Gianni Vattimo
Na Itália, o caso Eluana Englaro desencadeou um lamentável debate político sobre a eutanásia. A "boa fé" brilha por sua ausência nas posturas adotadas pela hierarquia católica com relação ao tema. "Para mim, o caso Englaro foi decisivo para poder me dar conta da definitiva necessidade de me distanciar da Igreja católica".
A opinião é do filósofo italiano Gianni Vattimo, em artigo para o jornal El País, 10-05-2009. O texto é um trecho do artigo publicado na revista italiana Micromega, em sua edição dedicada ao caso Eluana Englaro.
Eis o artigo.
Pois bem, tenho que confessar: há seis anos, estive a ponto de me converter em assassino de uma pessoa que o permitia, ou, pelo menos, em cúmplice de um suicídio assistido. Descobriram em meu companheiro de então (há mais de 20 anos) um câncer em um pulmão, inoperável e já muito avançado. Ele, Sergio, havia perdido uma irmã alguns anos antes por causa de um tumor: ele a havia visto ir se apagando lentamente com crescente desespero. E não queria terminar os seus dias da mesma maneira. Como ambos já conhecíamos os movimentos fomentados pelo Partido Radical que enfrentavam o problema da eutanásia, informamo-nos sobre a forma de proceder, chegado o momento.
Antes, inscrevemo-nos na associação Dignitas, que tem sua sede na Suíça e que promete ajuda em situações como essa. Falamos também com médicos amigos que prometeram ajudar Sergio a terminar seus dias sem dor excessiva, física ou psicológica. É algo que se costuma fazer, só que é melhor não mencionar. E, naturalmente, pode ser feito só se "conhecemos" alguém. Um coitado que não tenha contatos entre médicos ou em hospitais dificilmente irá conseguir.
Como segundo passo, tentamos encontrar também uma conexão na Holanda, onde sabemos, ou acreditamos saber, que a eutanásia é praticada com menos obstáculos legais. Tivemos a sorte de encontrar um excelente oncologista italiano que trabalhava em Amsterdam. Ele também nos prometeu que acompanharia Sergio em um trajeto decoroso e amigável. Mas nos fez provar um novo fármaco que poderia funcionar. Foram semanas de ansiedade, entre fevereiro e março, indo e vindo de Turim a Amsterdam, e não unicamente para preparar a eutanásia, mas também, e sobretudo, para tentar a cura. Convertemo-nos em habitués de um grande hotel, o Le Grand, caríssimo, mas já nos comportávamos como quem não tem que se preocupar excessivamente em economizar, visto o futuro que aguardava por Sergio.
Com essa mesma lógica de fim de vida, decidimos realizar uma última viagem aos Estados Unidos. Sergio, que era historiador da arte, quis ver algumas coisas que, nas viagens anteriores, não tínhamos visto: o novo Museu de Artes Orientais, em San Francisco, e a Casa da Cascata de Wright. O que chegou a acontecer, no âmbito emotivo, no curso daqueles dois meses de desesperada inquietação (o câncer descoberto no começo de fevereiro, a morte que chega no dia 20 de abril), eu não sou capaz, hoje, nem sequer de voltar a sentir.
Não é só o câncer do Sergio. Entre 1986 a 1992, passaram-se os seis últimos anos de vida de meu outro companheiro, Gianpiero, que se contaminou com Aids e passou por todas as dramáticas etapas que, naqueles anos, ainda constituíam o calvário inevitável de todos os doentes de HIV, por mais que hoje (não na África, Santidade!) sobreviva-se muito mais e infinitamente pior. Também naquela ocasião me vi voltado ao problema da eutanásia, ou algo parecido.
Na noite do domingo de Páscoa de 1992, Gianpiero se encheu de Gardenal para acabar com a sua vida. Sergio e eu encontramo-lo em coma na manhã seguinte e tivemos que decidir se deixaríamos que ele partisse ou não. Decidimos por chamar a ambulância. Nos meses posteriores, Gianpiero admitiu que ele ainda continuava de boa vontade no mundo, mesmo que não fosse mais do que para ver juntos alguns filmes, fazer com que eu lesse o magnífico "Os tesouros de Poynton", de Henry James, escrever as primeiras páginas de um ensaio crítico sobre Sandor Márai, ir (já em cadeira de rodas) dar de comer à colônia de gatos que vive no pátio do hospital onde ele, no fim, morreria.
