualquer pretensão de superar fronteiras disciplinares. Grupos de
pesquisa multidisciplinares podem juntar experts em diversas áreas com a missão
de apenas acrescentar conhecimentos disciplinares a serem justapostos. Já os
prefixos inter e trans (entre e através), bem bem similares, denotam
determinação de se aprofundar metodologias e modelagens que possam ir bem além
das indispensáveis subdivisões disciplinares.
No
entanto, em vez de avançarem rumo a uma "inteligência da
complexidade", as duas novas ciências têm sido vítimas da fortíssima
inércia teórica do "pensamento sistêmico". Reconhecem que os sistemas
com os quais lidam são complexos, mas mantêm-se prisioneiras da "teoria
geral dos sistemas", lançada em 1950 por Ludwig Von Bertalanffy. A rigor,
não assumiram a crucial diferença com pensamento complexo, antecipado por
Warren Weaver desde 1948 e desenvolvido, principalmente por William Ross Ashby,
já a partir de 1956.
Um dos
principais expoentes da primeira - a "Ciência do Sistema Terra" - é o
físico teórico alemão Hans Joachim Schellnhuber. Ele chegou a anunciar, em
dezembro de 1999, nas páginas da revista Nature, uma "nova revolução
copernicana". Como uma espécie de "reversão da primeira, pois ela nos
permitirá olhar para nosso planeta e perceber uma entidade única, complexa,
dissipativa e dinâmica, longe do equilíbrio termodinâmico: o Sistema
Terra".
Passados
20 anos, só se pode entender tamanho otimismo ao lembrar que a primeira
revolução demandou cerca de um século, de Copérnico (1473-1543) a Galileu
(1564-1642), passando por Kepler (1571-1630). Se tal prazo se repetisse, ainda
disporíamos de seis a oito décadas para que a Ciência da Sustentabilidade
viesse a absorver a Ciência do Sistema Terra, transitando da labiríntica teoria
dos sistemas para a da complexidade.
Não passa
de promessa, por enquanto, uma palpável redução da distância que tem separado
aquilo que - em célebre conferência de Cambridge, no dia 7 de maio de 1959 - o
cientista e ficcionista C. P. Snow considerou serem "Duas Culturas"
(Edusp, 1ªed.: 1995). Ainda são incipientes as iniciativas que realmente
compensam o reducionismo imposto pela sempre crescente - e incontornável -
fragmentação do conhecimento em novas disciplinas.
O leitor
interessado em boa avaliação do problema fica desde já convidado para participação
(presencial ou on-line) em mais uma tarde de conversa IEA/USP, desta feita
sobre "Ciências e Humanidades Sessenta Anos Depois". No exato
sexagésimo aniversário da conferência de Snow - terça-feira 7 de maio de 2019 -
serão protagonistas os professores sêniores Sonia Barros de Oliveira
(Geociências/USP) e Ricardo Abramovay (Programa de Ciência Ambiental do
IEE/USP): http//:www.iea.usp.br/eventos/ciencias-e-humanidades
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* José Eli
da Veiga é professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da
Universidade de São Paulo) e autor de O Antropoceno e a Ciência do Sistema
Terra (Editora 34, 2019). Mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br .
Fonte: https://www.valor.com.br/opiniao/6223381/cisao-das-duas-culturas?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter_manha 24/04/2019
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