sexta-feira, 12 de abril de 2019

BORGES, BOLAÑO E OS CAMINHOS DA LITERATURA POLÍTICA


Michel Laub*
 

Na época em que começou a escrever "História Universal da Infâmia", reunião de falsas biografias de piratas, assassinos e outras figuras aventurescas que viraria um livro de contos em 1935, Jorge Luis Borges (1899-1986) publicava sátiras sobre figuras do mundo das letras de Buenos Aires no jornal "Crítica". Os dois registros - a lenda de ação e o humor intelectualizado - parecem diversos, mas podem ser vistos como complementares de um mesmo projeto.

Como é fácil perceber na ficção posterior do autor argentino, há muito de irônico na justaposição frequente de ambos: a mescla entre o fascínio com a guerra, o crime e os duelos de um universo masculino ancestral e um certo enfado com a erudição de narradores (ou personagens) que nunca viverão algo tão solene - antes, estão presos a um jogo de simulacros onde a paródia livresca é o verdadeiro cenário.

O grande tema de Borges, portanto, acaba sendo o das relações entre arte e vida. Algo semelhante dá para dizer de Roberto Bolaño (1953-2003), autor chileno que se viu alçado a estrela da ficção latino-americana e mundial só depois de sua morte. A diferença é que o sentido político da abordagem em Borges só aparecia em negativo, digamos. Seus textos foram acusados de esteticismo e alienação, como se refletissem o apoio velado (ou nem tanto) que deu a dois períodos ditatoriais de seu país (1966-1973 e 1976-1981) sob a justificativa do antiperonismo.

Já Bolaño nunca foi ambíguo nessa área. Numa entrevista a Javier Campos em 2002, ele se diz "contra a poesia dirigida, a poesia do povo, a poesia da palavra de ordem, a poesia do partido". Mas acrescenta, definindo o tipo de engajamento que marcaria a sua obra: "Acredito que de alguma forma a beleza, a beleza inútil sempre está - e essa é precisamente sua soberania, sua elegância extrema - ao lado dos despossuídos, dos enfermos, dos perdedores".

Em vários aspectos, é um engajamento típico de certa esquerda latino-americana dos anos 1970/1980, já desencantada com a herança stalinista, mas jamais conivente com o autoritarismo e as atrocidades que marcam o continente. A política é incontornável e aparece em tudo o que Bolaño escreveu: em "Noturno no Chile" (2000), um fantasmagórico narrador circular relembra o dia em que deu uma aula sobre marxismo para Augusto Pinochet; em "Os Detetives Selvagens" (1998), dois poetas vagam pelo mundo como encarnações de uma derrota histórica e geracional; no póstumo "2666" (2004), há uma relação entre o horror de episódios verdadeiros - a Segunda Guerra, o assassinato de centenas de mulheres numa cidade mexicana - e o modo como isso é elaborado nas páginas dos livros, inclusive aquelas que lemos.

"A Literatura Nazista na América" (1996), que sai agora no Brasil pela Companhia das Letras (237 páginas, tradução de Rosa Freire d'Aguiar), pode ser analisado sob a ótica dessa relação delicada entre o artista e a realidade que lhe coube viver.

Terceiro título publicado pelo autor e primeiro a chamar atenção da crítica internacional, traz elementos borgianos de resto comuns na obra bolañesca - o ensaísmo ficcional, as piadas de verdadeiro/falso, a aparência neutra da linguagem que abre frestas para imagens poéticas agudas. Alguns de seus personagens, inclusive, parecem tirados de um conto do argentino. Caso de um sujeito dedicado a refutar parte do cânone filosófico ocidental em longuíssimos tratados que, escritos no intervalo de internações em hospícios, têm capítulos como "O Cogito pré-Reflexivo e o Ser do Percipere" e "O Ser do Percipi".

