Michel Laub*
Na época
em que começou a escrever "História Universal da Infâmia", reunião de
falsas biografias de piratas, assassinos e outras figuras aventurescas que
viraria um livro de contos em 1935, Jorge Luis Borges (1899-1986) publicava
sátiras sobre figuras do mundo das letras de Buenos Aires no jornal
"Crítica". Os dois registros - a lenda de ação e o humor
intelectualizado - parecem diversos, mas podem ser vistos como complementares
de um mesmo projeto.
Como é
fácil perceber na ficção posterior do autor argentino, há muito de irônico na
justaposição frequente de ambos: a mescla entre o fascínio com a guerra, o
crime e os duelos de um universo masculino ancestral e um certo enfado com a erudição
de narradores (ou personagens) que nunca viverão algo tão solene - antes, estão
presos a um jogo de simulacros onde a paródia livresca é o verdadeiro cenário.
O grande
tema de Borges, portanto, acaba sendo o das relações entre arte e vida. Algo
semelhante dá para dizer de Roberto Bolaño (1953-2003), autor chileno que se
viu alçado a estrela da ficção latino-americana e mundial só depois de sua
morte. A diferença é que o sentido político da abordagem em Borges só aparecia
em negativo, digamos. Seus textos foram acusados de esteticismo e alienação,
como se refletissem o apoio velado (ou nem tanto) que deu a dois períodos
ditatoriais de seu país (1966-1973 e 1976-1981) sob a justificativa do
antiperonismo.
Já Bolaño
nunca foi ambíguo nessa área. Numa entrevista a Javier Campos em 2002, ele se
diz "contra a poesia dirigida, a poesia do povo, a poesia da palavra de
ordem, a poesia do partido". Mas acrescenta, definindo o tipo de
engajamento que marcaria a sua obra: "Acredito que de alguma forma a beleza,
a beleza inútil sempre está - e essa é precisamente sua soberania, sua
elegância extrema - ao lado dos despossuídos, dos enfermos, dos
perdedores".
Em vários
aspectos, é um engajamento típico de certa esquerda latino-americana dos anos
1970/1980, já desencantada com a herança stalinista, mas jamais conivente com o
autoritarismo e as atrocidades que marcam o continente. A política é
incontornável e aparece em tudo o que Bolaño escreveu: em "Noturno no
Chile" (2000), um fantasmagórico narrador circular relembra o dia em que
deu uma aula sobre marxismo para Augusto Pinochet; em "Os Detetives
Selvagens" (1998), dois poetas vagam pelo mundo como encarnações de uma
derrota histórica e geracional; no póstumo "2666" (2004), há uma
relação entre o horror de episódios verdadeiros - a Segunda Guerra, o
assassinato de centenas de mulheres numa cidade mexicana - e o modo como isso é
elaborado nas páginas dos livros, inclusive aquelas que lemos.
"A
Literatura Nazista na América" (1996), que sai agora no Brasil pela
Companhia das Letras (237 páginas, tradução de Rosa Freire d'Aguiar), pode ser
analisado sob a ótica dessa relação delicada entre o artista e a realidade que
lhe coube viver.
Terceiro
título publicado pelo autor e primeiro a chamar atenção da crítica
internacional, traz elementos borgianos de resto comuns na obra bolañesca - o
ensaísmo ficcional, as piadas de verdadeiro/falso, a aparência neutra da
linguagem que abre frestas para imagens poéticas agudas. Alguns de seus
personagens, inclusive, parecem tirados de um conto do argentino. Caso de um
sujeito dedicado a refutar parte do cânone filosófico ocidental em longuíssimos
tratados que, escritos no intervalo de internações em hospícios, têm capítulos
como "O Cogito pré-Reflexivo e o Ser do Percipere" e "O Ser do
Percipi".
A própria
forma do livro, feita de falsos verbetes enciclopédicos, é uma homenagem
evidente: o modelo de "A Literatura Nazista..." é "História
Universal da Infâmia" (que é devedor das "Vidas Imaginárias", de
Marcel Schwob). De novo, porém, existe uma diferença de objetivos. Em Borges há
um tributo carinhoso, feito de uma grandiloquência admirada, aos excessos
biográficos de malfeitores: "Sabemos que desaprovou com fervor a captura
de prisioneiros e que uma vez (só com a coronha do fuzil) impediu essa prática
deplorável", diz-se de um certo Monk Eastman, "provedor de
iniquidades" que matava, esfaqueava e arrancava orelhas de inimigos.
