GEORGES VIGARELLO*
No século 19, inventaram-se as máquinas
para obrigar o corpo a trabalhar
Um dos grandes especialistas no corpo e em suas representações, o sociólogo francês Georges Vigarello fala, na entrevista abaixo, sobre temas como a evolução no tratamento da criança.Ele mostra também que a obsessão pelo corpo não é uma exclusividade dos tempos atuais.
PERGUNTA - O senhor mostra em "Le Corps Redressé" [O Corpo Reerguido] que, desde a Idade Média, educadores e pedagogos são obcecados pelo corpo reto...
PERGUNTA - O senhor mostra em "Le Corps Redressé" [O Corpo Reerguido] que, desde a Idade Média, educadores e pedagogos são obcecados pelo corpo reto...
GEORGES VIGARELLO - Entre as normas relativas ao corpo, há uma muito importante, que é a exigência de uma postura reta. É claro que reencontramos essa exigência hoje.Mas muitas coisas mudaram desde o Renascimento, não somente na representação da retidão, mas sobretudo na maneira de obtê-la. Dito de outro modo, o corpo está no centro de uma relação pedagógica que evoluiu ao longo da história.Na Idade Média, esse objetivo já existia: por exemplo, recomendava-se ao jovem que não apoiasse os cotovelos na mesa ou, ainda, lhe diziam: "Não enfie a cabeça nos ombros, ou você poderá parecer um hipócrita. Não balance a cabeça de um lado para o outro, pois parece indeciso...".Na verdade, as posições do corpo são moralizadas. Nos séculos 16 e 17, a mão do mestre ou do educador é muito importante: é ela que se coloca sobre o corpo da criança para corrigi-lo.Encontramos exemplos nas "Mémoires de Mme. de Maintenon" (Memórias de Madame de Maintenon), que explica como sua doméstica apoiava a mão na barriga de sua ama para empurrá-la para trás, puxar seus ombros etc.Progressivamente, no século 17, a mão corretora vai encontrar um substituto nas malhas e corpetes que fazem as mulheres e crianças usarem. A profissão de fabricantes de corpetes foi criada nessa época.O corpete não era somente usado no caso de más-formações (o que era frequente), mas também cada vez mais de modo preventivo pelas crianças da aristocracia e da alta burguesia. Pode-se vê-lo em várias gravuras: o corpo da criança era sustentado no nível do peito por um peitoral e, no do pescoço, por um colarinho rígido.A educação do corpo consistia em uma restrição imposta. Essa prática irá perdurar ao longo de todo o século 18, embora ocorra então uma mudança essencial em termos de representação do corpo, e não somente no campo médico.
PERGUNTA - Quais são as mudanças que surgem no século 18?
VIGARELLO - Surgem críticas muito severas a essas práticas corporais educativas. Entre as inúmeras vozes que se exprimem sobre a questão, Jean-Jacques Rousseau é o representante mais eloquente, especialmente no "Emílio" (1762).Essas críticas denunciam primeiramente o fato de que a criança sofre, sem nenhuma reação possível, o que lhe é imposto pelo adulto (vemos bem a ideia que surge: "É preciso libertar a criança").A segunda ideia subjacente é de que a criança tem força suficiente para poder dispensar o corpete: aparece assim a ideia do papel que podem ter os músculos na sustentação do corpo.Pois no século 18 começa a haver interesse por outro componente do corpo: a fibra, que constitui as redes nervosas e musculares, isto é, de toda uma atividade tensional. Vai-se então submeter a criança a exercícios físicos que a cansam, fazê-la andar descalça, obrigá-la a trabalhar de pé -inventam-se mesas com roldanas...De maneira mais geral, começa-se a conceber uma autonomia possível da criança: autonomia física, sem dúvida (resistência ao trabalho, ao cansaço, ao frio), mas também uma autonomia mais ampla. Estamos na época do Iluminismo, do nascimento de uma espécie de individualismo, mas também do respeito pelo indivíduo: tanto pelos adultos quanto pelas crianças, que são futuros adultos.É o início de uma inversão na relação pedagógica que virá no século 20.
PERGUNTA - Em que o século 19 revoluciona a pedagogia do corpo?
VIGARELLO - O século 19 constitui uma ruptura absoluta, cuja importância ainda não mensuramos. Nas concepções médicas e higienistas da época, o músculo e o pulmão são objetos de todas as atenções.Mais concretamente, o século 19 inventa a ginástica. O princípio totalmente novo é o de que exercícios mecânicos seriam capazes de melhorar as forças e a eficácia do corpo. Manuais apresentam séries de exercícios numerados.A ambição é transformar o corpo para aperfeiçoar os músculos e os gestos, fazendo-o trabalhar em tipos de práticas mecanizadas e numeradas.O século 19, sobretudo em sua segunda metade, nos faz entrar em um espaço metrificado. Na fábrica ou na oficina, toda uma economia dos gestos começa a ser pensada, de modo que o trabalho do operário seja realmente rentável.Michel Foucault mostrou bem isso, tomando o exemplo da rentabilidade dos gestos no Exército. Há uma pesquisa da eficácia do corpo...É nesse quadro que nasce a ginástica escolar: todas as crianças efetuam ao mesmo tempo e no mesmo ritmo um certo tipo de movimento. Inventam-se as salas de ginástica e máquinas (manivelas, polias, roldanas, escadas) para obrigar o corpo a trabalhar.São os ancestrais de nossas academias de musculação... A concepção do mobiliário escolar também corresponde a esse tipo de inquietação diante do corpo. Números muito precisos indicam a distância entre o peito e a borda da mesa, a distância entre a altura do assento e a da carteira...
PERGUNTA - Na França, no fim do século 19, há conflito entre os defensores da ginástica e os defensores do esporte?
VIGARELLO - O tempo parece produzir libertações em cascata. O corpo da criança em Rousseau é libertado em relação àquele que se trancava nas malhas e nos corpetes.O corpo da ginástica dá mais autonomia e disponibilidade à criança, enquanto o mantém nas formas de rigidez com exercícios precisos e forçados.Mas os anos 1880 veem surgir críticas extremamente severas e acirradas em relação à ginástica, considerada autoritária demais ou suscetível de promover uma cultura excessivamente militar...O esporte (corrida, ciclismo, canoagem...), cuja prática vem da Inglaterra, aparece nesse momento e é visto pelos que o praticam como uma verdadeira libertação.Nesses primeiros tempos não há uma orientação necessariamente higienista ou moral, como é o caso da ginástica.
PERGUNTA - Como o nascimento da psicologia irá operar uma nova ruptura na relação com o corpo?
VIGARELLO - Os primeiros psicólogos começam a falar em sensações internas... Nos anos 1920, Jean Piaget falou em inteligência sensorial e motora e colocou em evidência o fenômeno da interiorização da motricidade.Mas é apenas a partir da segunda metade do século 20 que a psicologia irá influenciar as práticas, e mais precisamente nos anos 1960. O corpo não é mais concebido como uma simples mecânica, mas como portador de mensagens, de informações, de sensações vividas...Pede-se então ao sujeito que preste atenção no que ele percebe: não estamos mais na eficácia, mas sobretudo na afeição. A perspectiva é invertida, leva-se o sujeito a escutar a si mesmo.Outra mudança fundamental: não é mais uma norma abstrata, coletiva e genérica imposta de fora que predomina, mas a norma que cada um define para si mesmo.Então tomamos consciência de que existem várias maneiras de ser reto, de se portar, e que certas retidões correspondentes a normas individuais podem ser tão elegantes quanto outras...Estamos diante de um novo tipo de libertação. O pedagogo não é mais aquele que prescreve de maneira autoritária e inteligível, mas o que ajuda na percepção de cada um.Tomemos um exemplo sintomático: um esportista hoje pode dizer que "perdeu suas sensações"; isso era inimaginável nos anos 1930, quando ele devia simplesmente fazer o que lhe diziam! O corpo tornou-se o suporte de nossa identidade.Daí expressões cada vez mais individualizadas (o piercing ou a tatuagem, por exemplo) ou, ainda, as buscas de "reencontros" com o corpo (das quais a talassoterapia é um exemplo), como se esses reencontros nos permitissem ser realmente o que somos...Certas práticas, como as maratonas, esportes radicais ou outras práticas arriscadas, ou ainda as festas rave, com seus consumos e transes múltiplos, constituem uma maneira de explorar o corpo além de seus limites: a ausência de limitação do corpo toma o lugar das antigas transcendências.
*Professor na Universidade de Paris 5 e diretor de pesquisa de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). É autor de obras como "História do Estupro" (Zahar) e "História da beleza" (Ediouro).
Esta entrevista saiu na "Sciences Humaines". Reportagem de MARTINE FOURNIER.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1005200921.htm
-Publicada pela Folha de São Paulo em 10/05/2009
Esta entrevista saiu na "Sciences Humaines". Reportagem de MARTINE FOURNIER.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1005200921.htm
-Publicada pela Folha de São Paulo em 10/05/2009
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