quarta-feira, 24 de abril de 2019

Em Nosso Nome

Essa polarização criada entre pessoas representa um espaço político de batalha, em que se legitima, discursivamente, o extermínio do outro

Desde que ouvi a expressão banalidade do mal, há alguns anos, inquieto-me diante de sua significação e dos nexos que podemos fazer com a nossa atualidade. Proposta pela filósofa alemã e judia Hannah Arendt, a banalidade do mal advém de sua observação do julgamento de Eichmann no Tribunal de Exceção de Nuremberg, bem como de sua percepção teórica acerca de sistemas totalitários e outros fenômenos que constituíram a sua literatura.
 
A expressão pode ser entendida como uma abstenção de reflexão sobre a vida – ou sobre o mal que é feito sem a devida reflexão sobre determinados atos. Assim, pela abstenção de reflexão sobre determinados atos e seu contexto, seu significado – o mal –  passa a ser corriqueiro.
Não é o mal que é banal, como alguns entenderam equivocadamente; é o mal uma nova forma de atrocidade que passa, de forma dessensibilizada, pela via da normalidade. O mal passa a ser normal, natural, não questionado. Banal.
Outro pesquisador inquieto sobre a questão do mal, especificamente em razão da obediência a autoridades pelo Holocausto, foi o psicólogo norte-americano Stanley Milgram. Na década de 60, Milgram promoveu um experimento científico para objetivando entender como pessoas, inseridas adequadamente em determinados grupos sociais, poderiam praticar violências extremas em obediência a autoridade. É aí que surge o que pode ser denominado como sujeição ao domínio, que fortalecerá a banalidade do mal – e aí se faz possível pensar na expressão de forma mais densa.

No documentário “Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt”, há o delineamento de como a banalidade do mal configura-se como um fenômeno complexo, especialmente no campo discursivo, originado de diversos fatores políticos, econômicos, sociais. De plano, contextos políticos e econômicos desfavoráveis acarretam, no imaginário social, a necessidade de intervenção para a melhoria de tais condições. O mal já está instalado para determinados grupos sociais: desemprego, falta de segurança, escassez na política educacional.


 Desse cenário, surgem falas que são altamente defensáveis: precisamos promover emprego; queremos segurança; precisamos combater a corrupção; precisamos proteger crianças e idosos; etc. Não há quem negue tais discursos, pois se vinculam a necessidades humanas, bem como a valores que nos mantêm em sociedade. 
 
Antes de acenderem ao poder, os nazistas, por exemplo, promoveram diversos eventos públicos criando um falso mundo ideológico inconsistente, mas condizente com tais necessidades. Além disso, o próprio discurso traz, em seu âmago, que a defesa de tais necessidades deve ser feita por meio de luta, de posicionamento, de rigidez perante um inimigo – o outro. Esse inimigo, na Alemanha Nazista, era o judeu, que estaria promovendo corrupção e produzindo miséria naquele Estado. Os alemães, assim, precisariam se unir e lutar contra os judeus.

Essa polarização criada entre pessoas – o eu e o outro – representa um espaço político de batalha, em que se legitima, discursivamente, o extermínio do outro: ao outro, não se permite mais a fala ou do outro, não mais se escuta em razão de sua formação acadêmica, pelo seu posicionamento partidário-político, pelo seu gênero, classe ou qualquer outra condição que seja um polo de contraposição ao “eu”, que o faça diferente, estranho, abjeto a “mim”.


É um outro que é identificado – ou seja, produzido no meio social – e é ameaçador, ao passo que não pode ser integrado ou dialogado. É um ambiente de violência hermenêutica, e é um campo em que tal produção discursiva cria o panorama de possibilidade de extermínio dos corpos “inimigos”. Esses inimigos, afinal de contas, estariam colocando em risco necessidades humanas (materiais e morais) que estruturam a “nossa” sobrevivência, que é julgada mais importante que a sobrevivência dos outros que estão em nosso extremo defensivo. Discursivamente, então, a vida, em sua pluralidade, é desconsiderada e o mal se entranha na superficialidade do discurso falacioso entre bem e mal.

