Antonio Delfim Netto*
A organização do sistema econômico na maioria das atuais sociedades não caiu do céu. Nem foi obra de um projeto cerebrino. Ela é produto de uma evolução histórica. Um processo seletivo de formas alternativas, que foram bem descritas por muitos autores e, de uma forma insuperável, por Karl Marx. Aliás, as últimas alternativas de substituí-la (o bárbaro stalinismo e o maoísmo que se mostraram inviáveis por seu custo material e humano) foram, originalmente, inspiradas pela traição do seu pensamento. Felizmente, a "esquerda" brasileira sempre foi muito diversificada (leninistas, stalinistas, trotskystas, luxemburguistas etc.) e a melhor parte dela sempre combateu a ditadura soviética. Uma das cenas cômicas da política brasileira atual é ver alguns dos mais "fiéis stalinistas" proclamarem-se agora ferozes ético-democratas...
O que a história parece mostrar é que, sem o mercado, isto é, sem um mecanismo em que os preços se formem revelando as preferências dos consumidores e a escassez relativa dos fatores produtivos, é difícil encontrar a eficiência produtiva. Parece, também, que os mercados só se organizam eficientemente quando se apoiam na propriedade privada e são bem regulados pelo Estado na sociedade em que estão imersos.
Há, por outro lado, razoáveis evidências que novas formas de organização produtiva e o progresso tecnológico, que controlam o desenvolvimento, só surgem quando o Estado garante e estimula que os resultados dessas novas iniciativas sejam apropriados pelos seus autores. Foi nessa linha que a seleção "quase natural" dos sistemas econômicos foi evoluindo para chegar à situação atual: razoável eficiência produtiva, ampla liberdade individual e apropriação dos seus resultados pelos agentes mais ativos e competitivos. É a isso que se chama "capitalismo". O grave problema com ele é que não reduz, por si mesmo, a desigualdade entre os indivíduos. Este inconveniente se agrava porque o sistema é instável, revelando flutuações endógenas (na forma de ciclos econômicos), causando variações no nível de emprego, no nível de riqueza e no nível de pobreza, acentuando a desigualdade entre os cidadãos, que deve ser amenizada pela ação inteligente do Estado.
Quando se ensinava economia política na FEA/USP, na segunda metade dos anos 40, o professor . Paul Hugon (um institucionalista) insistia nos três "pecados capitais do capitalismo":
1) eficiente, mas incapaz de acabar com a pobreza;
2) compatível com a liberdade individual, mas incapaz de reduzir o nível de desigualdade; e
3) progride por ciclos dolorosos, impondo enormes custos aos trabalhadores.
Como corrigi-los? Hugon acreditava que a pobreza e a desigualdade podiam ser aliviadas ao longo do tempo pelo progresso da economia política e sufrágio universal, isto é, pela urna, desde que esta não eliminasse a base do desenvolvimento, que é a apropriação pelos indivíduos dos benefícios resultantes de suas iniciativas.
Aos futuros economistas, acreditava o velho mestre, "está reservada a sublime tarefa de resolver o problema das flutuações indesejadas do sistema capitalista e as desigualdades que ele cria". Nem a urna nem os economistas cumpriram até agora essa profecia. Hoje, com a distância de meio século, podemos ver que as coisas ainda não se moveram naquela direção. Entretanto, a globalização, a livre movimentação dos capitais e a sucessão de crises que se abateram sobre as economias gestaram uma "consciência social", que começa a expressar-se mais claramente nos resultados eleitorais. Por outro lado, os avanços da teoria econômica nem reduziram a pobreza, nem a amplitude dos ciclos econômicos.
Nos últimos 50 anos, o mundo cresceu mais e com menores (mas ainda graves) flutuações do que em qualquer outro meio século de que se tem registro histórico. Infelizmente, o avanço em termos de superação da pobreza e desigualdade foi pequeno. A prova disso são o Fórum Social Mundial itinerante e o Fórum Econômico Mundial de Davos: FSM e FEM. As letras do meio, "s" (social) e "e" (econômico) estão a mostrar que os "três pecados capitais do capitalismo" ainda não foram corrigidos.
Em Belém, no FSM, a média de idade dos participantes não devia chegar aos 30 anos. Era a vida querendo ser nietzschianamente vivida, folcloricamente representada na saudade de Woodstock por um jovem guitarrista e sua "mina" ao lado de sua barraca de lona, na improvisada rua Karl Marx! Seu grito de guerra era contra o "capitalismo" e a sua angústia produzida pela fúria competitiva do mundo moderno. Em Davos, a média de vida era maior do que 60. Era a vida vivida, continuando a lamentar... e a aproveitar as flutuações do capitalismo.
*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?dtMateria=19/5/2009%200:00:00&codMateria=5572622&codCategoria=89 19/05/2009
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