sexta-feira, 12 de abril de 2019

ALAIN TOURAINE: Chineses vão ganhar batalha contra os EUA


 

Aos 93 anos, o sociólogo francês Alain Touraine começou a escrever seu último livro. Durante 59 anos de carreira acadêmica, já publicou quase 20 obras, daquelas de verdade, faz questão de precisar, em uma conta em que não entram os textos feitos para se distrair ou para entrar no debate da hora. "O último nunca é fácil. Com a minha idade, a probabilidade é que não dê tempo para outro depois", diz, em tom de confidência. Em um apartamento entulhado de livros, ele mora sozinho com um gato e fala do mundo com a mesma intimidade que tem com as ruas de Montparnasse, percorridas há décadas a caminho de suas aulas na École des Hautes Études de Sciences Sociales, em Paris. "Sobre o que vamos falar? Da Europa, do Brasil, da França?", pergunta, enquanto sorve um pequeno gole de Amaro, "licor italiano feito a partir de ervas", detalha.

Touraine continua dando seminários de manhã, já sobre o tema do "livro-testamento" ainda sem título, mas com grandes ambições. Suas duas perguntas básicas são: em que sociedade viveremos e quem serão os atores principais do século XXI? De alguma maneira, esse é seu tema desde os anos 60, quando escrutinava o mundo para entender o que batizou de sociedades pós-industriais, na época em que as fábricas começam a desaparecer e emergir o sujeito forjado pela modernidade, que se mobiliza não só pela consciência de classe, mas, cada vez mais, pela sua identidade e/ou sua cultura.

Foi ele um dos primeiros teóricos dos movimentos sociais, acompanhando desde o Solidariedade, na Polônia, ao Chile nos anos 70; do feminismo nas ruas de Paris aos protestos antinucleares na Alemanha. E assim continua até hoje. "O lugar das mulheres e dos imigrantes continuará a ser o grande debate deste século", diz.

Para marcar a criação dos 50 anos do Comitê de Pesquisa dos Movimentos Sociais, ele foi homenageado, em janeiro, com duas jornadas de debates, em que dialogou com dois famosos ex-alunos: numa delas, conversou sobre a França e a Europa com o sociólogo espanhol Manuel Castells e, em uma segunda, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre América Latina. Está pessimista com o Brasil. "Bolsonaro é um fenômeno, mas ele mesmo não tem nenhuma força política, nem nenhuma intenção, nenhum programa de governo", diz.

Valor: Os intelectuais fizeram um manifesto, lançando o senhor e Edgar Morin como candidatos à eleição do parlamento europeu. Por que não prosperou?
Alain Touraine: Foi um pequeno projeto, mas Morin tomou a palavra meio autoritariamente, dizendo que não se deveria fazer isso. Eu, que acreditava mais nessa possibilidade, concordei que era praticamente impossível lançar essa lista. Teríamos como bandeira "Por uma Europa migrante e solidária". Mas todos são contra a solidariedade com os imigrantes, salvo alguns intelectuais e alguns velhos católicos.

Valor: Vivemos em um momento de direitização na França e na Europa?
Touraine: Não diria isso. Estamos vivendo com partidos nem de direita nem de esquerda, mas "hors politique " [literalmente, fora da política]. É verdade que existem mais governos de extrema-direita do que de extrema-esquerda. É consequência de um fenômeno quase sem equivalência na história, o desmoronamento do sistema político ocidental. É bem recente. Na França, o ano traumatizante foi 2015, o dos atentados ao "Charlie Hebdo", e depois o Bataclan. Para a maioria, o ano marcante foi 2016, primeiro com o Brexit e, depois, com a eleição de [Donald] Trump. Não foi apenas uma crise. Foi o desmoronamento dos sistemas políticos da Inglaterra e Estados Unidos. Em 2017, apareceu [Emmanuel] Macron, quando na França não havia nem direita nem esquerda, era terra arrasada. Em 2018, teve o início do regime na Itália, com muitas características fascistas, o que não é um detalhe. E ainda veremos acontecer o desmoronamento do partido social-democrata alemão, um fenômeno prodigioso: a ruptura entre os sindicalistas, que formam a metade da social-democracia, e os intelectuais agora transmutados em ecologistas.

Valor: Por que as pessoas escolhem regimes autoritários neste momento?
Touraine: Os sistemas políticos desmancharam e queremos que sejam reconstruídos. É muito difícil viver sem sistemas políticos, as pessoas ficam perturbadas. Isso significa violência, extremismo. Mesmo na Alemanha, que aparentemente vai bem, vive-se uma crise política: o país está sólido, mas sem nenhuma visão de futuro. A coalizão que [Angela] Merkel botou no poder com os sociais-democratas praticamente caiu, os sociais-democratas estão em estado de degenerescência, podem se dividir em dois e perder o poder. Os ecologistas podem se separar ou, pior, os sindicalistas alemães podem passar para os liberais nacionalistas [o partido de extrema-direita, Alternativa para a Alemanha]. As pessoas vivem com um enorme sentimento de fragilidade.