"Sabemos que conseguiu fugir do hospital para voltar às trincheiras.
Sabemos que se distinguiu nos combates perto de Montfaucon. Sabemos que depois
andou dizendo que muitos bailezinhos de Bowery continham mais bravura que a
guerra europeia".
Bolaño,
por sua vez, é mais sombrio no retrato de suas criaturas. "A Literatura
Nazista..." narra biografias às vezes em detalhes, às vezes num resumo
sucinto, variando entre análise e descrição. Há histórias de homens e mulheres,
romancistas e poetas, ricos e pobres, consagrados e malditos. Por trás da
pequenez, da obsessão e da loucura, suas obras (e vidas) manifestam algum tipo
de elitismo/intolerância partidário ou comportamental, que em ações e omissões
terminam endossando a opressão e morte: o cubano Ernesto Masón escreve sobre
"a profunda felicidade de ser proprietário"; o argentino Italo
Schiafini publica um estudo sobre a torcida do Boca Juniors chamado
"Judeus Fora"; o brasileiro Amado Couto, que vive "entre
piranhas" enquanto seu ídolo Rubem Fonseca nada num "aquário de tubarões
metafísicos", participa de esquadrões da morte no Rio de Janeiro dos anos
1970.
Parte do
brilho do livro nasce de um destemor - aí não tão borgiano - pela prosa
caudalosa, veloz, contrariando a tendência ao controle e à simetria que seria
praxe no formato de verbetes (e acaba tendo outro registro na lenta densidade
de "História Universal..."). As frases de Bolaño emendam-se umas nas
outras, formando um mosaico atordoante de fabulação. Nele, pinta-se o mundo
literário como uma corrida de ratos, que pode ser engraçada em suas
particularidades episódicas - e é muito -, mas não foge da ética desse tipo de
corrida.
Tal
dubiedade aparece no próprio ordenamento do texto, com frequência alternando
passagens saborosas e "punch lines" que nos lembram o que estamos
fazendo, no fim das contas, ao aproveitar esse sabor. Pode ser no momento em
que apreciamos as construções líricas ("frágil como um porco na jaula das
leoas") de um poema que fala de um assassino. Pode ser quando rimos de um
romance que, num "estilo que Cholokhov aprovaria", narra "os sofrimentos
de uma família numerosa de Havana nos anos 1950" fazendo as primeiras
frases dos capítulos ("Voltava a Negra Petra...", "Independente,
mas Tímida e Relutante...") formarem o acróstico "VIVA ADOLF
HITLER".
Há dois
modos de ver o procedimento, que é inequivocamente engajado. Um é dizer que ele
faz o livro ganhar (mais) relevância duas décadas depois do lançamento. Na
América de Trump, Maduro e Bolsonaro, onde a palavra "nazista" deixou
de ser (como era poucos anos atrás) símbolo da falta de argumentos numa
discussão, o conceito de literatura política se torna urgente, como costuma
acontecer em momentos conturbados.
O outro
modo é pensar que toda leitura programática gera uma limitação. Se ainda há
lugar para o esteticismo na arte, e não por acaso o exemplo de Borges foi
trazido aqui, isso se deve a uma compreensão da liberdade inegociável do
artista. Ela se estende, até, ao uso amoral (ou imoral) de elementos que podem
fazer da ficção uma espécie de para-raios catártico das pulsões destrutivas de
uma sociedade.
Tudo depende
de medida, claro. Ou, melhor dizendo, de um resultado literário que antecede os
desdobramentos políticos. Tanto "A História Universal..." quanto
"A Literatura Nazista..." são grandes livros a par do que possamos
dizer de seus compromissos éticos. É essa qualidade algo etérea, da ordem da
sensibilidade, do que pode estar além dos termos de qualquer ideólogo ou censor
moral, que torna mais vistosa - ou mais incômoda - a "beleza inútil"
que de inútil não precisa ter nada.
------------------
*Michel
Laub, jornalista, é autor de "Diário da Queda" e "O Tribunal da
Quinta-Feira"
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6208087/michel-laub-borges-bolano-e-os-caminhos-da-literatura-politica
12/04/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário