A sexualidade continua um tabu, uma curiosidade escondida, suja e sujeita às muitas perversões que se verificam nos dias de hoje
A imprensa nacional e internacional tem noticiado de forma
constante nos últimos meses a questão da pedofilia e outros abusos
sexuais do clero católico em muitos países do mundo e também na América
Latina. A resposta a estes crimes tem sido punir os culpados de
diferentes maneiras, tornando-os objeto público de desprezo e ódio,
levando-os a tribunais civis e julgamentos religiosos. E os abusos
denunciados não são apenas de crianças e adolescentes, mas de jovens
religiosas, de jovens funcionárias das igrejas, de estudantes e outros.
As reações condenatórias são grandes, sobretudo dos pais e
mães dos alunos das escolas católicas. Temerosos de que seus filhos
possam ser vítimas desses homens perigosos, agem através dos meios de
comunicação criando um ambiente de insegurança em relação à educação
dada nas escolas confessionais. Pedem mais controle e rigidez dos
educadores sem, no entanto, rever suas próprias posições em relação à
sexualidade familiar, aos valores que passam para sua prole, a seu
comprometimento nos conteúdos religiosos e sociais ensinados às crianças
e jovens. Agem denunciando as instituições como se as escolas ou as
igrejas fossem os únicos lugares onde os comportamentos sexuais nefastos
se reproduzem. Não analisam de forma crítica as relações sociais e
familiares em relação à vivência da sexualidade e sua própria
responsabilidade. Criminalizar é uma resposta, mas uma resposta imediata
que não toca as raízes do problema.
Fico me perguntando por que em tempos politicamente tão difíceis
surge à tona a questão dos abusos sexuais feitos por aqueles que em
princípio ofereceram seus corpos a serviço do Espírito. Sabemos bem que
esses abusos não são apenas de hoje. Há como uma velha compulsão,
sobretudo masculina, a deixar-se dominar pelo ‘instinto sexual’ e com
isso dominar corpos que lhes são aparentemente submissos. Esse domínio,
expressão de outras formas de dominação pessoal e social, tem
reaparecido no momento em que não só a política e a economia, mas também
as diferentes religiões, vêm atravessando uma significativa crise de
sentidos. Na mesma linha, não poucos políticos, cineastas, artistas e
escritores da atualidade foram acusados de ‘predadores de menores’, de
‘monstros morais’, o que atesta que a problemática é mais ampla do que
as instituições da religião. Transgredir limites parece ser uma
constante dos seres limitados que somos! E o que fazer?
No caso particular do Cristianismo, é preciso lembrar que há
comportamentos e conteúdos teológicos que fazem da repressão à
sexualidade quase uma virtude heroica em vista do seguimento de Jesus e,
portanto, uma atitude aplaudida por Deus. Aliás, é muitas vezes nessa
linha que se interpretou o mito do Gênesis em relação à expulsão de Adão
e Eva do paraíso e outros textos bíblicos.
O dualismo representado pela constante luta entre o corpo e o
espírito, o espírito afirmado como superior ao corpo e convidado a
vencer as armadilhas corpóreas caracterizou a formação dos cristãos em
geral e do clero em particular. Uma visão dualista da vida e em especial
dos seres humanos marcou a vida cristã de forma a criar um temor ao
corpo e às suas necessidades. Por isso, muitas formas de sacrifício
corpóreo foram bem-vindas e muitas formas de promessa de felicidade para
além dessa vida foram pregadas como para valorizar consolações e
prêmios espirituais para os que se mantivessem firmes na luta do
espírito contra o corpo.
Uma educação repressiva, uma fé cheia de dogmatismos onde nenhum
questionamento é possível, uma hierarquia masculina no topo das
instituições orientando e dominando corpos segue presente, embora de
forma diversa em relação ao passado. Rever essas posições, rever os
fundamentos da atitude negativa em relação à sexualidade, parece não
estar na agenda das Igrejas e particularmente da católica. A sexualidade
continua um tabu, uma curiosidade escondida, suja e sujeita às muitas
perversões que se verificam nos dias de hoje. A renúncia a vivê-la na
diversidade de suas expressões continua sendo uma exigência que o alto
clero impõe na teoria a si mesmo e aos outros. E não só a eles, mas à
multidão de adeptos que se tornam muitas vezes mais sectários que o
clero. Por isso, as condenações, os julgamentos e nossa ira emocional,
embora compreensíveis, são insuficientes para as mudanças necessárias.
Um clero abusador de crianças, jovens e mulheres é sinal de que a
maneira como se lida com a sexualidade humana e se lhe atribui regulação
divina merece uma transformação urgente. E isto não está sendo feito
porque de alguma forma exigiria a revisão das leis canônicas e a assídua
construção de novos sentidos para a teologia cristã. Isto exigiria
também a reorganização do poder religioso em que os ‘príncipes’ que
governam seriam depostos em favor de comunidades que decidiriam sobre
sua vida.
Por que há tanta fixação na sexualidade? Por que temê-la mais do que outras relações próprias dos seres vivos?
O exercício ativo da sexualidade sob a inspiração de algumas ideias
do apóstolo Paulo foi considerado, especialmente a partir do concílio de
Trento, um caminho de menor perfeição, um caminho em que se cede à
fraqueza dos instintos e se distancia de Deus, puro Espírito. Por isso,
livrar-se dos desejos sexuais, da atração sedutora dos corpos através de
sacrifícios ascéticos foi parte importante da formação dada ao clero.
Eles são os representantes de Deus ‘puro Espírito’, de seu filho Jesus
igualmente Deus, nascido sem pecado original e sem ‘desejos sexuais’.
Entretanto, a tentação de provar do ‘fruto proibido’ continua presente
nos corpos e, eles inebriados de desejo, furtivamente o provam e afirmam
publicamente na sua repulsiva retórica não o terem provado. Violam
corpos, cometem crimes, criam instituições e transformam seus desejos
físicos em ‘suspiros do espírito’ para favorecer a iniciação dos jovens
corpos às delícias sombrias que promovem. E tudo isso tem o preço do
silêncio das vítimas para que sua doação seja acolhida por Deus Pai todo
poderoso que sustenta a liderança dos ‘promotores’ do espírito.
Mesmo sabendo das contradições que nos habitam, é tempo de mudar e
sair da hipocrisia e da ignorância que nos caracteriza. É tempo de
afirmar novas compreensões da sexualidade humana, de bendizê-la como
força vital cujas expressões não podem ser controladas repressivamente,
mas educadas no respeito a si e aos outros. É tempo de mudar crenças,
teologias, liturgias e governos. É tempo de compreender novamente quem é
o ser humano! Nessa linha, a responsabilidade não pode ser apenas do
clero, mas de todas e todos que aderem a uma religião ou a uma igreja.
Eles e elas devem ser críticos dos conteúdos, dos comportamentos e
propostas para que a democracia de expressões e conteúdos seja
construída no interior das instituições religiosas. Apenas condenar não
leva a uma mudança real. Acalma as tensões do momento, dá impressão de
que a justiça será feita, mas de fato dificilmente constrói novos
caminhos éticos e novas interpretações para os dias de hoje.
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* Ivone Gebara é uma freira católica, filósofa e teóloga brasileira.
Nascida em São Paulo, de ascendência sírio-libanesa, ingressou na
Congregação das Irmãs de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho em
1967, aos vinte e dois anos, depois de graduar-se em filosofia. Escritora.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/abusos-espirituais-nos-corpos-materiais-a-igreja-e-a-sexualidade/?utm_campaign=newsletter_rd_-_26042019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 25/04/2019
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