Valor: Por que está ocorrendo esse recuo da política no mundo inteiro?
Touraine: Os países ocidentais, de classe média e modernos, mostram que a política não se faz mais em termos nacionais. É globalizada. Os Estados nacionais foram substituídos pelas cidades mundiais, onde estão as redes, sejam elas de bancários, advogados, empresários, cientistas, que comandam o mundo. A globalização fez isso, mas não são todas as pessoas que têm acesso às redes globais em cada país. Se você pega a Alemanha, avalio que a parte da população alemã que participa das redes mundiais é de 80%. Na França, antes eram 55%, agora são 45% por causa da desindustrialização. Ou seja, os modernos são minoritários. São nessas cidades mundiais onde estão todas redes e onde se concentram as pessoas de classe econômica superior. Em todas essas cidades os mais pobres tiveram de ir embora.

Valor: O movimento dos coletes amarelos é consequência dessa crise?
Touraine: Os coletes amarelos formam um movimento fascinante. Já dura quase quatro meses, estão nas ruas desde 17 de dezembro. Não existe um caso de crise política aguda que dure esse tempo todo. O Frente Popular durou um mês; Maio de 68 durou um mês. No fim de maio teve o desfile encabeçado pelo [presidente francês Charles] De Gaulle e André Malraux, em Paris, e acabou. Os coletes são a parte da população que empobreceu, famílias que ganham entre € 1,2 mil e 1,5 mil, mulheres sozinhas com crianças, uma grande parte pobres, e também os idosos com as pequenas aposentadorias. A eles é preciso adicionar os moradores de cidades que se desindustrializaram massivamente, no Norte e Leste, que hoje votam em Marine Le Pen [presidente do extremista ex-Frente Nacional, agora Reunião Nacional]. E há uma quarta coisa que está na origem dos fatos: em Paris, os mais pobres foram obrigados a ir morar a 100 ou 200 km da capital. Portanto, essa decisão de aumentar impostos sobre a gasolina recai sobre essas pessoas pobres, que têm de andar 200 km para procurar emprego, não para ir ao teatro. O gasto com carro é uma despesa arrasadora para os pobres, porque eles têm de procurar trabalho e não há mais trem, não há mais escola, não há mais hospital. Hoje não é raro uma mulher andar 60 km para dar à luz. Os governos sucatearam os serviços públicos fora das grandes cidades. É a França das classes mais baixas que se separa da França da elite.

Valor: Isso afetou os socialistas?
Touraine: O desmanche dessa França foi o que acabou com o voto nos socialistas. Agora, eles votam em Le Pen ou Jean-Luc Melenchon [presidente do esquerdista France Insoumise], herdeiro dos eleitores dos antigos subúrbios vermelhos de Paris e de Lyon. Os jovens de 18 a 25 anos, estudantes, operários ou desempregados, também votam em Melenchon.

Valor: Os coletes isolaram Macron e derrubaram a popularidade dele.
Touraine: Macron foi uma vitória fabulosa, mas não é fácil criar um partido, as pessoas não tinham nenhuma experiência, Macron não tinha experiência. Fizeram muita besteira, coisas bobas. O presidente está realmente isolado, as pessoas agora acham que ele vai cair como caiu [Matteo] Renzi [ex-primeiro-ministro italiano].

 Valor: A ideia primeira da Europa, como espaço de solidariedade e liberdade, resiste? Touraine: A Europa está dividida, inquieta e desorientada. A saída da Inglaterra é um golpe de uma violência extraordinária, ninguém quer pensar, mas claro que vai criar problemas na economia europeia. Do ponto de vista militar, por exemplo: quando eles saírem, a França será o único país europeu a ter armas nucleares. O sentimento europeu de fraqueza aumentou consideravelmente depois da eleição de Trump, os europeus não confiam nele. Há um sentimento geral de insegurança e, mais que tudo, de ruptura interna. Todos os países europeus se sentem ameaçados no interior.

Valor: A ressurgência do nacionalismo dá medo?
Touraine: Acho que tem uma coisa a dizer sobre o mundo atual. Os Estados nacionais perderam sua independência e poder em favor de superpotências que se batem pela dominação do mundo. Por enquanto são duas, a China e os EUA. Quem vai ganhar essa batalha são os chineses. Eles têm uma vontade de ferro - e uma ditadura -, enquanto Trump cria inimigos pelo mundo. A América é senhora da tecnologia atual, mas isso não será verdade em 50 anos. Vejo na Europa a impossibilidade de esses países entrarem na nova sociedade definida pelas novas tecnologias da informação e da globalização. A Europa não
tem mais o sentimento de estar no alto do mundo, atrás só dos Estados Unidos. O continente tem 500 milhões de habitantes, mas a China fez 700 milhões de pessoas entrarem no mercado mundial. Também não há mais vontade de manter a União Europeia - a Itália é contra, o Reino Unido é contra, os Estados da Europa Central (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia) são contra -, é uma grande parte da população europeia. Só Macron ainda é a favor da Europa, agora que Merkel não existe mais politicamente. Ela foi notável, mas foi "assassinada" pelos alemães.

Valor: É em torno do poder crescente de China e EUA a tese do seu livro?
Touraine: Sim, um pouco. A minha pegunta é em que sociedade viveremos. Que sociedade teremos depois da sociedade industrial? Como será a sociedade que chamo de hipermoderna? Estamos num mundo globalizado, comandado pela rivalidade entre EUA e China. A lógica é o reforço dos dois, da posição da China na América Latina e na África: eles compram terras, matérias-primas, empresas. Agora eles vão fazer a rota da seda chegar à Europa. A história do mundo está sendo configurada há 40 anos pela China. O aumento do poder dessas duas superpotências é muito maior do que a capacidade de resistência e de contra-ataque dos movimentos nacionais. A capacidade de pensar e agir politicamente na Europa, América Latina e EUA diminuiu muito por causa da crise política. Para recuperar a consciência política, é preciso muita coisa, principalmente ideias.

Valor: Quem serão os atores do século XXI?
Touraine: Eu me concentrei em duas categorias de pessoas que farão a história: as mulheres e os imigrantes. Qual será o debate sobre o lugar das mulheres e dos imigrantes? Isso é uma maneira de dizer que os grandes papéis no mundo do futuro não serão desempenhados nem pelas categorias econômicas nem pelas categorias sociais, ou seja, não serão nem os políticos nem os intelectuais ou operários e agricultores que farão história.

Valor: Nesse mundo que o senhor desenha, como vê o presidente Jair Bolsonaro?

Touraine: Bolsonaro é um fenômeno, mas ele mesmo não tem nenhuma força política, nem nenhuma intenção, nenhum programa de governo. O Brasil teve um periodo de ouro, o período Cardoso e Lula. Dilma é Lula, ela mesma nunca teve capacidade política. Cardoso e Lula podem ser ser considerados como um só período: Cardoso botou a economia em ordem e Lula tratou do social. O Brasil fez duas coisas capitais, criou uma indústria forte e uma imagem de si. Todo mundo sabe o que é o Brasil, e ninguém sabe o que é a Argentina. Existe uma imagem com os cantores, os intelectuais, os campeões de Fórmula 1, uma imagem mundial.

Valor: Mas não sai da crise econômica e política desde 2014/15...
Touraine: A América Latina inventou um pouco o equivalente da social-democracia, ou seja, avançou mais nas questões sociais do que nas econômicas. A grande ideia do [presidente argentino Juan Domingo] Perón foi o que chamamos de nacional popular, ou seja, começamos a distribuir o dinheiro para só depois produzimos o dinheiro, o que não pode durar eternamente. Quando a gente gasta mais do que ganha, como diziam as velhas mães de família, isso termina mal. É exatamente o que se passou. Não considero Lula como um corrupto, acho menor se comparado com o que fez [Michel] Temer, por exemplo. Mas o Partido dos Trabalhadores era corrompido, não se pode negar, e o antigo PMDB é uma corrupção absoluta. Com isso, a classe média, sem ver a mínima solução, votou em Bolsonaro, não escolheu o golpe de Estado nem a intervenção militar. Muitos brasileiros dizem que, felizmente, há militares no governo. Pelo menos eles têm a competência para dirigir o carro. A época do populismo latino-americano acabou.

Valor: Quando o senhor diz que o populismo acabou na América Latina, o senhor está dizendo que não considera Bolsonaro populista no senso mais recente do termo?
Touraine: Absolutamente. Bolsonaro é um "evangélico", antipopular, fundamentalmente da classe média, que tem medo das classes populares. Ele tem o apoio das classes médias. Eu estive no Chile no dia do golpe de Estado e, no fim do dia, fui com meu cunhado ver se a população seguiu a palavra de ordem dos militares de botar a bandeira do Chile na jaanela para festejar a liberação do país. Era perfeitamente claro: nos bairros ricos, todos tinham a bandeira, nos muito pobres, todos também tinham a bandeira, os operários e intelectuais, nenhuma bandeira.

Valor: O senhor ficou surpreso com a eleição de Jair Bolsonaro?
Touraine: Não. Quando coloca-se na prisão e torna-se inelegível Lula, o ex-presidente, condenado a 12 anos, isso quer dizer que as forças do país estavam exaustas com o populismo que teve a vantagem de incluir 20 milhões de pessoas. Quando Bolsonaro diz que os sem-terra são criminosos e que têm de ir para a prisão, isso é um sinal de que a base política e econômica dessa redistribuição massiva não agrada às classes médias. Essa gente se contenta com Bolsonaro e, se houver uma resistência, fará vir os militares. Bolsonaro, na verdade, ocupa uma cadeira vazia. Ele, aliás, não tem quase nenhuma atividade.

Valor: O que o senhor pensa da decisão do presidente Bolsonaro de "comemorar" ou "rememorar" o golpe de 64?
Touraine: Estava dizendo: "Se eu não conseguir governar, chamarei os militares". Claro!
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Reportagem  Por Helena Celestino | Para o Valor, de Paris - 12/04/2019

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