Sem dúvida, quando penso na eutanásia, não posso deixar de lembrar, de maneira especial, esses escassos meses de "suplemento" de vida que impus ao meu companheiro, e que – não sei se somente para me consolar – ele sempre me disse que havia vivido de boa vontade. Trata-se, porém, de uma objeção definitiva para minha convencida convicção pró-eutanásia? Deveria ter deixado, talvez, que o seu suicídio de Páscoa se consumasse? E hoje, o que eu faria?
Eram esses os pensamentos que eu tinha na cabeça quando, em 2003, discutia com Sergio sobre a sua vontade de desaparecer antes de que o câncer o devastasse. Preciso dizer que tenho gratidão a Deus ou a quem, no seu lugar, fez com que Sergio me deixasse, no fim, de forma "natural" no avião que nos devolvia para a Europa para ir a Amsterdam, e também por ainda continuar levando a "culpa" (Sergio tinha 20 anos menos do que eu; Gianpiero, 13) de continuar vivo.
Por acaso, será uma demonstração de cinismo o fato de que eu conte essas coisas agora? Não sei, mas sinto como um dever para com eles continuar falando. Inclusive agora, nessas circunstâncias de debate "político".
Sei perfeitamente que o caso de Eluana Englaro e da luta de seu pai é muito diferente. Mas, em muitos sentidos, é também absolutamente igual. Em primeiro lugar, pelo seguinte: não permitiria que ninguém me qualificasse como assassino se eu tivesse deixado Gianpiero morrer, quando ele o tivesse decidido, e se tivesse acompanhado Sergio a Amsterdam. Jamais teria acreditado, como não acredito agora, na "boa fé" dos cachorros raivosos, leigos ou clericais, que se lançaram sobre o corpo já só definitivamente vegetativo dessa pobre moça de Friuli.
Não me tornei um "cínico" nesses anos que se passaram desde minhas "tentações" eutanásicas. Por fim, abri os olhos. Sobre o significado da misteriosa palavra biopoder, que me parecer ser o termo menos inadequado para descrever as vicissitudes que ocorreram no Parlamento italiano a propósito do testamento biológico, que seria melhor denominar de zoológico, dada a concepção da vida que o sustenta: só sobrevivência física, independente do que você pensa sobre o seu bios, sobre a sua existência humana feita de pensamentos, relações, expectativas. A sonda é a única resposta.
O protagonismo da Igreja católica na defesa da "sacralidade" da vida foi para mim o elemento mais significativo do caso Englaro. É verdade que, incluindo as últimas afirmações sobre o preservativo, as coisas que o Papa e os bispos disseram nos últimos tempos não supõem novidade nenhuma com relação à doutrina católica mais tradicional.
A questão, provavelmente, é que, a essas alturas – diante das inaceitáveis tomadas de posição vaticanas sobre o preservativos; diante da menina brasileira ou de seus médicos excomungados por causa de um aborto; diante do perdão concedido por Bento XVI ao bispo lefebvriano negacionista; diante da pretensão de impor que a sonda não é uma terapia; e, antes, diante das abundantes e vergonhosas defesas de sacerdotes pedófilos –, é difícil para todo mundo pensar que se trate de erros cometidos de boa fé por uma hierarquia muito tradicionalista, ou por um Papa um tanto torpe ou inclusive simplesmente mal informado.
A hierarquia católica não pode seguir contando com a resignada anuência de um "povo de Deus" que se pergunta cada vez com mais freqüência se já não será a hora de colocar em discussão a própria Igreja em sua estrutura hierárquica, que se converte, já não em um sustento para a fé, mas em um escândalo contínuo e em um obstáculo para se escutar o Evangelho.
Para mim, o caso Englaro foi decisivo para poder me dar conta da definitiva necessidade de me distanciar da Igreja católica, à qual eu acreditava amar, inclusive acima das numerosas imoralidades que despontam em sua história antiga e recente. A cumplicidade da Igreja com o biopoder que se transforma em zoopoder sobre as vidas e que parece destinado a destruir, e não só na Itália, todo traço de esperança de democracia e de emancipação humana nunca ficou tão clara para mim como nas últimas tomadas de posição vaticanas sobre temas bioéticos.
O que tem a ver o caso Eluana com minhas relações de crente cristão com a Igreja romana? Afasto-me da Igreja para vingar Eluana? É um assunto de raiva privada, de mera indignação que eu deveria saber controlar? Não, eu sou consciente de que se trata de muito mais: é a ocasião providencial – um momento de graça – em que me dou conta, por fim, de que a Igreja como estrutura histórica merece, evangelicamente, desaparecer
*Filósofo italiano.
A tradução é de Moises Sbardelotto, IHU/Unisinos, 11/05/2009
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