Rubem Alves*
Segundo os que acreditam em vidas passadas, eu já devo ter sido papa ou cardeal. E isso porque, vez por outra, sinto um impulso irresistível para escrever encíclicas. Pois o tal impulso irresistível para escrever encíclicas está me atacando de novo, e já tenho pronto o esboço da próxima, intitulada De excrementis diaboli.
Tudo começou num piquenique com um bando de amigos na serra do Japi. O Adriano, biólogo que nos conduziu, ia explicando as maravilhas que os olhos dos leigos não sabem decifrar. Foi uma experiência de espanto inteligente, isto é, espanto que faz pensar.
Mas quando nos preparávamos para voltar encontramo-nos com uma coisa triste: o lixo, sacos de plástico, alumínio, garrafas que alguns turistas haviam deixado como testemunho da sua visita.
Nas zonas rurais antigas lixo não existia. As bananeiras e outras plantas eram revitalizadas pelos excrementos humanos, e os porcos, galinhas e cachorros tratavam de reciclar todas as sobras orgânicas de comida sendo que, naqueles tempos, nada havia que se assemelhasse a plástico, garrafas, latas de refrigerantes e pneus.
O lixo estava integrado à vida.O lixo se tornou um problema nas cidades. Sem moitas de bananeiras e similares e sem os recicladores animais, as fezes, a urina e as sobras se transformavam em montanhas, tornando-se morada de ratos, baratas, moscas e de todos os tipos de pragas microscópicas.
Hoje o problema do lixo assume proporções apocalípticas e infernais. As toneladas de fezes e urina produzidas pelos milhões que moram nas grandes cidades são impensáveis — e vivemos na ilusão de que uma descarga de água na privada tem o poder de fazê-las desaparecer magicamente.
O problema fica infinitamente mais grave quando pensamos nos novos e fantásticos materiais produzidos pela ciência e pela indústria. Os plásticos, os pneus, as garrafas, as latas de refrigerantes, o papel, para onde vão?
Para mim essa era uma questão puramente acadêmica, embora dolorosa. Mas aí, eu vi. Havia na Unicamp um dia em que a universidade ficava aberta à visitação dos jovens que sonhavam com uma carreira acadêmica e científica. Pois no day after à visita desses produtos acabados da nossa educação, o campus parecia o Armagedon depois da batalha: o lixo espalhado por todos os lados teria sido motivo para uma tela infernal de Bosch. E o meu amigo professor Hermógenes, diretor do Horto da universidade (que morreu debaixo de uma árvore) contava-me que era preciso plantar árvores novas para substituir as jovens e tenras que haviam sido quebradas pelos visitantes.
Aposentei-me. Esqueci-me. Mas aí as visões apocalípticas do lixo me voltaram quando visitei Caruaru, cidade de povo gentil e artesãos maravilhosos. Pois o que mais me impressionou não foi a sua monumental feira de artesanato, mas o lixo espalhado por toda parte. Disse, para mim mesmo, que se eu fosse prefeito daquela cidade, meu primeiro ato seria convocar um mutirão de todo mundo, eu na frente, para catar o lixo. Aproveito a ocasião para passar a sugestão aos prefeitos...
O tempo passou. Novamente me esqueci. Aí visitei Aparecida do Norte, santuário da bendita Virgem, padroeira do Brasil, amada por todos. Pois o lixo que se acumulava ao redor da Basílica era ainda maior. Fiquei horrorizado porque pensava que quem ama a Virgem deve amar e cuidar da limpeza de sua casa. Pois é certo que a casta mãe do Salvador devia amar a limpeza. Caso contrário não teria sido escolhida.
Dei-me conta, então, de que nunca ouvi nem padre, nem pastor, nem guru, nem vidente, nem missionário, nem bispo, pregar sermão contra o lixo. Pois o lixo está para esse mundo de Deus da mesma forma como o pecado está para as almas. Se é preciso limpar as almas, é preciso também limpar o mundo.
Foi então que me surgiu a idéia da encíclica De excrementis diaboli. Compõe-se de três partes:
Na primeira anuncia-se a criação de uma nova ordem, à semelhança dos dominicanos, franciscanos, camilianos, jesuítas etc. Será uma ordem que se dedicará a um serviço humilde e necessário: a catação do lixo. Será comovente ver os frades saindo diariamente com seus sacos de aniagem (não de plástico; o plástico polui) pelas ruas, praças, feiras, pelos mercados, pátios de basílicas, parques, catando o lixo. Vale, sobretudo, o seu exemplo.
Na segunda parte a encíclica estabelece que o ato de jogar lixo é pecado mortal. Assim, nas confissões, esgotados os adultérios, furtos e mentiras, o confessor perguntará: “E quanto ao lixo, meu filho? Fale sobre os lixos que você tem jogado neste mundo de Deus...”
Finalmente, a encíclica estabelece um novo tipo de penitência. As penitências comuns, sob a forma de repetições de rezas, encorajam os pecadores à reincidência, posto que podem ser cumpridas de forma mecânica, sem sofrimento. As penitências serão transformadas em sacos de lixo. Mentiras, cinco sacos de lixo cheios. Infidelidade, quinze sacos de lixo cheios. Violência, cinqüenta sacos de lixo cheios. E assim por diante. A absolvição só será dada depois da entrega dos sacos de lixo.
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1636300&area=2220&authent=235403310473022376031304510201