Nessa sequência, aquele que lutará em prol de tais necessidades será um idealista. Seu objetivo é o ideal de libertação ou de salvação dos seus, em uma fé inabalável. Ele restará disposto a dar a sua vida por este ideal, assim como estará apto tirar vidas para isso.
Essa é a inferência de Arendt sobre Eichmann, quando ele demonstrou sua ciência sobre sua condenação. Contudo, ele não entendia a razão de sua condenação e questionou “desde quando respeitar a lei é crime?”.
Nessas circunstâncias, viu-se Eichmann como a engrenagem de um sistema estatal. Um sistema pode ser tido, a grosso modo, como um conjunto de elementos interligados e interdependentes entre si, vinculados a partir de um objetivo, ou função, em comum. Eichmann, enquanto tenente-coronel, tinha uma função dentro do Estado Nazista, o qual, por sua vez, tinha um determinado objetivo, enquadrando-se como um sistema totalitário. 

Aliando indivíduos em um discurso funcional, o Estado Nazista consistia em um conjunto de engrenagens voltadas a um determinado fim. Os indivíduos, enquanto engrenagens, respeitavam as ordens que lhes eram dadas. Obedeciam às determinações estatais e sua responsabilidade sobre os atos que praticavam ou incitavam era diluída. Uma responsabilidade parcial a partir de consciência parcial sobre o significado de seus atos: o que se via era o cumprimento de seu objetivo, mas não os efeitos de seus atos, ou os efeitos do sistema como um todo:

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas bem gastas das ‘ordens superiores’ versus os ‘atos de Estado’ circulavam livremente; haviam dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de algo absolutamente sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria. Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens – sempre cuidado de estar ‘coberto’ –, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e vícios da obediência cega, ou ‘obediência cadavérica’ (kadavergenhorsam), como ele próprio a chamou.

Tal consciência parcial da vida pode ser caracterizada como a negação da complexidade, da instabilidade, da subjetividade e da intersubjetividade – que são componentes da condição humana. A vida é percebida de maneira simplista (e maniqueísta), devendo ser mantida em uma estabilidade rígida, a partir de uma objetividade rígida em que não se tem espaços para outras narrativas, outras experiências, outras formas de existir, viver, conviver.


Aqui se tem a ideologia necessária para o assentamento da banalidade do mal: um contexto político e econômico deficitário; ideias formadas pela clicherização da vida, em sua consideração mais simples e supérflua; pela polarização das pessoas que integram determinado espaço político e a identificação do eu/nós contra o outro/eles/inimigos, que impedem a satisfação de “nossas” necessidades mais elementares e que afetam, assim, a “nossa” existência e a “nossa” paz; objetivo de libertação/salvação, com o ideal de coletividade em que cada engrenagem, irrefletida, dá a vida pelo todo – mesmo que não o entenda.

Os clichês dão o conforto de solução e uma causa ao que seguir, e o discurso indica como seguir. As pessoas que não podem parar refletir sobre a sua própria realidade adentram em tal fala e, conforme se observa do documentário citado, costumam negar a natureza aleatória da realidade, sujeitando-se ao domínio da autoridade. Tais pessoas, assim, estão “predispostas a todas ideologias porque elas explicam os fatos como meras leis e eliminam as coincidências e espontaneidade, inventando uma onipotência geral que deve ser a base para todo acidente”.

(Trailer do documentário “Vida Ativa: O Espírito de Hannah Arendt”) https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=wyHXE1rfiTU

Nesse ponto, é em que a propaganda e ideologia prosperam com a fuga da realidade para a ideologia, que cria tal mal e mantém as pessoas para a superfluidade, monopoliza uma verdade única e abafando o modo e o processo de pensamento e julgamento, bem como a capacidade humana de falar e agir. Pensa-se, julga-se, fala-se, age-se em nome do sistema construído em todo da ideologia que superficializa a vida, exterminando-a pelo discurso e, posteriormente, dizimando seus corpos. 

A dessensibilização da vida sobre a vida, em nome de uma divindade, em nome da ordem, em nome da lei – o processo é assim mesmo, não há o que fazer. Em nome de tudo, menos em nosso nome.

Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
USHPIZ, Ada. Vida activa: o espírito de Hannah Arendt [Documentário]. Midas Filmes: Israel, 2015.
MILGRAM, Stanley. Os perigos da obediência. Disponível aqui:  https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/832874/mod_resource/content/1/Os%20perigos%20da%20obediencia.pdf 
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Doutora em Direito, Política e Sociedade (UFSC), Mestra em Direito, Estado e Sociedade (UFSC)
Fonte:  https://www.cartacapital.com.br/opiniao/em-nosso-nome/?utm_campaign=newsletter_rd_-_24042019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 22/04/2019

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