A própria forma do livro, feita de falsos verbetes enciclopédicos, é uma homenagem evidente: o modelo de "A Literatura Nazista..." é "História Universal da Infâmia" (que é devedor das "Vidas Imaginárias", de Marcel Schwob). De novo, porém, existe uma diferença de objetivos. Em Borges há um tributo carinhoso, feito de uma grandiloquência admirada, aos excessos biográficos de malfeitores: "Sabemos que desaprovou com fervor a captura de prisioneiros e que uma vez (só com a coronha do fuzil) impediu essa prática deplorável", diz-se de um certo Monk Eastman, "provedor de iniquidades" que matava, esfaqueava e arrancava orelhas de inimigos. "Sabemos que conseguiu fugir do hospital para voltar às trincheiras. Sabemos que se distinguiu nos combates perto de Montfaucon. Sabemos que depois andou dizendo que muitos bailezinhos de Bowery continham mais bravura que a guerra europeia".

Bolaño, por sua vez, é mais sombrio no retrato de suas criaturas. "A Literatura Nazista..." narra biografias às vezes em detalhes, às vezes num resumo sucinto, variando entre análise e descrição. Há histórias de homens e mulheres, romancistas e poetas, ricos e pobres, consagrados e malditos. Por trás da pequenez, da obsessão e da loucura, suas obras (e vidas) manifestam algum tipo de elitismo/intolerância partidário ou comportamental, que em ações e omissões terminam endossando a opressão e morte: o cubano Ernesto Masón escreve sobre "a profunda felicidade de ser proprietário"; o argentino Italo Schiafini publica um estudo sobre a torcida do Boca Juniors chamado "Judeus Fora"; o brasileiro Amado Couto, que vive "entre piranhas" enquanto seu ídolo Rubem Fonseca nada num "aquário de tubarões metafísicos", participa de esquadrões da morte no Rio de Janeiro dos anos 1970.

Parte do brilho do livro nasce de um destemor - aí não tão borgiano - pela prosa caudalosa, veloz, contrariando a tendência ao controle e à simetria que seria praxe no formato de verbetes (e acaba tendo outro registro na lenta densidade de "História Universal..."). As frases de Bolaño emendam-se umas nas outras, formando um mosaico atordoante de fabulação. Nele, pinta-se o mundo literário como uma corrida de ratos, que pode ser engraçada em suas particularidades episódicas - e é muito -, mas não foge da ética desse tipo de corrida.

Tal dubiedade aparece no próprio ordenamento do texto, com frequência alternando passagens saborosas e "punch lines" que nos lembram o que estamos fazendo, no fim das contas, ao aproveitar esse sabor. Pode ser no momento em que apreciamos as construções líricas ("frágil como um porco na jaula das leoas") de um poema que fala de um assassino. Pode ser quando rimos de um romance que, num "estilo que Cholokhov aprovaria", narra "os sofrimentos de uma família numerosa de Havana nos anos 1950" fazendo as primeiras frases dos capítulos ("Voltava a Negra Petra...", "Independente, mas Tímida e Relutante...") formarem o acróstico "VIVA ADOLF HITLER".

Há dois modos de ver o procedimento, que é inequivocamente engajado. Um é dizer que ele faz o livro ganhar (mais) relevância duas décadas depois do lançamento. Na América de Trump, Maduro e Bolsonaro, onde a palavra "nazista" deixou de ser (como era poucos anos atrás) símbolo da falta de argumentos numa discussão, o conceito de literatura política se torna urgente, como costuma acontecer em momentos conturbados.

O outro modo é pensar que toda leitura programática gera uma limitação. Se ainda há lugar para o esteticismo na arte, e não por acaso o exemplo de Borges foi trazido aqui, isso se deve a uma compreensão da liberdade inegociável do artista. Ela se estende, até, ao uso amoral (ou imoral) de elementos que podem fazer da ficção uma espécie de para-raios catártico das pulsões destrutivas de uma sociedade.

Tudo depende de medida, claro. Ou, melhor dizendo, de um resultado literário que antecede os desdobramentos políticos. Tanto "A História Universal..." quanto "A Literatura Nazista..." são grandes livros a par do que possamos dizer de seus compromissos éticos. É essa qualidade algo etérea, da ordem da sensibilidade, do que pode estar além dos termos de qualquer ideólogo ou censor moral, que torna mais vistosa - ou mais incômoda - a "beleza inútil" que de inútil não precisa ter nada.
 ------------------
*Michel Laub, jornalista, é autor de "Diário da Queda" e "O Tribunal da Quinta-Feira"
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6208087/michel-laub-borges-bolano-e-os-caminhos-da-literatura-politica 12/04/2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário