Essa polarização criada entre pessoas representa um espaço político de batalha, em que se legitima, discursivamente, o extermínio do outro
Desde que ouvi a expressão banalidade do mal,
há alguns anos, inquieto-me diante de sua significação e dos nexos que
podemos fazer com a nossa atualidade. Proposta pela filósofa alemã e
judia Hannah Arendt, a banalidade do mal advém de sua observação do julgamento de Eichmann
no Tribunal de Exceção de Nuremberg, bem como de sua percepção teórica
acerca de sistemas totalitários e outros fenômenos que constituíram a
sua literatura.
A expressão pode ser
entendida como uma abstenção de reflexão sobre a vida – ou sobre o mal
que é feito sem a devida reflexão sobre determinados atos. Assim, pela
abstenção de reflexão sobre determinados atos e seu contexto, seu
significado – o mal – passa a ser corriqueiro.
Não é o mal que é banal, como alguns entenderam equivocadamente; é o mal uma nova forma de atrocidade que passa, de forma dessensibilizada, pela via da normalidade. O mal passa a ser normal, natural, não questionado. Banal.
Outro pesquisador inquieto sobre a
questão do mal, especificamente em razão da obediência a autoridades
pelo Holocausto, foi o psicólogo norte-americano Stanley Milgram. Na
década de 60, Milgram promoveu um experimento científico para
objetivando entender como pessoas, inseridas adequadamente em
determinados grupos sociais, poderiam praticar violências extremas em
obediência a autoridade. É aí que
surge o que pode ser denominado como sujeição ao domínio, que
fortalecerá a banalidade do mal – e aí se faz possível pensar na
expressão de forma mais densa.
No documentário “Vida Activa: O
Espírito de Hannah Arendt”, há o delineamento de como a banalidade do
mal configura-se como um fenômeno complexo, especialmente no campo
discursivo, originado de diversos fatores políticos, econômicos,
sociais. De plano, contextos políticos e econômicos desfavoráveis
acarretam, no imaginário social, a necessidade de intervenção para a
melhoria de tais condições. O mal já está instalado para determinados
grupos sociais: desemprego, falta de segurança, escassez na política
educacional.
Desse
cenário, surgem falas que são altamente defensáveis: precisamos
promover emprego; queremos segurança; precisamos combater a corrupção;
precisamos proteger crianças e idosos; etc. Não há quem negue tais
discursos, pois se vinculam a necessidades humanas, bem como a valores
que nos mantêm em sociedade.
Antes de acenderem ao poder, os
nazistas, por exemplo, promoveram diversos eventos públicos criando um
falso mundo ideológico inconsistente, mas condizente com tais
necessidades. Além disso, o próprio discurso traz, em seu âmago, que a
defesa de tais necessidades deve ser feita por meio de luta, de
posicionamento, de rigidez perante um inimigo – o outro. Esse inimigo,
na Alemanha Nazista, era o judeu, que estaria promovendo corrupção e
produzindo miséria naquele Estado. Os alemães, assim, precisariam se
unir e lutar contra os judeus.
Essa polarização criada entre pessoas
– o eu e o outro – representa um espaço político de batalha, em que se
legitima, discursivamente, o extermínio do outro: ao outro, não se
permite mais a fala ou do outro, não mais se escuta em razão de sua
formação acadêmica, pelo seu posicionamento partidário-político, pelo
seu gênero, classe ou qualquer outra condição que seja um polo de
contraposição ao “eu”, que o faça diferente, estranho, abjeto a “mim”.
É um outro que é identificado – ou
seja, produzido no meio social – e é ameaçador, ao passo que não pode
ser integrado ou dialogado. É um ambiente de violência hermenêutica, e é
um campo em que tal produção discursiva cria o panorama de
possibilidade de extermínio dos corpos “inimigos”. Esses inimigos,
afinal de contas, estariam colocando em risco necessidades humanas
(materiais e morais) que estruturam a “nossa” sobrevivência, que é
julgada mais importante que a sobrevivência dos outros que estão em
nosso extremo defensivo. Discursivamente, então, a vida, em sua
pluralidade, é desconsiderada e o mal se entranha na superficialidade do
discurso falacioso entre bem e mal.
Nessa sequência, aquele que lutará em
prol de tais necessidades será um idealista. Seu objetivo é o ideal de
libertação ou de salvação dos seus, em uma fé inabalável. Ele restará
disposto a dar a sua vida por este ideal, assim como estará apto tirar
vidas para isso.
Essa é a inferência de Arendt sobre Eichmann, quando ele demonstrou sua ciência sobre sua condenação. Contudo, ele não entendia a razão de sua condenação e questionou “desde quando respeitar a lei é crime?”.
Nessas circunstâncias, viu-se
Eichmann como a engrenagem de um sistema estatal. Um sistema pode ser
tido, a grosso modo, como um conjunto de elementos interligados e
interdependentes entre si, vinculados a partir de um objetivo, ou
função, em comum. Eichmann, enquanto tenente-coronel, tinha uma função
dentro do Estado Nazista, o qual, por sua vez, tinha um determinado
objetivo, enquadrando-se como um sistema totalitário.
Aliando indivíduos em um discurso
funcional, o Estado Nazista consistia em um conjunto de engrenagens
voltadas a um determinado fim. Os indivíduos, enquanto engrenagens,
respeitavam as ordens que lhes eram dadas. Obedeciam às determinações
estatais e sua responsabilidade sobre os atos que praticavam ou
incitavam era diluída. Uma
responsabilidade parcial a partir de consciência parcial sobre o
significado de seus atos: o que se via era o cumprimento de seu
objetivo, mas não os efeitos de seus atos, ou os efeitos do sistema como
um todo:
Era assim que as coisas eram,
essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto
podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele
cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte;
ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha
uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a
defesa nem os juízes jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas
bem gastas das ‘ordens superiores’ versus os ‘atos de Estado’ circulavam
livremente; haviam dominado toda a discussão desses assuntos durante os
julgamentos de Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de algo
absolutamente sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes
mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem
podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta
própria. Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um
cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens – sempre
cuidado de estar ‘coberto’ –, ele acabou completamente confuso e
terminou frisando alternativamente as virtudes e vícios da obediência
cega, ou ‘obediência cadavérica’ (kadavergenhorsam), como ele próprio a
chamou.
Tal consciência parcial da vida pode
ser caracterizada como a negação da complexidade, da instabilidade, da
subjetividade e da intersubjetividade
– que são componentes da condição humana. A vida é percebida de maneira
simplista (e maniqueísta), devendo ser mantida em uma estabilidade
rígida, a partir de uma objetividade rígida em que não se tem espaços
para outras narrativas, outras experiências, outras formas de existir,
viver, conviver.
Aqui se tem a ideologia necessária
para o assentamento da banalidade do mal: um contexto político e
econômico deficitário; ideias formadas pela clicherização da vida, em
sua consideração mais simples e supérflua; pela polarização das pessoas
que integram determinado espaço político e a identificação do eu/nós
contra o outro/eles/inimigos, que impedem a satisfação de “nossas”
necessidades mais elementares e que afetam, assim, a “nossa” existência e
a “nossa” paz; objetivo de libertação/salvação, com o ideal de
coletividade em que cada engrenagem, irrefletida, dá a vida pelo todo –
mesmo que não o entenda.
(Trailer do documentário “Vida Ativa: O Espírito de Hannah Arendt”) https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=wyHXE1rfiTU
Nesse ponto, é em que a propaganda e
ideologia prosperam com a fuga da realidade para a ideologia, que cria
tal mal e mantém as pessoas para a superfluidade, monopoliza uma verdade
única e abafando o modo e o processo de pensamento e julgamento, bem
como a capacidade humana de falar e agir. Pensa-se, julga-se, fala-se,
age-se em nome do sistema construído em todo da ideologia que
superficializa a vida, exterminando-a pelo discurso e, posteriormente,
dizimando seus corpos.
A dessensibilização da vida sobre a vida, em nome de uma divindade, em nome da ordem, em nome da lei – o processo é assim mesmo, não há o que fazer. Em nome de tudo, menos em nosso nome.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
USHPIZ, Ada. Vida activa: o espírito de Hannah Arendt [Documentário]. Midas Filmes: Israel, 2015.
MILGRAM, Stanley. Os perigos da obediência. Disponível aqui: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/832874/mod_resource/content/1/Os%20perigos%20da%20obediencia.pdf
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* Doutora em Direito, Política e Sociedade (
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/em-nosso-nome/?utm_campaign=newsletter_rd_-_24042019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 22/04/2019
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